O que está em jogo neste confronto que às vezes
parece uma áspera batalha? Não o que a Igreja crê em obediência ao Evangelho.
Em particular, não está em jogo a doutrina sobre a indissolubilidade do
matrimônio cristão e também não uma transação da Igreja sobre a família hoje.
Não, em jogo está a dimensão pastoral, a conduta a
assumir com quem falhou e com a sociedade contemporânea. E, neste sentido,
precisamente a Igreja, para ser ministra, tem a tarefa de determinar a
disciplina renovando-a e tornando-a mais fiel ao Evangelho.
Seja dito com clareza: o que escandaliza é a
misericórdia!
Pareceria impossível, mas não podemos esquecer que
Jesus não foi condenado e entregue à morte porque se manchara com algum crime
segundo o direito romano, nem porque havia desmentido a palavra de Deus contida
nas leis e nos profetas, e sim pelo seu comportamento demasiado misericordioso:
anunciava de fato o perdão, sem recorrer a uma justiça retributiva e punitiva,
gostava de frequentar prostitutas e pecadores conhecidos como tais e estar em
sua mesa.
O seu modo de comportar-se revelou que a
misericórdia não é um corretivo para mitigar a justiça, não é nem mesmo um
socorro para quem não conhece a verdade: a justiça de Deus é sempre
misericórdia, e mesmo, é a misericórdia que estabelece a justiça e torna
resplendente e não deslumbrante a verdade. Os inimigos de Jesus eram peritos da
santa Escritura (escribas) e homens “religiosos” que confiavam em si mesmos e
no seu comportamento escrupulosamente observante.
É, portanto, revelador que uma oposição análoga
emerja também contra o Papa Francisco e o caminho que tenta traçar para a
Igreja, o êxodo para as periferias existenciais de uma humanidade sofredora e
mendicante de amor, ternura, compaixão de um modo sempre mais incapaz de
proximidade e de fraternidade.
Já tive modo de escrevê-lo: se o Papa for fiel ao
Evangelho encontrará oposição, e até rejeição e desprezo porque não poderá ser
mais do que seu Senhor. Profetizou-o Jesus simplesmente lendo as próprias
vivências e as dos profetas antes dele. O que espanta é que perante os papas
precedentes não se avançavam criticas ou contestações, mas lhes colocavam perguntas,
eram apontados como “ não católico”, enquanto hoje, graças à liberdade que
Francisco quis assegurar ao debate, alguns chegam a suspeitar que ele permita
deixar manipular um confronto que na Igreja deveria sempre ser escutado pelo
outro, reconhecimento que o sucessor de Pedro, o Papa, “caminha junto”
(syn-odos) aos bispos, mas presidindo a sua comunhão com um carisma e um
mandato próprio que provém do próprio Senhor.
Retornamos ao tempo do Concílio, às contestações
mais ou menos manifestas, às murmurações contra João XXIII e Paulo VI, mas isto
não deve espantar.
Em sua história, a Igreja conheceu horas mais
críticas, embora estas vivências não ofereçam um testemunho de parresìa e de
comunhão fraterna. Espanta que esta contestação vem daqueles a quem o Papa
Francisco quis ter próximo de si no governo da Igreja ou encarregou de ajudá-lo
para traçar um caminho de reforma das instituições.
Mas, este dado revela quem é o atual Papa: não é um
Pontífice que descarta quem é diverso dele, não é um “reinante” que marginaliza
quem tem outras óticas pastorais. Todos podem constatar esta sua conduta que o
prejudica e lhe torna cansativo o seu serviço à Igreja.
Além disso, há na Igreja quem quereria que
Francisco fosse somente um breve parêntesis, quem afirma que “este Papa não lhe
agrada”, que o considera “débil na doutrina”, quem não gosta do seu ecumenismo
que quer abraçar todos os batizados e não criar muros perante os não cristãos e
os homens e as mulheres do mundo.
Por escolha de Bento XVI participei de dois sínodos
e não vejo, no que está em curso, um procedimento radicalmente diverso:
publicar o resumo da discussão sem fornecer os nomes das intervenções
individuais e as frases por eles pronunciados, por exemplo, concorda em não
classificar os bispos em tradicionalistas e inovadores, em conservadores e
liberais na base de afirmações apodíticas que não refletem a incidência havida
pelo confronto e pelo diálogo no decurso do debate.
As diversidades são, de fato, legítimas, sobretudo
numa assembleia verdadeiramente católica, na qual os bispos são porta-voz de
seu povo. Ser “servo da comunhão” é árduo para o Papa Francisco, mas os
católicos acreditam também que sobre ele está a promessa feita a Pedro pelo
próprio Jesus: “Orei para que a tua fé não diminua e tu confirmes os teus
irmãos”!
Esta é uma hora de apocalipse na Igreja e não será
a última: cada um assuma as próprias responsabilidades nos confrontos da
comunhão católica e, mais ainda, nos confrontos do Evangelho ao qual diz querer
obedecer.
Enzo
Bianchi,
leigo, prior do Mosteiro de Bose
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Fonte: Repubblica
Disponível
em: IHU Unisinos
Tradução:
Benno Dischinger
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