Tradicionalmente, a
Igreja Católica sempre admitiu a possibilidade da aplicação da pena de morte.
Este posicionamento pode ser encontrado nos vários Catecismos antigos, nos
documentos papais e nos escritos dos grandes teólogos da Igreja. Diante disso,
procede a afirmação de que o Papa João Paulo II, em sua encíclica Evangelium
Vitae, concluiu - e ensinou - que a pena de morte deve ser evitada?
Nem a Igreja mudou o
seu ensinamento nem o Papa João Paulo II mudou o ensinamento da Igreja. O que
mudou foi a circunstância em que a Igreja pode ou não aplicar
esse ensinamento moral.
Para que um ato possa
ser moral ou imoral não basta que ele seja avaliado em si mesmo, é preciso
levar em conta três fatores: o ato em si mesmo, a intenção e as circunstâncias.
O ato em si mesmo pode ser bom. Ex. o rezar. Contudo, se for feito com a intenção errada - por vaidade, por exemplo - pode ser inadequado. Apesar de ser
bom, o ato de comer, por exemplo, se for praticado em uma circunstância errada pode ser também inadequado. Ex. comer dentro da Igreja. Assim,
para que a moralidade de um ato seja realmente boa, é preciso avaliar também a
intenção e a circunstância.
Em relação à pena de
morte essa avaliação também se aplica. Para a Igreja, o ato da pena de morte em
si mesmo é bom. Isso se dá porque por detrás dessa ação existe a realidade da legítima e proporcionada defesa. O que vem a ser isto? O Catecismo da Igreja Católica esclarece:
"A legítima defesa das pessoas e das sociedades não é uma exceção à
proibição de matar o inocente, que constituiu o homicídio voluntário. A ação de
defender-se pode acarretar um duplo efeito: um é a conservação da própria vida,
o outro é a morte do agressor... Só se quer o primeiro; o outro, não.
O amor a si mesmo permanece um princípio fundamental da moralidade. Portanto, é legítimo fazer respeitar seu próprio direito à vida. Quem defende sua vida não é culpável de homicídio, mesmo se for obrigado a matar o agressor:
‘Se alguém, para se defender, usar de violência mais do que o
necessário, seu ato será ilícito. Mas, se a violência for repelida com medida,
será lícito... E não é necessário para a salvação omitir este ato de comedida
proteção para evitar matar o outro porque, antes da de outrem, se está obrigado
a cuidar da própria vida.’ (Sto Tomás de Aquino).
A legítima defesa pode não ser um direito, mas um dever grave, para
aquele que é responsável pela vida de outros." (CIC 2263-2265)
Ou seja, numa
situação em que um inocente está sendo agredido injustamente, as duas vidas -
tanto da vítima, quanto do agressor - têm a mesma dignidade perante Deus,
contudo, o fato de um ser vítima e outro ser um criminoso permite que a vítima
use dos meios necessários para defender-se - até mesmo tirar a vida do
criminoso. Assim, é um ato moralmente reto fazer uso da força para uma legítima
e proporcionada defesa.
Esse mesmo pensamento
pode ser aplicado entre duas sociedades. É o caso da guerra justa. Quando uma
sociedade inocente está sendo agredida por uma sociedade criminosa, por
legítima e proporcionada defesa, a sociedade agredida pode se defender
realizando uma guerra que é justa a fim de defender seus cidadãos, seu solo,
sua soberania.
E no caso de um
indivíduo contra uma sociedade? É a questão da pena de morte. Trata-se de uma
situação em que uma pessoa está lesando o bem comum e não tem remissão,
portanto, deve ser retirado do convívio da sociedade, seja pela prisão perpétua
ou pela pena capital.
Nos dias atuais, com
o desenvolvimento das sociedades é possível retirar uma pessoa do convívio
social de forma definitiva, sem necessariamente ter que aplicar a pena de
morte. Além do mais, é preciso admitir que os sistemas judiciários não são
infalíveis e que em alguns países, eles são verdadeiros instrumentos de
injustiça. Assim sendo, a pena de morte não encontra no mundo real a sua
aplicabilidade. É isso que o Papa João Paulo II afirma na sua encíclicaEvangelium Vitae, no número 56:
"56. Nesta linha, coloca-se o problema da pena de morte, à volta do
qual se registra, tanto na Igreja como na sociedade, a tendência crescente para
pedir uma aplicação muito limitada, ou melhor, a total abolição da mesma. O
problema há-de ser enquadrado na perspectiva de uma justiça penal, que seja
cada vez mais conforme com a dignidade do homem e portanto, em última análise,
com o desígnio de Deus para o homem e a sociedade. Na verdade, a pena, que a
sociedade inflige, tem « como primeiro efeito o de compensar a desordem
introduzida pela falta ». A autoridade pública deve fazer justiça pela violação
dos direitos pessoais e sociais, impondo ao réu uma adequada expiação do crime
como condição para ser readmitido no exercício da própria liberdade. Deste
modo, a autoridade há-de procurar alcançar o objetivo de defender a ordem
pública e a segurança das pessoas, não deixando, contudo, de oferecer estímulo
e ajuda ao próprio réu para se corrigir e redimir.
Claro está que, para bem conseguir todos estes fins, a medida e a
qualidade da pena hão-de ser atentamente ponderadas e decididas, não se devendo
chegar à medida extrema da execução do réu senão em casos de absoluta
necessidade, ou seja, quando a defesa da sociedade não fosse possível de outro
modo. Mas, hoje, graças à organização cada vez mais adequada da instituição
penal, esses casos são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes.
Em todo o caso, permanece válido o princípio indicado pelo novo
Catecismo da Igreja Católica: « na medida em que outros processos, que não a
pena de morte e as operações militares, bastarem para defender as vidas humanas
contra o agressor e para proteger a paz pública, tais processos não sangrentos
devem preferir-se, por serem proporcionados e mais conformes com o fim em vista
e a dignidade humana »." (EV)
O Catecismo da Igreja
Católica trata de forma compilada o mesmo assunto, em seus números 2267 e
seguintes:
"O ensino tradicional da Igreja não exclui, depois de comprovadas
cabalmente a identidade e a responsabilidade do culpado, o recurso à pena de
morte, se essa for a única praticável para defender eficazmente a vida humana
contra o agressor injusto.
Se os meios incruentos bastarem para defender as vidas humanas contra o
agressor e para proteger a ordem pública e a segurança das pessoas, a
autoridade se limitará a esses meios, porque correspondem melhor às condições
concretas do bem comum e estão mais conformes à dignidade da pessoa
humana."
Assim, existe uma
possibilidade legítima do recurso à pena de morte. Todavia, quanto à
circunstância, no mundo real ela não encontra ocasião de aplicabilidade, pois
existem outros meios de se alcançar a legítima e proporcionada defesa que não a
morte.
Conclui-se, então,
que somente tendo a noção real do valor do homem enquanto imagem e semelhança
de Deus é possível defender e valorizar a vida humana. O Evangelho da vida é
algo que a Igreja quer pregar e promover. É esta a ideia de João Paulo II em
sua encíclica. E é por isto que a Igreja hoje, embora teoricamente aprove a
possibilidade da pena de morte, já não encontra mais ocasião para a sua
aplicação, pois existem outros meios incruentos para retirar o indivíduo do
convívio social.
Nota: Em agosto de 2018, o Papa Francisco alterou o parágrafo 2267 do Catecismo da Igreja Católica, tornando a pena de morte inadmissível. Saiba mais clicando AQUI.
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Fonte: Christo Nihil Praeponere
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