¡HAGAN LÍO!
Este é um texto para católicos. Uma questão “ad intra”,
uma questão completamente intra-eclesial. Como a internet é pública, é evidente
que acatólicos a ele têm acesso. Peço, contudo, a gentileza de fazer com este
texto o que fariam ao ouvir sem querer uma discussão familiar acontecendo do
outro lado de uma sebe e ignorá-la ou, melhor ainda, retirar-se. Não estou
lavando roupa em público, sim expondo a minha preocupação com algo que afeta o
interior desta família que é a Igreja Católica Apostólica Romana. Mas vamos lá.
Confesso que tenho uma séria dificuldade em me botar na pele das pessoas que
ficam falando absurdos acerca do Santo Padre o Papa Francisco. A impressão que
eu tenho é de uma espécie de loucura coletiva que acomete alguns; gente
normalmente inteligente, gente que normalmente não cairia nem por um segundo na
esparrela dos meios de comunicação de massa, engole de repente sem pestanejar
absurdos grotescos, e se coloca numa posição precaríssima diante não apenas do
Papa, mas da própria Verdade.
Como comentei outro dia, a única explicação que percebo possível é — e falo absolutamente sem
qualquer intenção de fazer analogias ou metáforas, sim de expressar a verdade
objetiva dos fatos — a ação do Inimigo.
Temos, sabemos todos, três
inimigos: a carne, o mundo e o demônio. Cada um deles age sobre o anterior.
A carne somos nós, nossas vaidades, nossos desejos desordenados (de prazer, de honraria, de conforto,
etc.). É a carne que nos leva a, por exemplo, sofrer a tentação de mentir para
parecer melhor, de cometer adultério, de entregar-se a prazeres gastronômicos
exagerados, etc. É um inimigozinho tinhoso e chato, por estar sempre ali. A
criação de bons hábitos ajuda, e muito: se nos acostumamos a viver castamente,
é evidentemente mais fácil manter a castidade que se vivemos numa gangorra em
que um exagero para um lado é compensado por um exagero no sentido oposto, e
vice-versa, até a exaustão. Custodiar a carne significa lidar disciplinadamente
com as nossas próprias fraquezas, reconhecê-las claramente, e fazer a escolha
consciente de aceitar a Graça a cada momento. Não é fácil; na verdade, seria
impossível se não fosse a graça que Deus nos oferece incessantemente pelas mãos
carinhosas de Maria Santíssima, Medianeira de todas as graças.
Em seguida, sofremos o aguilhão do mundo. O mundo apela à carne, como disse
acima: ele tenta nos convencer de que é bom fazer parte da turminha, de que nós
“merecemos” sei-lá-qual prazer ou conforto, de que “ninguém merece” — menos ainda eu! — este ou aquele dissabor, etc. O mundo, em suma, se
disfarça de amigo nosso, quando na verdade ele é amigo é da carne, que é nossa inimiga. O mundo não quer o nosso bem, por mais que pareça,
porque o que ele oferece e busca não é o bem verdadeiro, o Bem-em-Si, que é
Deus, sim um sucedâneo, uma contrafação pobre e vazia, que consiste na
satisfação temporal de desejos imanentes. O mundo orienta-se em função da
satisfação dos desejos desordenados que nós temos — ou, melhor dizendo, que nos têm! — por termos herdado de Adão as consequências do
Pecado Original. É o mundo, por exemplo, que propositadamente confunde a
existência de mecanismos atuantes com uma suposta bondade intrínseca
deles. É o que acontece em economia, com o capitalismo dizendo que “não é uma
ideologia, porque o mercado existe de por si”, quando na verdade o problema não
é, evidentemente, a existência do mercado — que nada mais é que a soma de todas as transações
voluntárias feitas pelos descendentes de Adão –, sim a ideia absurda de que a
soma de todas as vontades desordenadas de todos os homens marcados pelo Pecado
seria de alguma forma algo ordenado, bom e puro e não,
como é evidente, a mesma desordem escrita em escala maior.
Outro exemplo do mesmo mecanismo nós encontramos na apresentação atual dos
prazeres de natureza sexual: se existe o desejo homossexual, então ele é
forçosamente bom, e a sociedade deve tratá-lo exatamente em pé de igualdade com
a constituição de uma família. Ora, isto é evidentemente absurdo, e o absurdo é
tornado claro quando se avança no mesmo caminho e se percebe que se esta
argumentação funciona é necessário que se diga o mesmo acerca da pedofilia,
zoofilia, necrofilia, etc. Abismo atrai abismo. Assim, é o mundo que, apelando
à carne, tenta nos levar a este tipo de erro. Ele é nosso inimigo. E neste inimigo a gente já começa a encontrar algum indício da gênese imediata
dos ataques ao Papa.
Disse-nos Nosso Senhor: “Se o mundo vos aborrece, sabei que, primeiro do que a
vós, me aborreceu a Mim. Se vós fosseis do mundo, o mundo amaria o que era seu;
mas, porque vós não sois do mundo, antes Eu vos escolhi do meio do mundo, por
isso o mundo vos aborrece.” (Jo 15,18–19).
O mundo ataca aquele que Deus escolheu, ataca Seu apóstolo e profeta, porque
nele tenta atacar o próprio Cristo.
A Igreja é inimiga do mundo. Ela não é inimiga apenas de um que outro lado em
alguma guerrinha intestina idiota que venha a estar acontecendo neste momento:
para a Igreja, faz exatamente tanto sentido ser “parte da coalizão da direita”
quanto ser parte de sei-lá-qual-claque em Constantinopla do Século VIII. São
irrelevâncias passageiras, briguinhas que simplesmente não se registram quando
se percebe as questões a partir de um prisma mais longo, e a Igreja as percebe
a partir do prisma do Eterno.
Para quem está preso no bestialógico imanente, contudo, aquilo tudo parece
importantíssimo. Mutatis mutandis, nós temos a tentação (mundana!) de nos
perder nas minúcias de questões que, poucas décadas depois, só serão conhecidas
por estudiosos dedicados a um campo limitadíssimo. Só para ficar na política, e
na política recentíssima: quem saberia, hoje em dia, debater os erros e acertos
éticos e políticos da Campanha da Legalidade de 1961?! Mesmo quem viveu
intensamente aqueles momentos há de, no máximo, considerar hoje em dia que era
coisa boa ou coisa ruim, sem se ater às minúcias que então alimentaram toda uma
fantástica confabulação de razões teóricas e práticas.
Este ou aquele prelado ou clérigo pode até se manifestar sobre esta ou aquela
questão, mas a manifestação eclesial nunca há de ser sobre a questão local e
temporal, sim sobre a Verdade eterna. E é isso que o mundo não aguenta.
O mundo quer que o Papa seja um fantoche dele, como são fantoches dele todos os
atores do teatro político, inclusive e especialmente os líderes das religiões
naturais. O mundo não quer o Papa a lembrá-lo da Eternidade que ele quer
esquecer. O mundo não tem o menor interesse em ser lembrado da dignidade
essencial de cada criatura humana. O que o mundo quer é um Dalai Lama, babando
platitudes e servindo de fiel da balança nas briguinhas territoriais e
administrativas da montanhosa divisa entre o Império do Meio e o subcontinente
indiano. É prático ter um sujeito de que todos gostam, sorridente, falando
coisas afáveis, disposto a ser usado como instrumento de pressão contra Pequim
pelo Ocidente e contra o Ocidente por Pequim. Tanto Pequim quanto o Ocidente
são o mundo, são do mundo. São inimigos da Igreja.
É a um Dalai Lama que o mundo desejaria reduzir Sua Santidade: alguém prático e
útil nesta ou naquela questão de interesse imanente. Mas isto não é possível,
porque ele é maior que o mundo. Ele é o Vigário de Cristo, e dele disse o
Senhor: “O que vos recebe, a Mim recebe; e o que Me recebe, recebe Aquele que
Me enviou” (Mt 10,40).
A voz dele é a voz do Cristo, não uma voz do mundo. Ele é insubsumível: não é
possível ao mundo reduzi-lo a componente de alguma categoria, para o bem ou
para o mal. Mas é isso o que acontece. No caso específico do Santo Padre
Francisco, então, o desespero dos atores do mundo é visível, palpável mesmo.
Ele ocorre por uma razão simples: o Papa atual partiu para o ataque. Ele é (justamente)
percebido pelo mundo como um perigo.
Enquanto São João Paulo II teve, efetivamente, um efeito
enorme na geopolítica passageira do século passado ao derrubar a União
Soviética usando basicamente a força de sua enorme personalidade, o essencial
de sua ação era intra-eclesial. Tal como este texto, era um Papa “ad intra”,
para dentro. Sua ação geopolítica foi apenas a cereja do bolo. Ele herdou de
Paulo VI um trono esvaziado e sem poder de fato algum, e dedicou seu longo
papado a reconquistar o poder que seu antecessor havia jogado no lixo. Criou
regras novas para forçar os maus Bispos a sair por idade, recodificou o Direito
Canônico, começou a tentar consertar algo da liturgia, criou mecanismos
maravilhosos de comunicação direta com os fiéis — da página do Vaticano
na internet às viagens apostólicas — e, assim, conseguiu reverter o curso autodestrutivo em que
a Igreja parecia ter-se lançado no pontificado anterior. Nos seus últimos anos
de vida do colosso de Varsóvia, o trabalho foi encetado por aquele que veio a ser seu sucessor, gloriosamente reinando sob o nome de Bento
XVI.
A derrubada da União Soviética, senhoras e senhores, foi algo que São João
Paulo II fez nas horas vagas. Um efeito colateral de sua preocupação maior e de
seus esforços mais direcionados. Em seu pontificado, é um mero detalhe que
empalidece diante da importância de dezenas de feitos que ainda terão seus
efeitos sentidos daqui a séculos, quando o comunismo será tratado nas aulas de
História como uma forma passageira de loucura coletiva que fez algum estrago no
Século XX.
A inevitabilidade de sua percepção como pertencendo a um lado da “Guerra Fria”
por aqueles cuja capacidade de percepção não vai além do imanente e do
geopolítico imediato, no entanto, fez com que se tornasse possível ao mundo
tentar subsumi-lo. Missão inglória e impossível: ele não se encaixaria jamais
nas ridículas caixinhas em que se pretendeu colocá-lo como membro de uma
espécie de gangue dos três mosqueteiros, junto a Ronald Reagan e Margaret
Thatcher! Chega a ser engraçado, na verdade, que se possa ter uma visão tão
míope e tão limitada; a mim, esta ideia de um triunvirato anti-soviético de que
S. João Paulo II teria feito parte parece mais algum delírio em que, digamos,
uma mosquinha que voa numa determinada direção acha que a frente fria que
avança com raios e cúmulos-nimbos de quilômetros de altura na mesma direção é
sua “aliada”. Ao contrário da frente fria, todavia, que é apenas uma força da
natureza, São João Paulo II era um homem santo e educado, e percebia
perfeitamente a existência e o valor daqueles que vivem presos na limitadíssima
dimensão do imanente. Ele tratou com enorme generosidade Ronald Reagan, mas
seria patético colocar a este na dimensão daquele.
Nas pegadas de São João Paulo II, e com o foco ainda mais estreito nas questões
internas da Igreja que o haviam ocupado durante os tantos anos em que foi o
braço direito de seu antecessor, quis a graça divina que tivéssemos o
privilégio de ter como Papa Bento XVI. Não é o tipo de coisa que se possa medir
objetivamente, mas provavelmente ele foi o Papa mais erudito da História, e um
dos mais sábios teólogos que já viveram. Esta sabedoria, somada à preocupação
com o rumo da Igreja na Europa em que ele testemunhou o auge da destruição da
Civilização Ocidental, todavia, tiveram um efeito colateral inesperado: seus
esforços no sentido de unir a Igreja, restaurar a liturgia (que é o objetivo
precípuo da Igreja: o culto a Deus!) e corrigir as heterodoxias doutrinárias
ainda espalhadas, mesmo após tantos anos de combate, fizeram com que o mundo o
visse como simplesmente irrelente. As questões que interessaram a Bento XVI
são simplesmente invisíveis para o mundo. O Demônio, contudo, evidentemente não o viu assim. E entramos agora, finalmente, no terceiro dos inimigos que mencionei no
princípio deste texto.
Quem é o Demônio? O Demônio é uma inteligência pura, um ser espiritual criado e poderosíssimo,
que se levanta contra Deus e Seus Santos. O objetivo do demônio é afastar-nos
de Deus. Ele não é um deus, nem poderia jamais ser considerado, sequer em
sonhos, como “concorrente” de Deus. Não; na melhor (ou pior, dependendo do
ponto de vista) das hipóteses, o demônio é como um mosquitinho chato zumbizando
ao redor. Comparado a um ser humano sozinho e entregue às próprias forças, o
demônio tem muito poder. Comparado à graça que Deus nos dá, o demônio não é
nada.
Ao contrário da carne — que somos nós, que é a nossa
desordem interna, nossos desejos, instintos e paixões desordenados — e do mundo — que nada mais é que o coletivo do
homem — todavia, o Demônio é uma
pessoa. Uma inteligência. Não estamos mais falando de simples desordens
internas, que nos afetam de maneira mais ou menos previsível, como a direção de
um carro que puxe sempre um pouco para o mesmo lado e nos faz criar o hábito da correção. Tampouco falamos, aqui, do resultado previsível
da multiplicação exponencial de taras semelhantes, na economia capitalista ou
no panorama “amoroso” hipersexualizado da pós-modernidade. Não. Estamos falando
de um ser inteligentíssimo, tramando ardis. Estamos falando de quem arma
“traições ao seu calcanhar” (da Virgem Maria — Gn 3,15).
São João Paulo II, como eu disse, conseguiu recuperar enorme parcela do poder
papal. Bento XVI pegou esta parcela, e começou a orientar a Igreja na reta direção. Numa analogia militar, ele fez com que os soldados voltassem
ao básico: à pontaria, à ordem-unida, à obediência. Recuperou o equipamento.
Reformulou o oficialato, e deu-lhes práticas e exercícios estratégicos
ambiciosos. Para o Capeta, isso era má notícia. Péssima notícia. O mundo tão sob o controle
dele — que é, afinal, o Príncipe
deste Mundo! –, e de repente aparecem estes fuzileiros navais botando ordem na
casa! A Igreja, por enquanto nesta nossa historinha ainda trancada na caserna,
foi ficando mais apavorante para os espiões do Maligno — que os tem muitos dentro da Igreja.
A primeira reação do Pai da Mentira, claro, foi apelar à mentira. Bento XVI
viu-se assim alvo de ataques inesgotáveis, pintando-o de nazista(!), racista,
preconceituoso, fascista, malvado, cruel, apologista da pedofilia(!) e o
que mais conseguissem imaginar as hostes infernais. Se ele lembrava um fato
histórico, como no seu célebre discurso de Regensburgo, dava assim provas de
preconceito. Se falasse contra o preconceito, dava provas de simpatias nazistas
e obscurantismo. E por aí foi. Ninguém conseguia sequer ouvir o Papa fora da
Igreja. A impressão que se tinha pela mídia era que a Igreja estava vazia e
abandonada, sendo propositadamente desmanchada por um velho nazista louco,
empenhado em buscar o mal e o ódio. Nada, evidentemente, poderia estar mais
distante da verdade; mas é assim que funciona a ação do Pai da Mentira. Ao
mesmo tempo, o foco intraeclesial da ação do Papa Bento XVI fez com que fosse
relativamente fácil ao mundo subsumi-lo em categorias absurdas e completamente
distantes da realidade.
Uma das muitas e irrelevantes batalhas ora em curso é a entre os remanescentes
das consequências geopolíticas das grandes narrativas ideológicas que varreram
o mundo no século passado. De um lado, munida de uma listinha de imperativos
morais categóricos alinhados a Mammon, o que se convencionou chamar a Direita.
Sua epítome é a direita norte-americana, a claque cativa do complexo
industrial-militar com que a nova Babilônia devasta o mundo e espalha a
iniquidade. Fingindo diferença, mas na verdade essencialmente igual em tudo, a
não ser num punhado de imperativos morais categóricos diversos (um lado quer a
pena de morte para assassinos, a outra para bebês inocentes, mas ambos preferem
a morte à vida, por exemplo) cuja única função é simular diferença real,
encontramos a “esquerda” americana (ou globalizante, transnacional, na medida
em que são as mesmas fundações multinacionais de sempre que a bancam). Na
verdade, não há dois lados ali, sim um só. A política externa babiloniana é a
mesma sob Bush ou sobre Obama, sendo a alternância entre republicanos e
democratas apenas um truque barato para manter o simulacro de representação
democrática que a narrativa ideológica demanda para consumo interno. Do outro lado, buscando antes um poder autocrático e jupiteriano, a nova
roupagem dos atores que no passado se diziam a Esquerda, agora abraçados a
ícones e arrastando consigo barbudíssimos patriarcas cismáticos enquanto fazem
alianças com os mesmos velhos clientes comunistas remanescentes do século
passado.
Correndo por fora, o velho inimigo islâmico, agora na forma moderna do
salafismo wahabita, perturba sem realmente ameaçar os demais atores,
alimentando-se dos restos de ambos e refocilando-se nos escombros da Europa
dantes cristã.
Na premente necessidade de subsumir Bento XVI em alguma categoria, então, o que
fez o Demônio foi inseri-lo na narrativa da direta americana, como herdeiro
putativo do patético manto de auxiliar de Ronald Reagan com que tentaram
revestir as fortíssimas costas de São João Paulo II, em que tão pequeno pedaço
de pano desapareceria de vista por demasiadamente liliputiano. Ele passou a ser
usado — contrariamente a tudo o que
ele dizia e ensinava, claro, mas não é como se alguém
prestasse atenção no que diz aquele a quem o próprio Senhor deu a missão de
confirmar os irmãos na Fé, não é mesmo? — como símbolo de adesão à listinha peculiar de imperativos
morais categóricos do partido republicano. Sua imagem foi “adestrada”, domada, reduzida, subsumida.
Esta besteira, infelizmente, conseguiu convencer muita gente boa, mas
preguiçosa, que não se deu ao trabalho de ir verificar o que efetivamente
ensina o Papa. Qualquer Papa. Todo Papa. E, assim, a absurda proposição de que
a Igreja Católica apoiaria o Capitalismo(?!) passou a ser aceita
irrefletidamente, dando ao Demônio o que pareceu ser momentânea vantagem
tática. A Igreja nada mais seria que um dos vários fatores de uma narrativa
ideológica capitalista, assumindo o papel que antes da sua queda final na
irrelevância coube ao anglicanismo.
A ausência forçada de Bento XVI do palco “ad extra”, do teatro geopolítico, de
que ele teve que se ausentar para conseguir botar ordem na casa, fez com que a
mentira diabólica pudesse espalhar-se nas periferias mentais da Igreja. A
preocupação eurocentrada de Bento XVI, mais ainda, levou-o a simplesmente
ignorar o fenômeno que acabo de descrever, considerando-o irrelevante por
desenrolar-se no seio do que — a não ser por razões políticas — é apenas um
distante território de missão, relativamente desimportante para a Igreja como
um todo: os Estados Unidos. Americanos falando besteira sobre irrelevantes
temas imanentes não poderiam ser levados a sério. Muito mais importante no
cuidado pastoral daquele território periférico, para ele, seria por exemplo
cuidar do sindicato de freirinhas de lá, completamente dominado por ideólogas
alucinadas.
A missão de reforma intraeclesial de Bento XVI, todavia, chegou a um impasse. O
essencial foi feito, mas faltava-lhe a capacidade política e o carisma
necessário para encarar a parte mais chatinha, ainda que importante: cuidar das
primas-donas. A Cúria romana (o governo da Igreja), uma das mais antigas cortes
em funcionamento ininterrupto no mundo, tornara-se um emaranhado de feudos a
digladiar-se em intrigas e vaidades. Apesar dos hercúleos esforços do Papa,
desde antes mesmo de sua eleição, depravados ainda ocupam lugares importantes
na administração curial. Uma quinta-coluna a serviço do Inimigo serve na hierarquia,
mais fiel a este que grande parcela de seus colegas Àquele a Quem todos
deveriam estar servindo. E, inspirado pelo Santo Espírito, Bento XVI venceu
pela humildade a armadilha que o Pai do Orgulho armara à Igreja.
Inesperadamente, ele renunciou e convocou um Conclave.
Do Conclave, a maior surpresa do Espírito Santo desde a eleição do Papa
polonês. Da periferia das periferias da realidade eurocêntrica da modernidade
decadente, mas do centro de onde está hoje a alma da Igreja — a América latina — veio o Papa jesuíta, o
Papa Francisco. Seu dístico é uma confissão do medo que sentiu, e que vence a
cada segundo pela graça de Deus: “Miserando atque eligendo”, “tendo
misericórdia e escolhendo”, expressão usada na liturgia para se referir à
escolha de S. Mateus, um pobre publicano, por Nosso Senhor Jesus Cristo. O
Cristo viu o publicano e teve pena dele. E, ao mesmo tempo, escolheu-o e
deu-lhe pesada e dura responsabilidade, que acabaria por levá-lo ao martírio e,
por este, à coroa da Glória.
Vê-se que o Santo Padre encarou como martírio a pesadíssima tiara petrina, mas
abraçou corajosamente a graça divina e foi em frente. Queria sumir, queria
desaparecer, mas foi em frente.
O mais interessante é que ele jamais fora uma figura carismática. Quando
arcebispo de Buenos Aires, ele era conhecido como um burocrata de cara fechada,
uma figura séria e conscienciosa, mas absoluta e completamente desprovida de
carisma pessoal. Todo esse “charme” dele é pura graça de Deus, uma iluminação
necessária ao desempenho do duríssimo papel para o qual Nosso Senhor, tendo
pena dele e escolhendo-o, suscitou-o.
E o Papa jesuíta, como todo jesuíta verdadeiro (pois que os há falsos é fato, e
ele mesmo comeu o pão que o diabo amassou na mão dos muitos jesuítas
latinoamericanos vendidos ao Inimigo, propagadores da “teologia da
libertação”), é um missionário. E um missionário muito especial, por ser membro
de uma verdadeira tropa de elite da Igreja, a Companhia de Jesus. Como o nome
indica, é uma organização militar, uma organização de guerra que leva a batalha
ao inimigo, ao invés de ficar meramente se defendendo do cerco. A voz do
Mestre, para os jesuítas, é fundamentalmente a que diz “Eis que Eu vos mando
como ovelhas no meio de lobos. Sede, pois, prudentes como as serpentes, e
simples como as pombas.” (Mt 10,16).
São mPara entender como é temível um soldado da Companhia de Jesus, podemos recorrer à História.uitíssimos os santos missionários jesuítas, e aqui mesmo, na
América latina, as missões jesuíticas foram uma experiência de sociedade cristã
que até hoje nunca foi alcançada no mundo. Prefiro, contudo, pegar apenas um
exemplo, um soldado em especial que tem um lugar no meu coração: o Servo de
Deus Matteo Ricci (6.X.1552–11.V.1610). Ricci nasceu nos Estados Papais (atual
Itália), e dedicou-se à evangelização da China. Chegou lá literalmente com a
roupa do corpo após um naufrágio, e reescreveu de memória a Bíblia, o Breviário
e o Missal. Aprendeu a língua nativa, compôs dois dicionários chinês-português,
e ganhou a vida por muitos anos com um cursinho preparatório para concursos
públicos. Estudou a fundo a filosofia de Confúcio, e usou-a de maneira tão
sábia como degrau para a evangelização que até hoje seu manual de apresentação
do cristianismo a confucianos é empregado na evangelização de toda a região
influenciada por aquela filosofia, não só na Igreja, mas também entre
protestantes.
Quando começou a trabalhar na China, Ricci vestia-se como um monge budista,
porque queria demonstrar ser clérigo. Notando, contudo, que os monges budistas
eram percebidos pela população como sodomitas lascivos e corruptos, passou a
usar trajes de filósofo acadêmico; seria o equivalente a um sábio chinês que,
no Ocidente atual, usasse um blazer de tweed com reforços de couro nos
cotovelos.
Prudente como uma serpente, simples como uma pomba: assim é um missionário
jesuíta. E é assim que tem agido, desde o primeiro dia, aliás desde o primeiro
minuto, o Santo Padre. Ele foi eleito; retirou-se em oração, pediu a Deus
forças, e foi à varanda abençoar seu povo. Ele mesmo demorou a entender a
dimensão da responsabilidade que lhe caíra sobre os ombros, e provavelmente
nós, brasileiros, temos uma parcela na responsabilidade de tê-lo feito dar-se
conta plenamente do peso que o Senhor colocou sobre seus cansados ombros, ao recebê-lo,
com os jovens do mundo inteiro, na Jornada Mundial da Juventude que fora
preparada para Bento XVI.
Bento XVI deixara-se pautar pela imprensa, dando-lhes um alvo estático, um
lobisomem empalhado. O Papa Bento da mídia não era ninguém; era apenas um símbolo
de tudo o que há de careta, atrasado e ridículo no mundo. Só abria a boca (ou
antes, a imprensa só noticiava um seu pronunciamento) para dizer obviedades
sobre “os dogmas centrais da Igreja: aborto, homofobia e proibição da
camisinha”. O fato de estas questões tão prementes aos olhos do mundo serem
absoluta e completamente laterais em comparação ao cerne salvífico da mensagem
cristã desaparecia na artimanha diabólica com que Bento XVI fora tornado
inofensivo ao mundo.
Já o Papa Francisco, a cada pronunciamento, desde que subiu ao trono de Pedro,
puxa o tapete da imprensa. Ele o faz o tempo todo, mesmo porque ele não tem
como se dar ao luxo ou ao desfrute de calar-se; só o que pode fazer é o que
faz: pregar incessantemente a Verdade, e garantir que tenhamos todos acesso
àquilo que ele disse. Quem não procura e crê na imprensa peca, pois tudo está
disponível, sempre, em várias línguas e de graça. Eles não sabem de onde vêm as coisas que ele diz, não entendem (como já não
entendiam as de Bento XVI), relatam tudo errado (como sempre, com qualquer
Papa), mas não conseguem, de jeito nenhum, botá-lo numa caixinha. E ele
consegue, com isso, atrair a atenção das pessoas para a Igreja e, mais que
isso, fazer com que seja extremamente difícil pregar a versão-imprensa da
Igreja (que seria basicamente um bando de esquisitões antissexo que vive para
proclamar os dogmas centrais da proibição absurda do aborto, da homofobia e da
proibição da camisinha enquanto sodomiza menininhos).
No meio das notícias sai até, de vez em quando, porque o
repórter não se dá conta, parte do anúncio do Evangelho, ora vejam só. Já é
muitíssimo mais do que o conseguido por qualquer um dos seus antecessores
imediatos. Ele levou a batalha ao campo do adversário. Reagrupou as tropas junto às Portas
do Inferno para atormentar o Maligno. Não se deixou fixar em um ponto do campo
de batalha, não se deixou utilizar por ninguém — nem a direita, nem a esquerda, nem ninguém –,
surpreendendo sempre quem espera algo diverso da pura e inadulterada mensagem do Cristo.
O Papa Francisco nos apresenta, a cada passo, aquela Verdade essencial da Fé
Cristã: A Segunda Pessoa da Santíssima Trindade é o Caminho, a Verdade e a
Vida. A Verdade é uma Pessoa, não uma noção intelectual, não um “ponto de
vista”, não um lado de uma guerrinha política. Uma Pessoa: o próprio Cristo,
nascido da virgem Maria, que caminhou, suou, comeu, bebeu, e por nós morreu e
ressuscitou.
Este Papa nos indica sem cessar o valor da oração verdadeira, da devoção
tradicional e popular, da Fé tal como ensinada pela avó ao netinho amado ao pé
do fogão. Da Fé, em suma, viva, em fortíssimo contraste com a Fé
intelectualizada e fria que ainda remanesce como uma quase-ideologia nos porões
da Europa descristianizada. A dele é uma Fé puramente eclesial, uma Fé de
cerne, de cepa latino-americana. E o Demônio se apavora, e tenta de tudo.
Tenho algumas décadas de experiência em labor missionário, e uma regra é
básica: quando estamos fazendo algo que é bom, algo que vai conquistar terreno
ora em posse do Inimigo, ele contra-ataca. Os ataques dele são perfeitamente
previsíveis: imagens (demônios têm o poder de projetar imagens mentais, mas não
de dobrar a vontade das pessoas), coincidências desagradáveis (panes, problemas
mecânicos e, principalmente, elétricos, etc.), desavenças causadas por
problemas de compreensão, aumento da irritabilidade das pessoas estranhas de
que depende indiretamente a ação apostólica, etc. São sinais claríssimos, que
qualquer um que já tenha se dedicado a perturbar o Demônio conhece. E são estes
os sinais que perseguem o Santo Padre.
Tendo já tido o local de uma série de palestras invadido por enxames de moscas — Belzebu é o Senhor das Moscas –, por exemplo, é-me
facílimo perceber de onde vieram as dezenas de cobras que infestaram a Missa campal do Santo Padre no Paraguai, picando 14 fiéis. Pra um sujeitinho
porcaria como eu vêm as moscas: para o Santo Padre, a artilharia é bem mais
pesada!
Do mesmo modo, as imagens delirantes que o Inimigo planta no mundo, pintando o
Santo Padre como ligado a todo tipo de personagem bizarro, distorcendo os seus
discursos ou simplesmente inventando absurdos que não deveriam merecer um
milionésimo de segundo de atenção (coisas como o Papa ter dito que o Corão e a Bíblia seriam a mesma coisa!, este tipo de absurdo surreal), são marcas
claríssimas de ação demoníaca. É imaginativo demais para ser apenas a ação do
mundo, e ao mesmo tempo demonstram a falta de imaginação verdadeira que assola
os demônios. As mentiras são sempre as mesmas, sempre ensaiadinhas.
E enquanto isso o Papa continua em frente, agindo como missionário, e
arrancando vitória após vitória de Satanás, enquanto os escravos que o Demônio
fez no mundo latem como cachorrinhos convencidos de que são eles que expulsam
da porta os caminhões que passam pela estrada em alta velocidade. Tudo o que
ele diz, de maneira ainda mais clara e cristalina que as belíssimas e profundas
exegeses beneditinas, aponta o caminho do Cristo, da Igreja. É o Papa mais
eclesiocêntrico da História recente, talvez só comparável a S. Pio V. A Igreja
do Papa Francisco não é aquele lamentável restinho de intelectuais trancados
num porão e cercados de bárbaros ateus do pessimismo beneditino: é a Igreja das
senhoras do Apostolado da Oração, marchando de terço na mão contra as Portas do
Inferno, que jamais prevalecerão, e já de dentro das ardenas arrancando seus
netinhos amados a tempo pra janta. É a Igreja em que o próprio Cristo, a Pessoa
que é a Verdade, o Caminho e a Vida, nos impele à ação missionária. A Igreja
que cresce, que ataca e conquista território, ao invés de comiserar-se e
defender-se ou, como pateticamente queria convencer-nos o Inimigo que seria boa
coisa, submeter-se a servir de arma para algum lado de uma guerrinha idiota
entre facções do imanentismo. E o Demônio se apavora.
Eu, pessoalmente, confesso — como já escrevi, no começo deste texto — que tenho enorme dificuldade em entender como
“chegam lá” os que saem apregoando absurdos acerca do Papa. É bem verdade que
não fico lendo o que a imprensa leiga noticia, por saber que só encontrarei besteiras. Leio, sim, com muito gosto, as
transcrições de todos os seus pronunciamentos públicos, que recebo na
mala-direta gratuita do V.I.S.. Assino a mala-direta desde o tempo de São João
Paulo II, mas só o Papa Francisco conseguiu me conquistar, conseguiu me fazer
ir com gosto ler o que antes eu apenas olhava na diagonal em busca de algum
tema que me interessasse.
Isso ocorre porque os discursos do Santo Padre atual são discursos
missionários, discursos que nos levam a examinar a nossa própria vida, nossa
própria alma; não são discursos acerca de um belo ponto da fascinante Verdade
que admiramos como quem admirasse uma bela joia ou obra de arte, mas instruções
de um Pai amoroso para que consertemos nossa própria alma, nossos próprios
interesses. Para que vejamos o Cristo onde Ele realmente está: no Céu, na
Igreja, no Altar, no Sacramento, no pobre, no doente, no prisioneiro. E,
vendo-O, amemo-l’O.
E vai-se ele à cova dos leões, ao ninho de onde sai toda a guerra e toda
mentira, no coração da Besta, no Congresso da Babilônia, lembrar do valor
absoluto e infinito da vida humana e do amor de Cristo. E vai ele ainda às
portas abertas do Inferno na terra, encontrar o asqueroso ditador cubano, e
dá-lhe um livro do padre jesuíta que tentou ensinar-lhe a Verdade quando jovem
e foi por isso expulso da ilha-prisão. E vai ele à ONU, e aqui, e ali, e a toda
parte, seguindo os passos do grande São João Paulo II, mas desta feita não
apenas para arregimentar as tropas da Igreja, sim para lançá-las em batalha.
¡HAGAN LÍO!, bradou o Papa aos jovens na JMJ: levem a confusão às hostes do
Maligno!
E é este o brado deste bravo soldado jesuíta, chamando-nos todos, nós seus
filhos a ele confiados pelo próprio Cristo, para que comprovemos que, não!, as
Portas do Inferno não prevalecerão: vamos derrubá-las, deitá-las por terra, e
atormentar em casa o Rei da Mentira.
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
Viva Santo Inácio!
Ad Maiorem Dei Gloriam!
IHS!
_____________________
Carlos Ramalhete / M.
Nenhum comentário:
Postar um comentário