Transcorreu uma
década e ainda permanece na memória de muitos o enérgico e emocionado discurso
pronunciado pelo Papa Bento XVI no campo de concentração de Auschwitz
(Polônia), onde o Papa Francisco também esteve presente hoje, no contexto da
JMJ Cracóvia 2016. Auschwitz foi o maior centro de extermínio nazista,
onde morreram 1.100.000 pessoas – 90 % judeus –, e entre os quais estiveram São
Maximiliano Kolbe e Santa Edith Stein.
VIAGEM
APOSTÓLICA DO PAPA BENTO XVI À POLÔNIA
DISCURSO DO SANTO PADRE
DURANTE A VISITA AO CAMPO
DE CONCENTRAÇÃO
DE AUSCHWITZ-BIRKENAU
DURANTE A VISITA AO CAMPO
DE CONCENTRAÇÃO
DE AUSCHWITZ-BIRKENAU
Domingo, 28 de Maio de 2006
Tomar a palavra
neste lugar de horror, de acúmulo de crimes contra Deus e contra o homem sem
igual na história, é quase impossível e é particularmente difícil e oprimente
para um cristão, para um Papa que provém da Alemanha. Num lugar como este
faltam as palavras, no fundo pode permanecer apenas um silêncio aterrorizado um
silêncio que é um grito interior a Deus: Senhor, por que silenciaste? Por que
toleraste tudo isto? É nesta atitude de silêncio que nos inclinamos
profundamente no nosso coração face à numerosa multidão de quantos sofreram e
foram condenados à morte; todavia, este silêncio torna-se depois pedido em voz
alta de perdão e de reconciliação, um grito ao Deus vivo para que jamais
permita uma coisa semelhante.
Há 27 anos, no
dia 7 de Junho de 1979, estava aqui o Papa João Paulo II; então ele disse:
"Venho hoje aqui... Quantas vezes! E desci muitas vezes à cela da morte de
Maximiliano Kolbe e detive-me diante do muro do extermínio e passei entre as
ruínas dos fornos crematórios de Birkenau.
Como Papa, não
podia deixar de vir aqui". O Papa João Paulo II veio aqui como filho
daquele povo que, ao lado do povo judeu, teve que sofrer mais neste lugar e, em
geral, durante a guerra: "Foram seis milhões de Polacos, que perderam a
vida durante a segunda guerra mundial: um quinto da nação", recordou então
o Papa. Aqui, ele elevou a solene admoestação ao respeito dos direitos do homem
e das nações, que antes dele tinham elevado diante do mundo os seus
Predecessores João XXIII e Paulo VI, e acrescentou: "Pronuncia estas
palavras [...] o filho da nação que na sua história remota e mais recente
sofreu numerosas angústias infligidas por outros. E não o diz para acusar, mas
para recordar. Fala em nome de todas as nações, cujos direitos são violados e
esquecidos...".
O Papa João
Paulo II veio aqui como um filho do povo polaco. Hoje eu vim aqui como um filho
do povo alemão, e precisamente por isto devo e posso dizer como ele: não podia
deixar de vir aqui. Tinha que vir. Era e é um dever perante a verdade e o
direito de quantos sofreram, um dever diante de Deus, de estar aqui como
sucessor de João Paulo II e como filho do povo alemão filho daquele povo sobre
o qual um grupo de criminosos alcançou o poder com promessas falsas, em nome de
perspectivas de grandeza, de recuperação da honra da nação e da sua relevância,
com previsões de bem-estar e também com a força do terror e da intimidação, e
assim o nosso povo pôde ser usado e abusado como instrumento da sua vontade de
destruição e de domínio. Sim, não podia deixar de vir aqui. A 7 de Junho de
1979 estive aqui como Arcebispo de Munique-Frisinga entre os numerosos Bispos
que acompanhavam o Papa, que o escutavam e rezavam com ele. Em 1980 voltei mais
uma vez a este lugar de horror com uma delegação de Bispos alemães, abalado por
causa do mal e reconhecido pelo facto de que acima das trevas tinha surgido a
estrela da reconciliação. Ainda é esta a finalidade pela qual me encontro hoje
aqui: para implorar a graça da reconciliação antes de tudo de Deus, o único que
pode abrir e purificar os nossos corações; depois, dos homens que sofreram; e
por fim, a graça da reconciliação para todos os que, neste momento da nossa
história, sofrem de maneira nova sob o poder do ódio e sob a violência
fomentada pelo ódio.
Quantas
perguntas surgem neste lugar! Sobressai sempre de novo a pergunta: Onde estava
Deus naqueles dias? Por que Ele silenciou? Como pôde tolerar este excesso de
destruição, este triunfo do mal? Vêm à nossa mente as palavras do Salmo 44,
a lamentação de Israel que sofre: "... Tu nos esmagaste na região das
feras e nos envolveste em profundas trevas... por causa de ti, estamos todos os
dias expostos à morte; tratam-nos como ovelhas para o matadouro. Desperta,
Senhor, por que dormes? Desperta e não nos rejeites para sempre! Por que
escondes a tua face e te esqueces da nossa miséria e tribulação? A nossa alma
está prostrada no pó, e o nosso corpo colado à terra. Levanta-te! Vem em nosso
auxílio; salva-nos, pela tua bondade!" (Sl 44, 20.23-27). Este
grito de angústia que Israel sofredor eleva a Deus em períodos de extrema
tribulação, é ao mesmo tempo um grito de ajuda de todos os que, ao longo da
história ontem, hoje e amanhã sofrem por amor de Deus, por amor da verdade e do
bem; e há muitos, também hoje.
Nós não podemos
perscrutar o segredo de Deus vemos apenas fragmentos e enganamo-nos se
pretendemos eleger-nos a juízes de Deus e da história. Não defendemos, nesse
caso, o homem, mas contribuiremos apenas para a sua destruição. Não em
definitiva, devemos elevar um grito humilde mas insistente a Deus: Desperta!
Não te esqueças da tua criatura, o homem! E o nosso grito a Deus deve ao mesmo
tempo ser um grito que penetra o nosso próprio coração, para que desperte em
nós a presença escondida de Deus para que aquele seu poder que Ele depositou
nos nossos corações não seja coberto e sufocado em nós pela lama do egoísmo, do
medo dos homens, da indiferença e do oportunismo. Emitamos este grito diante de
Deus, dirijamo-lo ao nosso próprio coração, precisamente nesta nossa hora
presente, na qual incumbem novas desventuras, na qual parecem emergir de novo
dos corações dos homens todas as forças obscuras: por um lado, o abuso do nome
de Deus para a justificação de uma violência cega contra pessoas inocentes; por
outro, o cinismo que não conhece Deus e que ridiculariza a fé n'Ele. Nós
gritamos a Deus, para que impulsione os homens a arrepender-se, para que
reconheçam que a violência não cria a paz, mas suscita apenas outra violência
uma espiral de destruição, na qual todos no fim de contas só têm a perder. O
Deus, no qual nós cremos, é um Deus da razão mas de uma razão que certamente
não é uma matemática neutral do universo, mas que é uma coisa só com o amor,
com o bem. Nós rezamos a Deus e gritamos aos homens, para que esta razão, a
razão do amor e do reconhecimento da força da reconciliação e da paz prevaleça
sobre as ameaças circunstantes da irracionalidade ou de uma falsa razão,
separada de Deus.
O lugar no qual
nos encontramos é um lugar da memória, é o lugar do Shoá. O passado
nunca é apenas passado. Ele refere-se a nós e indica-nos os caminhos que não
devem ser percorridos e os que o devem ser. Como João Paulo II, percorri o
caminho ao longo das lápides que, nas várias línguas, recordam as vítimas deste
lugar: são lápides em bielo-russo, checo, alemão, francês, grego, hebraico,
polaco, russo, rom, romeno, eslovaco, sérvio, ucraniano, judaico-hispânico,
inglês.
Todas estas
lápides comemorativas falam de dor humana, deixam-nos intuir o cinismo daquele
poder que tratava os homens como material e não os reconhecia como pessoas, nas
quais resplandece a imagem de Deus. Algumas lápides convidam a uma comemoração
particular. Há uma em língua hebraica. Os poderosos do Terceiro Reich queriam
esmagar o povo judeu na sua totalidade; eliminá-lo do elenco dos povos da
terra. Então as palavras do Salmo: "estamos todos os dias expostos à
morte; tratam-nos como ovelhas para o matadouro", verificam-se de modo
terrível.
No fundo,
aqueles criminosos violentos, com a aniquilação deste povo, pretendiam matar
aquele Deus que chamou Abraão, que falando no Sinai estabeleceu os critérios
orientadores da humanidade que permanecem válidos para sempre. Se este povo,
simplesmente com a sua existência, constitui um testemunho daquele Deus que
falou ao homem e o assumiu, então aquele Deus devia finalmente estar morto e o
domínio devia pertencer apenas ao homem àqueles que se consideravam os fortes
que tinham sabido apoderar-se do mundo. Com a destruição de Israel, com o Shoa,
queriam, no fim de contas, arrancar também a raiz sobre a qual se baseia a fé
cristã, substituindo-a definitivamente com a fé feita por si, a fé no domínio
do homem, do forte. Depois, há a lápide em língua polaca: numa primeira fase e
antes de tudo queria-se eliminar a élite cultural e cancelar assim o povo como
sujeito histórico autónomo para o reduzir, na medida em que continuava a
existir, a um povo de escravos. Outra lápide, que convida particularmente a
reflectir, é a que está escrita na língua dos Sint e dos Rom. Também aqui se
pretendia fazer desaparecer um povo inteiro que vive migrando entre os outros povos.
Ele estava inserido entre os elementos inúteis da história universal, numa
ideologia na qual só devia contar o útil medível; tudo o resto, segundo os seus
conceitos, era classificado como lebensunwertes Leben uma vida indigna
de ser vivida.
Depois há a
lápide em russo que evoca o imenso número das vidas sacrificadas entre os
soldados russos no confronto com o regime do terror nazista; mas, ao mesmo
tempo, faz-nos reflectir sobre o trágico duplo significado da sua missão:
libertaram os povos de uma ditadura, mas submetendo também os mesmos povos a
uma nova ditadura, a de Estalin e da ideologia comunista. Também todas as
outras lápides nas numerosas línguas da Europa nos falam do sofrimento de
homens de todo o continente; tocariam profundamente o nosso coração, se não
fizéssemos apenas memória das vítimas de modo global, mas se víssemos, ao
contrário, os rostos das pessoas individualmente que acabaram naquele terror
escuro. Senti como um dever íntimo deter-me de modo particular também diante da
lápide em língua alemã. Dela emerge diante de nós o rosto de Edith Stein,
Theresa Benedicta da Cruz: judia e alemã desaparecida, juntamente com a irmã,
no horror da noite do campo de concentração alemão-nazista; como cristã e
judia, aceitou morrer juntamente com o seu povo e por ele. Os alemães, que
então foram conduzidos a Auschwitz-Birkenau e aqui morreram, eram vistos como Abschaum
der Nation como o refugo da nação. Mas agora nós reconhecemo-los com
gratidão como as testemunhas da verdade e do bem, que também no nosso povo
tinha desaparecido. Agradecemos a estas pessoas, porque não se submeteram ao
poder do mal e agora estão diante de nós como luz numa noite escura. Com
profundo respeito e gratidão inclinamo-nos diante de todos os que, como os três
jovens diante da ameaça da fornalha babilónica, souberam responder: "Só o
nosso Deus nos pode salvar. Mas também se não nos libertares, sabe, ó rei, que
nós nunca serviremos os teus deuses nem adoraremos a estátua de ouro que
erigistes" (cf. Dn 3, 17s).
Sim, por detrás
destas lápides encerra-se o destino de inumeráveis seres humanos. Eles
despertam a nossa memória, despertam o nosso coração. Não querem provocar em
nós o ódio: ao contrário, demonstram-nos como é terrível a obra do ódio. Querem
conduzir a razão a reconhecer o mal como mal e a rejeitá-lo; querem suscitar em
nós a coragem do bem, da resistência contra o mal. Querem dar-nos aqueles
sentimentos que se expressam nas palavras que Sófocles coloca nos lábios de
Antígona face ao horror que a circunda: "Estou aqui não para odiar mas
para, juntos, amar".
Graças a Deus,
com a purificação da memória, à qual nos estimula este lugar de horror, crescem
à sua volta numerosas iniciativas que desejam pôr um limite ao mal e dar força
ao bem. Há pouco pude abençoar o Centro para o Diálogo e a Oração. Nas
imediatas proximidades tem lugar a vida escondida das irmãs carmelitas, que
estão particularmente unidas ao mistério da cruz de Cristo e nos recordam a fé
dos cristãos, que afirma que o próprio Deus desceu ao inferno do sofrimento e
sofre juntamente connosco. Em Oswiecim existe o Centro de São Maximiliano e o
Centro Internacional de Formação sobre Auschwitz e sobre o Holocausto. Depois,
há a Casa Internacional para os Encontros da Juventude. Numa das Antigas Casas
de Oração existe o Centro Hebraico. Por fim está a constituir-se a Academia
para os Direitos do Homem. Assim podemos esperar que do lugar do horror nasça e
cresça uma reflexão construtiva e que recordar ajude a resistir ao mal e a
fazer triunfar o amor.
A humanidade
atravessou em Auschwitz-Birkenau um "vale escuro". Por isso desejo,
precisamente neste lugar, concluir com a oração de confiança com um Salmo de
Israel que é, ao mesmo tempo, uma oração da cristandade: "O Senhor é o meu
pastor: nada me falta. Em verdes prados me fez descansar e conduz-me às águas
refrescantes. Reconforta a minha alma e guia-me por caminhos rectos, por amor
do seu nome. Ainda que atravesse vales tenebrosos, de nenhum mal terei medo
porque Tu estás comigo. A tua vara e o teu cajado dão-me confiança... habitarei
na casa do Senhor para todo o sempre" (Sl 23, 1-4.6).
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Santa Sé (Com informações ACI Digital).
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