Todos os dias eu peço à Santíssima Virgem
Maria que me ajude a enunciar claramente a Verdade que ela portou no ventre.
Além de súplica de filho que olha para as mãos
da mãe como a serva as da sua senhora (Sl. 122,2), é uma lembrança a mim mesmo
da centralidade absoluta da Encarnação do Verbo. O Verbo Se fez Carne (Jo
1,14); a Palavra de Deus, que é a própria Verdade (Jo 14,6), tornou-Se um
bebezinho no ventre imaculado de Sua mãe, nasceu, cresceu (Lc 2,52), caminhou,
comeu, bebeu, morreu na Cruz por nós e por nós ressuscitou como primícia dos
que morremos (1Cor 15,4).
O fato de a Verdade ser uma Pessoa, de a
Verdade ter andado entre nós e fazer-Se ainda presente em Corpo, Sangue, Alma e
Divindade no Santíssimo Sacramento do altar (Jo 6,55), é o ponto central da
Boa-Nova evangélica. Sócrates, diz-nos Platão, amou a verdade. Era ela,
contudo, uma verdade apenas mental, uma mera adequação do intelecto à realidade
circundante. Nós temos, no Cristo, a chance de amar a Verdade que é Pessoa e,
nesta mesmíssima Verdade, amar à sua luz o próximo.
Ele mesmo, que é a própria Verdade, nos disse
que devemos amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos
(Mc 12, 29–31). E como é isso, de nos amarmos? Como é um amor verdadeiro a si
próprio, que possa servir de modelo para o nosso amor para com o próximo? O
enunciado deste duplo mandamento já nos dá uma dica importante. Primeiro,
devemos amar a Deus sobre todas as coisas, ou seja, nunca preferir uma criatura
ao Criador. Isto ocorre porque, como nos ensina São Tomás de Aquino a partir da
revelação da Sagrada Escritura (Ex 3,14), só Deus efetiva e objetivamente é.
Apelando para a riqueza do nosso vernáculo, a aproveitando que ninguém vai ter
a inglória tarefa de traduzir este arrazoado verborrágico para outro idioma,
podemos dizer que nós não somos, mas estamos. Só somos na estrita medida em que
participamos do Ser de Deus, como o que é gelado participa do gelo sem ser
gelo, como o ferro em brasa participa do fogo sem ser fogo.
Temos, todavia, a tentação sempre presente de
tentar “ser” em outra coisa que não Deus. Tentamos “ser” no prazer, no
dinheiro, no poder, no status, na certeza de termos razão, na ilusão de sermos
superiores, estarmos certos, salvos, que sei lá eu.
Ora, “amar uma coisa sobre Deus” é exatamente
isto. É tentar “ser” em algo que não é Deus, basear a própria identidade nalgo
que — como nós mesmos sem Deus — não é capaz de ser. Quem é você? Se a resposta é algo que você tem, algo
que você faz, algo que você prefere a outras coisas, você está perdendo o ponto
principal. Você é um ser único, muito mais único que qualquer bem de consumo,
posição social, prazer ou privilégio. E este ser foi criado por um Criador
amorosíssimo, que — e aí estamos de volta ao início deste texto — é a própria Verdade.
Amar a Deus sobre todas as coisas, destarte, é
algo que se faz amando o que cada coisa criada — eu mesmo inclusive, você inclusive, seu cônjuge, seus pais e filhos… — efetivamente é em Deus. É amar aquela criatura na sua plenitude, onde
ela se encontra ontologicamente pela ordem da Graça com a Pessoa por Quem tudo
foi criado, Que é a própria Verdade. É amar verdadeiramente.
Daí, desse amor que acontece no terreno da
Verdade, vem os corolários igualmente amorosos que o definem na prática. Quem
ama um viciado em drogas, por exemplo, ama nele a abstinência, não o abuso.
Quem ama um fornicador ou um adúltero ama nele a castidade que o faz elevar-se
acima da triste escravidão da carne. É o que quereríamos para nós mesmos, se
nos amássemos em Deus: quereríamos ser quem Deus nos criou para ser,
quereríamos que aquilo em nós que não é em Deus diminuísse em benefício da
presença divina que nos santifica (Jo 3,27–30), para que seja Cristo quem vive
em nós (Gál 2,20). Instaurare omnia in Christo, “tudo estabelecer em Cristo”.
Era este o sapientíssimo lema de S. Pio X, que pode e deve nos servir de manual
para a vida.
Temos, então, esta Verdade interior, que é a
perfeição da nossa adequação à Pessoa que é a própria Verdade, ao Ser-em-Si em
Quem somos por participação. Só somos nós mesmos quando é em Deus que somos. E
amamo-nos na estrita medida em que o que amamos em nós é aquilo em que somos em
Deus. E somos, finalmente, chamados a amar ao próximo desta mesmíssima e
exatíssima maneira: como a nós mesmos, amando Deus sobre todas as coisas. Amar
a Deus sobre todas as coisas é o modo pelo qual podemos nos amar corretamente,
de tal modo que nosso amor possa ser medida e modelo para o nosso amor ao
próximo.
E este amor tem o seu lugar na ordem da
Criação, pois a Criação é coisa sumamente ordenada. O que há de desordem nela é
culpa nossa, é fruto da concupiscência que nos leva tantas vezes a cair na
tentação de ser em algo que não é. Isto acontece com todo mundo, com toda a
Igreja militante de que fazemos parte. Somos todos filhos de Adão, e carregamos
todos as consequências do Pecado original.
Vivemos dentro de uma Criação ordenada numa
ordem complexíssima e riquíssima, como a física moderna vem comprovando ao
descobrir as fascinantes interações entre os elementos que o modelo físico
anterior percebiam como caóticas, no sentido de “desprovidas de ordem”. Não; o
caos aparente é na verdade uma ordem de complexidade fascinante, uma hierarquia
de ações inter-relacionadas de tal modo que, como no exemplo popular, uma
borboleta que bate as asas na Ásia influencia o clima na América. O pensamento
moderno, parasita que vem há coisa de duzentos tentando sufocar a Civilização
Ocidental, piora bastante esta situação ao negar liminarmente a ordem hierárquica
da Criação. Para o moderno, o homem é a medida de todas as coisas. E que homem
é este? É um homem solipsista, que sabe que existe porque pensa, mas que não
tem como ter certeza de que o próximo exista, a não ser na projeção do próprio
raciocínio (supostamente universal) ao outro. Ora, o próximo não só existe,
como sangra (Lc 10,29–37). O próximo que sofre é o Cristo (Mt 25,35–40), e o
que temos que ver nele é o Cristo. Isto é amar ao próximo como a si mesmo,
amando a Deus sobre todas as coisas.
Este amor, assim, insere-se forçosamente
dentro de uma ordem de todas as coisas, daquilo que São Tomás chamava de ratio
divina, a divina proporção de toda a Criação. Nela os pais geram os filhos e,
tendo-os preparado, lançam-nos à batalha no mundo; os mestres conduzem os
alunos à sapiência; os reis à prosperidade; os santos à perfeição. Assim como
uma árvore tem raízes profundas, enterradas no escuro húmus de onde ela retira
seus nutrientes, elevando-os à luz do sol por um forte tronco lenhoso que, por
sua vez, se subdivide em galhos cada vez menores até as folhinhas por que ela
absorve a luz do dia, toda a Criação se articula hierarquicamente. Assim como
cada um de nossos dedinhos é ligado a uma mão, que é ligada a um antebraço, por
sua vez vindo do braço, que vem do tronco, e tudo isto conduzindo em complexa
sinfonia de idas e voltas os impulsos neuronais, o sangue das trocas gasosas, e
tudo o mais que se faz necessário para que continue o milagre da animação,
assim opera toda a ordem criada.
E o moderno não consegue perceber isto.
Enquanto Deus faz uma floresta hierárquica em que cada elemento auxilia o
crescimento e o florescer do outro, de tal modo que não se poderia em sã
consciência isolar uma causa eficiente única da grandeza de cada elemento (Ez
31,3–9), a modernidade produz cópias em série, como os conjuntos habitacionais
com que os políticos provam odiar os pobres, ou o tristíssimo corpo de baile
das miríades de telas iguais repetindo as mesmíssimas inanidades furta-cor num
mostruário de loja de televisores. Ou os jovens vestidos de horrendos uniformes
a indicar pertencimento a esta ou aquela tribo de iguais, supostamente
independentes e únicos mas, na verdade, totalmente desprovidos daquela
individualidade real que teriam ao firmar em Quem É aquilo que são.
E desta recusa moderna de reconhecer a
hierarquia, que na melhor das hipóteses viram de ponta-cabeça ao fazer do
tronco representante das folhas e ignorar as raízes, surge um erro gravíssimo
no trato do próximo, uma dificuldade liminar de amar ao próximo como a si mesmo
amando a Deus acima de todas as coisas. O próximo, na verdade, torna-se
invisível ou, ao menos, tão incerto quanto o braço de Descartes. Torna-se
impossível percebê-lo no que ele é realmente, que é, como vimos, aquilo em que
na verdade é Cristo que é nele. O próximo passa a ser uma projeção de um eu que
já é, em sua origem, falso por tentar construir-se por si, sem perceber que
tudo o que ele tem de bom e verdadeiro é devido à sua inserção na ordem de
todas as coisas. O próximo passa a ser algo pior que um “outro eu”; ele passa a
ser um “outro falso eu”, em quem projetamos tudo o que não queremos encarar em
nós mesmos. Sua superioridade nos faz invejosos — a inveja é preferir a destruição de um bem a vê-lo de outro –, sua
humildade nos faz soberbos, sua beleza nos desperta ganas de enfeiá-lo, e nele
atacamos, na verdade, a nós mesmos.
O Pai-Nosso se torna uma mera sequência de
sons sem sentido, pois que sentido poderia haver em pedir com uma mão a Deus
que “perdoe nossas ofensas assim como perdoamos os que nos têm ofendido”, e na
outra buscar no próximo apenas mais e mais razões de ofensa?!
E assim nos esquecemos de que Deus criou nossa
anatomia de tal maneira que ao apontarmos o dedo indicador para o próximo,
apontamos ao mesmo tempo três dedos para nós mesmos e um para o Inferno.
Identificamos no outro aquilo que deveríamos identificar em nós mesmos, e
distorcemos tão completamente a nossa percepção que passamos a identificar o
outro não naquilo em que ele é em Deus, mas justamente naquilo que d’Ele o
separa; não no que é realmente presente, mas no que falta, no vácuo, no vazio
de ser. O próximo, que nos é próximo no próprio pecado, que como nós sangra à
beira da estrada, passa a ser para nós algo a evitar (Lc 10,33), quiçá mesmo
por razões de impureza (Nm 19,11). Confundimos a impureza no outro com o
próprio outro, sem sequer perceber que só reconhecemos alguma impureza por a
termos, e em geral em medida ainda maior, em nós mesmos.
Esquecemos da Verdade ao negar-nos a vê-lA no
próximo.
Esta armadilha, tão pronta na nossa carne, é
evidentemente aproveitada pelo Inimigo para nos arrastar mais baixo ainda. Ele
toma da Verdade como arma contra a própria Verdade, da Palavra como arma contra
o Verbo (Lc 4,1–13). A inteligência angélica do Demônio conta em seu rol de
truques preferidos atiçar nosso orgulho de amantes da Verdade, fazendo com que
ela se nos torne causa de soberba.
Percebam a sutileza da armadilha, em que muita
gente boa cai: amamos a Verdade — ainda que este amor seja
muitas vezes um amor teórico, desencarnado, quando a Verdade Se fez Carne no
ventre da Virgem Maria.
Mas amamos a Verdade, e por isso odiamos o
erro; ora, o erro nada mais é que ausência da Verdade: um espaço vago sem luz,
sem vida, sem cor, sem alma, sem Ser.
Quando, todavia, nos esquecemos de que o
Cristo, que é a Verdade, é aquele em Cujo Ser o próximo existe, abrimo-nos para
a negação da Verdade em nome dela mesma, quando falsamente reconhecemos como se
fosse o próximo o que não passa dos “buracos” em que lhe falta a Verdade.
Chamamos os buracos de queijo, e assim esvaziamos nossa percepção do queijo
real.
Basta percebermos um erro — ainda que um erro grave, ou um erro repetido, ou um erro público — para cairmos na armadilha de, usando-o, desumanizar o próximo e
negar-lhe o Ser que ele realmente tem ao perceber nele apenas o que se lhe
falta.
O adolescente ignora a profundidade e riqueza
do amor de seus pais, tomando-os por meros criados dedicados a passar suas
roupas e botar à sua frente a comida que, na sua arrogância, crê merecer. A
eles prefere algum cantorzinho idiota, que nem sabe que ele existe e, se
soubesse, riria da cara dele enquanto leva ao banco o dinheiro que dele
arrancou.
Um professor que tenha uma atuação
extremamente louvável em um campo de estudos diz uma que outra besteira acerca
de um tema que não domina, e ao invés de percebermos nisso um ponto em que ele
está vazio, em que lhe falta ser plenamente ele mesmo (ou seja, em que — sabe-se lá por que razão insondável!, dentre as tantas armadilhas que
preparamos diante de nossos próprios pés — ainda não é o Cristo que
vive nele), passamos a tratá-lo como se ele “não prestasse”, como se fosse o
Mal encarnado.
Um superior hierárquico — um padre, um Bispo, quiçá mesmo Sua Santidade o Papa — não corresponde às expectativas que nossa limitadíssima opinião formada
pelo bestialógico midiático faz de como deveria ser sua atuação, e pomo-nos a
tratá-lo como se fosse ele o servo mau e preguiçoso (Mt 25,26)… e fôssemos nós
o próprio Senhor que lhe entregou o talento. Culpamos nele não estabelecer
sobre nós seu ser, quando muitas vezes somos nós que não estabelecemos o nosso
ser em Cristo, e ele que ao Senhor é quase perfeitamente conforme.
Já é patético, na nossa sociedade, como
pervertemos institucionalmente o sentido da hierarquia ao fazer com que o
tronco dependa das folhas e a raiz não possa ser mencionada em discurso
público. Quando fazemos isso nas hierarquias eclesial, familiar, de
mestre-e-discípulo, então, o que fazemos é nos envenenar plenamente contra a
própria Verdade.
Já escrevi de passagem, em outro texto, sobre
como o Demônio está usando estas nossas fraquezas, que aqui procuro apontar
mais precisamente, para atacar o Santo Padre. Mas ele não é, nem de longe, a
única vítima. Basta olhar em volta, ou, diria mesmo eu, olhar no espelho, para
vermos como, ainda que não ataquemos o Papa, ataquemos do mesmo modo o Quarto
Mandamento ao ver em pais, mestres e autoridades não o Cristo naquilo em que
eles tiveram sucesso em basear n’Ele seu ser, mas sim o vazio onde fracassaram.
E o fazemos em nome da Verdade! Negamos a Verdade que há por nos negarmos a ver
algo que não o vazio onde ela não está, como se fosse possível a alguém ser
totalmente mau. Ora, nem o próprio Demônio é totalmente mau, pois a simples existência
já é um bem.
É por isso que a Igreja sempre foi
extremamente parcimoniosa na aplicação do extremo mais duro das punições
eclesiásticas, que consistem, em última instância, em maneiras de temporária e
emergencialmente alijar alguém da Igreja para fazer com que a pessoa sinta
falta dela e procure voltar. O interdito, a suspensão e as excomunhões — dentre as quais a excomunhão “vitanda”, que não foi abrigada pelo novo
Direito Canônico, que mandava romper totalmente os contatos com o condenado,
numa espécie de “block” de Facebook na vida real — são remédios dolorosíssimos, de último caso, que têm como objetivo
primeiro fazer despertar no doente um reconhecimento horrorizado do ponto a que
ele se deixou cair, na esperança de que isto o leve a agarrar-se àquilo em que
é Cristo que vive nele e voltar, de joelhos, à plena comunhão com a hierarquia
sagrada que o próprio Deus estabeleceu para a nossa salvação.
E eis que vemos, cada vez mais, patéticas
aplicações laicais de excomunhão “vitanda” aplicadas a pessoas que simplesmente
discordaram de nós, a autoridades, a professores, a escritores.
E eis que vemos, com enorme tristeza,
destratos ao Santo Padre e a autoridades eclesiásticas, normalmente fomentados
pela leitura irrefletida das inanidades e mentiras com que a mídia se compraz
em envenenar a população contra a Igreja. Voam excomunhões de lado a lado, como
na caricatura feita por Carlos Heitor Cony dos campeonatos de futebol no
Seminário, em que supostamente os padres excomungavam regularmente times inteiros
como quem desse cartão amarelo.
Ora, isso é faltar à Verdade, ainda que — e principalmente — isso ocorra em nome de um apego desordenado à
mesmíssima Verdade.
Ao lidarmos com o próximo, é nosso dever para
com a Verdade — para com o Cristo, Pessoa que amamos e Que nos
ama — pensar o melhor (Mt 18,21–22), ainda que seja
sábio esperar sempre o pior (Rom 7,19). Na prática, isto significa que devemos
abordar o que vem do outro — mais ainda o que vem de
quem por dever de ofício se pode pressupor que saiba o que diz e faz — da melhor maneira possível. O que devemos procurar é o Bem que lá está,
não um suposto mal a apontar, como se não estivéssemos no mesmo gesto apontando
três dedos para nós e um para o Inferno ao fazê-lo.
Seja em atos ou em palavras, o que nos cabe é
buscar no próximo o que há de bom, de puro, de verdadeiro, de Cristo, em suma.
Pois é o Cristo que devemos buscar nele, não o vácuo, não a escuridão, não o
frio, não o vazio. O mal não existe; ele é ausência de bem, como o frio de
calor e a escuridão de luz. Não existindo, ele não pode estar na definição
substancial de um ente. Mesmo alguém que via de regra se engana, alguém que
tenha entregado a vida a um erro, vai — como um relógio duas
vezes ao dia — estar certo de vez em quando. É este acerto
que devemos procurar e prezar; o erro não interessa, por não existir.
“Mas, professor, então o senhor estaria
dizendo que devemos ignorar o erro?!” — já ouço a pergunta
horrorizada de quem me conhece e sabe que há tantos e tantos anos me dedico ao
firmíssimo combate apologético contra o erro.
Ora, respondo, é claro que não.
Devemos combater o erro. O erro — o pecado –; não o seu refém — o pecador. Assim como um
atirador mira na cabeça do psicopata que mantém uma arma na cabeça de uma
criança para salvá-la, tomando, todavia, cuidado extremo em evitar a esta
qualquer dano, nós devemos atacar, e atacar duramente, o pecado e o erro, sem
jamais cair na besteira de identificá-lo com a pessoa que ele mantém refém.
Se um pai, uma autoridade eclesiástica ou um
professor eminente, que fazem enorme bem em suas ações baseadas no Cristo,
erram, ainda que errem feio, em outro ponto, eles não passam a ser este outro
ponto; ao contrário, como vimos, este é um ponto em que eles estão vazios, um
ponto em que se lhes falta diminuir-se para que cresça o Cristo e assim eles
possam ser plenamente eles mesmos, o que só ocorrerá quando Ele for tudo neles.
O que, diga-se de passagem, via de regra depende ainda de uma substancial
estadia no Purgatório.
Devemos, ao contrário, ajudá-los a se libertar
do erro que os mantém refém, combatendo duramente o erro e ignorando o
irrelevante detalhe de quem propugna por ele. O erro é um vazio, lembro mais
uma vez, uma ausência. É algo a preencher, não algo com que se deva ou sequer
possa identificar uma pessoa, menos ainda algo a procurar sistematicamente,
como fazem os que examinam os ditos desta ou daquela figura de autoridade numa
caricatura negativa do afã dos bereanos (At 17,11), em que para não acolher a Palavra
buscam na Escritura desculpas para condená-la. Examinam para dizer que não é
assim, jogando fora o trigo com o joio (Mt 13,29).
Pessoas não interessam, senão na estrita
medida em que nelas está a Pessoa que nos interessa e que amamos. É ele que
está presente no cerne da própria existência de cada um, pois — como vimos — somos apenas por participarmos do Ser-em-Si
que é Deus. É, do mesmo modo, Ele que cresce na medida em que cada um cresce e
se fortalece na graça e na sabedoria, como Ele mesmo fez ao assumir nossa
humanidade (Lc 2,40). Ver o que é Ele, o que é d’Ele, no próximo, ao invés de
focar o que não é, é a própria definição de amar a Deus sobre todas as coisas.
Se focarmos o que não é d’Ele, estamos entregando às coisas criadas e
desordenadas, não a Deus, o nosso amor.
Nos casos em que temos contato direto com a
pessoa que está sendo mantida refém pelo erro, tanto melhor: podemos conversar
com ela, primeiro a sós (Mt 18,15), depois — se não bastar — com a ajuda de outros que por ela sejam
respeitados e ouvidos (Mt 18,16), e, aos poucos, ajudá-la assim a preencher do
Cristo o vazio que há num ponto de seu ser. O foco é a libertação dela, é
ajudá-la a preencher o que se lhe falta, por sabermos que ela não é nem pode
ser substancialmente uma ausência de ser! Não faria absolutamente sentido algum
fazer da diferença uma briga pessoal, em que na verdade estaríamos — como vimos acima — confundindo a pessoa com aquilo que lhe falta
e levando-a a apegar-se mais e mais ao vazio, aumentando exponencialmente o
estrago causado pelo erro. Tratemos pessoal e discretamente com as pessoas com
quem pudermos fazê-lo, e violentamente combatamos o erro, que é impessoal e
objetivo, e não deve ser ligado por nós à identidade de quem quer que seja,
pois o não-ser não é nota de ente algum.
No caso de pessoas a quem não temos acesso — autoridades eclesiásticas geograficamente distantes são o exemplo mais
evidente — devemos rezar mais e mais por elas, pedindo a
Deus que envie a elas alguém que possa ajudá-las como o faríamos se pudéssemos.
Ao mesmo tempo, claro, tanto num como noutro caso, compete-nos preencher, o
mais eficientemente possível, as brechas na realidade deixadas pelo espalhar-se
do espaço vago do erro que usa essas pessoas. Combatamos o erro e peçamos a
Deus pelas suas vítimas, dentre as quais a mais fortemente vitimada é a mais
fortemente dominada por ele.
É no céu, não no renome do mundo, que deve
estar o nosso tesouro. Apeguemo-nos à Verdade, que é uma Pessoa, e deixemos de
lado as pessoas do mundo, as brigas e vaidades com que a carne, o mundo e o
Diabo tentam afastar nossa atenção do afã da nossa salvação.
Só para completar, pedindo perdão pelo abuso
de sua paciência, recomendo ainda que leia os capítulos 6 e 7 do Evangelho
segundo São Mateus, tendo em mente o que escrevi acima.
Peço que rezem por mim.
Carlos Ramalhete
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Católicos Online
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