Na última
exortação pós-sinodal do Papa Francisco, parece-me possível captar alguns
indícios que prenunciam futuras reviravoltas na compreensão da identidade, da
organização e da missão da Igreja.
Acima de
tudo, Francisco, embora em continuidade com algumas aberturas dos seus
antecessores, é o primeiro papa a ter assumido de forma completa o diálogo com
a modernidade ou pós-modernidade. E ele faz isso com a reforma do estilo de
exercício do primado petrino, a modificação da linguagem do seu ensinamento, a
transformação do papel do magistério e a reinterpretação do conceito de
infalibilidade.
Apesar da
obsessiva ostentação do seu pauperismo, que pode parecer para muitos como
instrumental e demagógico, o Papa Francisco está lentamente acertando
as contas com a história dos últimos séculos (modernidade). Parece que Francisco,
com sua orientação magisterial, quer quase remediar aqueles
que Luhmann chamou de “insultos” que, na era moderna, a hierarquia
eclesiástica infligiu ao caminho da razão: a) o
biológico-evolucionista (Darwin-Teilhard de Chardin); b) o psicológico
da subjetividade humana (Freud); c) o social (Marx).
No seu
ensinamento, Francisco reconhece o primado do “tempo” em relação ao
“espaço” e declara que não quer ocupar espaços, mas sim iniciar processos. O
primado do tempo sobre o espaço envolve a adoção da lógica das parábolas
evangélicas da semente que cresce, e do trigo e do joio. A Igreja
de Francisco é uma Igreja “em devir”, dinâmica, promotora de
processos. O que é isso senão a recuperação da reivindicação evolucionista?
Além disso, no
plano ético, ele recupera os elementos subjetivos da culpa e do pecado (plena
consciência e consentimento deliberado), declarando que a gravidade da culpa
não pode ser separada da imputabilidade do sujeito. Na Evangelii
gaudium, referindo-se ao ensinamento do Catecismo da Igreja
Católica (n. 1.735), no que diz respeito à imputabilidade do pecador, ele
lembra “aos sacerdotes que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura,
mas o lugar da misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem
possível” (EG 44).
Na vontade do
pecador em relação ao pecado, “a imputabilidade e a responsabilidade de uma
ação” são “diminuídas” ou até mesmo “anuladas” por múltiplas causas.
Reconsiderar a missão pastoral e sacramental da Igreja à luz desse ensinamento
deveria nos tornar mais misericordiosos e prontos para tratar e curar as
misérias humanas. O que é isso senão a recuperação da reivindicação psicológica
do sujeito?
Por
fim, Francisco traz novamente para o centro do seu magistério
a doutrina social da Igreja e as reivindicações dos oprimidos, dos
últimos, dos pobres… Ele denuncia com firmeza os modelos de desenvolvimento
econômico que determinam “exclusão” e “desigualdade”, e que geram a cultura do
“descarte”. Lamenta a idolatria do dinheiro, observando que “nós criamos novos
ídolos (…) no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto
(…) que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo” (EG
55).
Ele não hesita
em definir como ingênua a teoria da recaída favorável, que os proponentes do liberalismo
econômico consideram como útil para o crescimento econômico e a equidade
social. Ele considera que os atores desse sistema econômico produziram a
cultura do descarte, a globalização da indiferença e a anestesia do coração. O
que é isso senão a recuperação da reivindicação social?
Francisco se
apresentou ao mundo com um sorriso desarmante e uma sedutora expressão da sua
bondade interior. Antes ainda que com as palavras, Francisco comunica
com a sua própria corporeidade, expressando o impulso missionário da sua ação
pastoral. Ele é um homem intrépido, nada intimidado pelos formalismos
institucionais. Aos solenes salões do Palácio Apostólico, ele prefere a
praça em frente ao pátio da basílica pontifícia de São Pedro.
Nas primeiras
palavras pronunciadas da loggia, que foram programáticas para o
pontificado, o novo papa se apresentou como o bispo de Roma, que preside
na caridade as outras Igrejas, evitando se autodefinir com títulos que
enfatizassem o primado (papa, pontífice ou os seus sinônimos).
A sobriedade com
que ele iniciou o seu ministério de bispo de Roma confunde e
desconcerta muitas pessoas. O mesmo binômio Papa Francisco, que une em uma
única pessoa as duas polaridades (a instituição e o carisma), representa uma
autêntica reviravolta para a Igreja.
O novo papa está
nos ajudando a redescobrir a dimensão carismática do pontificado e, no sinal
do santo de Assis, assume em primeira pessoa as suas reivindicações
reformadoras. Sabemos muito bem que os movimentos carismáticos nasceram e se
enraizaram fortemente nas Américas. E, agora, o cardeal de Buenos
Aires, que amadureceu uma experiência de episcopado carismático na América
do Sul, está implementando um pontificado carismático.
Inclinar a
cabeça e pedir que a praça lotada reze a Deus por ele em silêncio não é apenas
sinal de humildade, mas também autêntica vontade de se unir ao povo de Deus
(“bispo e povo”), para pedir com força o dom do Espírito. Não se trata de um
carisma individual, mas de uma extensão dela em sentido comunitário que está ligado
a uma instituição.
Francisco,
na Evangelii gaudium, não hesita em falar corajosamente de uma
conversão do papado: “Eu devo pensar também numa conversão do papado (…)
uma forma de exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é
essencial da sua missão, se abra a uma situação nova” (EG 32).
A afirmação não
põe em discussão o primado do bispo de Roma, mas se abre a novas formas do
seu exercício, que recebam a “situação nova”. A afirmação expressa o desejo
sincero de recuperar a plena comunhão com as Igrejas que, ao longo dos dois
milênios, no plano doutrinal ou no plano disciplinar, tomaram caminhos
diferentes da Igreja do bispo de Roma.
No discurso
aos representantes da Igreja italiana reunidos em Florença, em novembro de
2015, Francisco afirmou: “Pode-se dizer que, hoje, não vivemos uma
época de mudança, mas sim uma mudança de época”. Essa declaração, que passou em
silêncio, não encontrou grande repercussão nos comentários dos vaticanistas,
mas ela pode ser compreendida se for lida à luz daquilo que foi referido acima.
Francisco, com
os seus gestos, o seu estilo, o seu magistério, está reformando a Igreja, indo
além dos “insultos” da “modernidade”. Os historiadores buscam interpretar a
fase histórica atual com atentas análises que tentam legitimar com a
terminologia mais apropriada. O leque é amplo. Fala-se de pós-modernidade, de
modernidade tardia, de segunda modernidade, de supermodernidade…
Provavelmente, Francisco está
introduzindo a Igreja, através de um processo de transição, em uma nova era
histórica, que está delineando lentamente a sua identidade. Como se sabe, as
periodizações históricas são esquematizações póstumas, não se implementam com
passagens instantâneas, mas se realizam progressivamente. A partir dessa
urgência de adequação do dado teológico ao novo contexto histórico, nasce o seu
compromisso para reformular e reinterpretar a revelação bíblica (homilias
de Santa Marta) à luz da história contemporânea.
Àqueles que o
acusam de querer mudar a doutrina e o Evangelho, ele poderia responder
com João XXIII: “Não estamos mudando o Evangelho, mas o estamos apenas
entendendo melhor!”. A urgência de uma reforma da Igreja capaz de harmonizar e
organizar em uma síntese completa as reivindicações provenientes do processo
histórico já foi advertida por São João Paulo II no início do novo
milênio, quando, olhando para o futuro da história à luz do Concílio, ele
exortava toda a Igreja com o convite Duc in altum, entendendo com
isso, provavelmente, convidar todos os seus componentes para empreender
corajosamente essa tarefa indeferível.
Francisco conseguirá
ir além dos “insultos” da modernidade? Veremos. O que já parece ser indeferível
é o estado de canteirização e de reforma da Igreja.
Por Nicola di Bianco,
professor do Instituto Teológico Salernitano
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IHU / Aleteia
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