A fé, no sentido bíblico, não é nunca uma realidade meramente
privada, individual!
Um israelita piedoso jamais dirá: “Creio em Deus privadamente e pronto. Estou salvo!”
Um cristão dos primeiros séculos jamais diria: ‘Aceito Jesus como meu Salvador individual, particular. Estou salvo!”
Esta ideia de fé não tem nada a ver com a Santa Escritura!
Na mentalidade das Santas Escrituras, a fé é adesão a uma história, a história de um povo que caminha com Deus: no Antigo Testamento, crê, é entras na Aliança que o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó fizera com Israel no Sinai; na Nova Aliança, crê é acolher Jesus como Messias Salvador e pelo Batismo, entrar no Novo Povo, Igreja nascida da água e do Espírito de Cristo. Assim, a história de Israel e da Igreja torna-se minha história; história do amor apaixonado de Deus pelo Seu povo e por toda a humanidade.
Desconhecer ou esquecer esta história é desconhecer o Senhor, é perder a possibilidade de entrar em verdadeiro diálogo existencial com Ele e com os irmãos, caindo-se num sentimentalismo subjetivo e intimista! Esquecer esta história é a origem de todo o pecado: “Apenas fica atento a ti mesmo! Presta muita atenção em tua vida, para não te esqueceres das coisas que os teus olhos viram, e para que elas nunca se apartem do teu coração, em nenhum dia da tua vida” (Dt 4,9).
Quando o Povo de Deus esquece o seu Senhor - que é sua segurança,
riqueza e esperança - perde o rumo e começa a buscar falsas seguranças: “o
homem vive somente de pão”; “sereis como deuses”. Era esta a queixa que o
Senhor apresentou através de Oséias: “Israel esqueceu Aquele que o fez e
construiu palácios!” (8,14).
Por isso mesmo o Povo santo deve fazer contínuo memorial de tudo
quanto o Senhor fez por ele. A fé é, assim, um fazer memorial, um voltar
sempre, no rito sagrado, àquilo que o Senhor realizou em nosso favor: no Antigo
Testamento, libertando o Seu povo; no Novo Testamento, ressuscitando e
glorificando para nós o Imolado Jesus!
Durante a Última Ceia, o Senhor Jesus dizia a Seus discípulos:
“Fazei isto em memorial de Mim!”
As gerações que nos ligam a Jesus através dos tempos transmitiram fielmente este "isto", para que se guardasse a memória viva do Cristo ressuscitado. Cada Domingo toda Comunidade reunida celebra como Igreja, Povo santo de Deus, a Morte e Ressurreição do Senhor Jesus, alimenta-se da mesma Palavra, aclama com a mesma convicção, traz suas oferendas com a mesma generosidade, come e bebe o Corpo e o Sangue do Ressuscitado para encontrar sua identidade e sua Vida em Cristo.
O próprio Cristo Jesus nos transmitiu o que tinha recebido do Seu povo, transfigurando tudo na plenitude do Espírito, pois não veio abolir a Lei e os profetas, mas dar-Ihes pleno cumprimento (cf. Mt 5,17).
Ainda hoje, na celebração pascal judaica, o pai de família adverte: “Em cada geração, cada um deve considerar se como se tivesse pessoalmente saído do Egito, como está escrito: ‘Explicarás então a teu filho: isto é em memorial do que o Senhor fez por mim, quando saí do Egito’. Portanto é nosso dever agradecer, honrar e louvar, glorificar, celebrar, enaltecer, consagrar, exaltar e adorar a Quem realizou todos esses milagres para nossos pais e para nós mesmos!”
É, portanto, um memorial que Israel fazia cada ano ao subir para
Jerusalém; memorial das libertações que o Senhor realizou em seu favor. O povo
reconhecia que sem o socorro divino “Ter-nos-iam tragado vivos, tal o fogo de
sua ira! As águas nos teriam inundado, a torrente chegando ao pescoço; as águas
espumejantes chegariam ao nosso pescoço!” (Sl 124/123)
Pois bem: diante das graves calamidades que o Povo de Deus do Antigo
Testamento experimentou, tendo visto o socorro do Senhor, só no resta, como aos
israelitas, exclamar: “Bendito seja o Senhor! Não nos entregou como presas a
seus dentes; fugimos vivos, como um pássaro da rede do caçador: a rede se rompeu
e nós escapamos!” (Sl 124/123)
O Senhor Jesus fez, na Sua existência, memorial da história de Seu
povo:
veja-se, por exemplo, o texto da fuga para o Egito (cf. Mt 2,14s): “do Egito
chamei o Meu filho!” - o Senhor Jesus refaz o caminho de Israel: Ele mesmo, em
pessoas, é o verdadeiro Israel.
Do mesmo modo nas tentações do deserto; onde Israel caiu, Jesus venceu o Diabo...
Se Israel foi a videira que deu uvas azedas (cf. Is 5), Jesus é a verdadeira videira, que dá bons frutos (cf. Jo 15).
Quando Ele, na Última Ceia, nos convida: “Fazei isto em memorial de
Mim!” vai além da simples reprodução do gesto eucarístico. Melhor: no Seu gesto
eucarístico, tudo está presente, tudo está sintetizado maravilhosamente:
Ele nos convida a renascer na pobreza de Belém,
a anunciar a Boa Nova nos caminhos da vida,
a experimentar a rejeição da parte de muitos,
a carregar a cruz e subir a Jerusalém com Ele
e morrer e ressuscitar e, enfim, subir ao Pai!
Fazer memorial do Senhor consiste, então, em enxertar nossa vida na
vida de Cristo e de Seu Corpo, que é a Igreja! Tudo isto é possível na força do
Espírito do Ressuscitado que, pelo Memorial eucarístico, enche a vida da
Igreja, enche a Igreja de Vida divina!
Eis, portanto, a força do memorial: viver cada momento de minha vida
e da vida da Igreja e do mundo no fluxo e refluxo das graças e dos pecados do
Povo da Aliança, ao qual pertencemos. Como Daniel na fornalha ardente:
“Oh! Não nos entregues para sempre, por causa do Teu Nome, não repudies a Tua aliança; não retires de nós a Tua misericórdia por amor de Abraão, Teu amigo, e de Isaac, Teu servo, e de Israel, Teu santo, aos quais falaste, prometendo-Ihes...”
Por amor de nosso pai Abraão, de nossos patriarcas Isaac e Jacó, por amor de Jesus nosso Senhor, vamos prosseguir, na força do memorial, presente no santíssimo Memorial eucarístico do Sacrificio pascal do Senhor, a nossa subida à Jerusalém celeste, destino do nosso caminho neste mundo.
Coloquemos os desafios que tivermos de enfrentar neste caminho da vida à luz da fé e da esperança do Povo da Aliança antiga e nova e deixaremos que o Sangue do Senhor Jesus purifique os nossos corações e resgate as nossas vidas. Se assim o fizermos, experimentaremos a afirmação triunfante do final do salmo 124/123: “O socorro nosso é o Nome do Senhor, que fez o céu e a terra!”
Penso que vale sempre a pena insistir novamente que toda esta
potência salvadora do memorial nós a experimentamos concretamente em cada
Celebração eucarística. Por isso mesmo a minha teima em afirmar que não se
brinca com a liturgia, não se inventa, não se instrumentaliza nunca o rito
litúrgico! É algo grande demais, sagrado demais, divino demais; é o âmago mesmo
da vida e da fé da Igreja! Na liturgia se mergulha, com santo temor e tremor,
com alegria no coração, com o olhar fixo no Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus
Cristo... E aí, de modo misterioso, mas concretíssimo, realíssimo, a salvação
acontece no aqui e agora da nossa vida comunitária e pessoal e o “naquele
tempo” da salvação do Senhor, torna-se “hoje” na nossa vida!
Dom Henrique Soares da
Costa
Bispo de Palmares - PE
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