"As críticas de cardeais alemães ao
Instrumentum Laboris (latim para "Instrumento de Trabalho") do Sínodo
para a Amazônia – e que, indiretamente, atingem o papa Francisco – deverão
marcar o encontro previsto para ocorrer em Roma, de 6 a 27 de outubro. Os dois
textos mais enfáticos sobre o tema foram escritos pelo prefeito emérito da
Congregação para a Doutrina da Fé, Gerhard Muller, 71 anos, e por Walter
Brandmüller, 90 anos. Brandmüller é um dos signatários de uma carta em que
quatro cardeais pediam ao papa esclarecimentos sobre temas controversos da
exortação apostólica Amoris Laetitia, escrita por Francisco e na qual alguns
intérpretes veem a possibilidade de comunhão para católicos divorciados que
estão em uma nova união civil. Tanto Muller quanto Brandmüller usaram termos
como "heresia", "estupidez" e "apostasia" para se
referir a trechos do documento que orientará o Sínodo para a Amazônia.
O Instrumentum Laboris não é escrito pelo
papa, mas por uma equipe que tem a função de recolher opiniões por meio de
consultas com lideranças religiosas e leigas, que no caso do Sínodo para a
Amazônia ocorreram ao longo do primeiro semestre de 2018. O documento apresenta
temas para discussão no evento, e após o Sínodo os participantes levam ao papa
o resultado de seus debates. Só então o pontífice pode escrever o que se chama
"exortação pós-sinodal", mas ele não é obrigado a endossar as
conclusões do Sínodo caso não concorde com elas. Não existe um prazo definido
para a publicação deste documento; nos sínodos anteriores realizados no
pontificado de Francisco, sobre a família e sobre os jovens, a exortação
pós-sinodal tem sido divulgada poucos meses depois do encerramento dos eventos.
O Sínodo da Amazônia terá cerca de 250
participantes, dos quais 61 brasileiros, sem contar os convidados do papa.
Estarão presentes bispos dos nove estados que compreendem a Amazônia Legal
brasileira (Acre, Amapá, Rondônia, Roraima, Amazonas, Pará, Maranhão, Tocantins
e Mato Grosso), além de religiosos de outros países cortados pela floresta –
Bolívia, Equador, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana
Francesa.
Crítico aponta semelhanças com o marxismo
No livro recém-publicado Römische Begegnungen
("Encontros em Roma", em tradução livre), Muller acusa o papa
Francisco de trabalhar pela dissolução da Igreja. No texto, há amplas críticas
a aproximações com "política" e "intrigas", além de falas
sobre uma secularização da Igreja ao modelo protestante. São amplas as queixas,
por exemplo, à participação de Francisco na celebração dos 500 anos da Reforma
Protestante, durante sua visita à Suécia, em 2017.
Quanto ao Sínodo da Amazônia, Muller concentra
suas objeções aos conceitos de cosmovisão (com acenos a mitos e rituais
evocando a "mãe natureza"), ecoteologia, cultura indígena e
ministério sacerdotal, com a possibilidade de ordenar padres casados, presente
no instrumento de trabalho. "A cosmovisão dos povos indígenas é uma
concepção materialista semelhante ao marxismo e não é compatível com a doutrina
cristã" afirmou o cardeal, em entrevista em 17 de julho. Em sua defesa,
Muller, lembra que não é exatamente um eurocentrista que desconhece a realidade
amazônica: por 15 anos ele visitou o Peru, em viagens regulares de ao menos
três meses, nas quais manteve contatos constantes com Gustavo Gutiérrez, um dos
fundadores da Teologia da Libertação."
Ordenação de casados
"É impossível esconder o fato de que esse
sínodo é particularmente adequado para implementar dois dos projetos mais
ambiciosos e que nunca foram implementados até agora: a abolição do celibato e
a introdução de um sacerdócio feminino, a começar por mulheres
diaconisas", afirmou o cardeal Brandmüller.
Francisco, no entanto, tem procurado acalmar
os ânimos. Em uma clara resposta a setores da Igreja que levantam dúvidas sobre
o sínodo, o papa afirmou na semana passada que a possibilidade de ordenar os
chamados "viri probati" – normalmente idosos, ligados a comunidades
amazônicas e de virtude comprovada – não será tema central do encontro.
"Absolutamente, não. (...) é simplesmente um ponto do Instrumentum
Laboris. O foco são os ministros da evangelização e as diferentes formas de
atuação", disse o papa em entrevista publicada pelo jornal italiano La
Stampa.
Enquanto a ordenação de mulheres, mesmo para o
diaconato, já foi definitivamente descartada por João Paulo II, posição
repetida e defendida por Francisco, a possibilidade de sacerdotes casados
existe na Igreja Católica. As igrejas de rito oriental ordenam homens casados,
e há casos excepcionais de pastores protestantes casados que se convertem ao
catolicismo e também recebem a ordenação sacerdotal. No entanto, a regra geral
para os padres católicos de rito latino continua a ser o celibato, definido
como um "dom para a Igreja".
Mais diretamente, o pontífice afirmou que o
Sínodo da Amazônia é filho direto de sua "encíclica verde", Laudato
Si', na qual Francisco descreve o planeta como uma casa comum. "Quem não a
leu não entenderá o sínodo", diz. O papa defendeu a Amazônia como parte
importante a ser preservada, a exemplo dos oceanos. Sua perda, segundo ele,
poderia levar à redução da biodiversidade e ao surgimento de doenças
mortíferas.
Na entrevista, o chefe da Igreja Católica não
fugiu das discussões políticas na região, destacando, por exemplo, que os
governos locais devem responder diretamente sobre "as minas ao ar
livre" que envenenam os rios. "A ameaça à vida dessas populações e
desse território envolve interesses econômicos e políticos dos setores
dominantes da sociedade", afirmou."
A opinião de D. Cláudio Hummes
O relator-geral do Sínodo será o cardeal
brasileiro Cláudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo e presidente da
Comissão Episcopal Especial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB). Dom Cláudio não comentou as críticas dos cardeais alemães ao
Instrumentum Laboris, mas seu pensamento está em uma entrevista concedida ao
padre Antonio Spadaro, diretor da revista Civiltà Cattolica, e publicada no
semanário alemão Stimmen der Zeit.
Para Hummes, o foco da próxima reunião está em
criar "uma Igreja indígena para as populações indígenas". Ele ainda
destaca que o evento responde a um desejo do papa Francisco, sobre o qual
conversavam – e "rezavam" – desde 2015.
Na entrevista, o cardeal também afirmou que é
necessário confrontar "resistências" existentes "tanto na Igreja
quanto fora dela". Para ele, " interesses econômicos e o paradigma
tecnocrático se opõem a qualquer tentativa de mudança e estão prontos a se
impor pela força". Ele fala, ainda, de crimes ambientais que ficaram
impunes, e destaca a necessidade de o encontro tratar de direitos humanos.
Governo Bolsonaro teme evento 'de esquerda'
O sínodo preocupa o governo Bolsonaro, que vê
no movimento da Igreja uma suposta agenda de esquerda. "Queremos
neutralizar isso aí", disse à época o ministro Augusto Heleno.
Posteriormente, houve encontros entre religiosos e militares para aparar
arestas. Mas iniciativas como a de tentar nomear mártir o padre Ezequiel Ramin,
morto na defesa de índios e sem-terra, tem alertado grupos conservadores – que
falam, ainda, em um evento que ameaça "a soberania da
Amazônia"."
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Gazeta do Povo/ Estadão
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