A palavra cânon
vem do grego kanón = régua, que por extensão passou a
significar catálogo.
Na linguagem
católica há livros protocanônicos (catalogados em primeira
instância), que os protestantes chamam simplesmente “canônicos”.
Há livros
deuterocanônicos (catalogados em segunda instância, depois de discutidos), que
os protestantes têm como “apócrifos”. São sete: Tobias,
Judite, Eclesiástico, Baruque, Sabedoria, 1/2 Macabeus, além de fragmentos de
Daniel e Ester.
Há outrossim
livros apócrifos, que os protestantes designam como pseud-epígrafos
(=falsamente intitulados): Evangelhos de Tomé, de Pedro, de Nicodemos...
2. Os
critérios de inspiração bíblica
A S. Escritura
não define o seu catálogo, de modo que é preciso consultar outras instâncias
para poder afirmar que tal ou tal livro é inspirado por Deus. – E quais seriam
essas instâncias?
1) Há quem diga que “O Espírito Santo afirma claramente
que a Bíblia é inspirada por Deus”. Esta é uma noção muito subjetiva, que
qualquer personagem pode professar a respeito do Alcorão, dos Vedas...
2) A inspiração divina pode ser averiguada pela inspiração
que a Bíblia causa no crente. Com outras palavras: o livro é inspirado porque
inspira. – Ora são muitos os livros que inspiram, e, por vezes, mais do que
alguns livros bíblicos; ver a propósito as narrativas de guerra de Josué.
3) A sublimidade de estilo do livro o comprovaria como
inspirado. – A propósito observamos que muitos livros bíblicos foram redigidos
em estilo pouco elegante; tenha-se em vista o Apocalipse, que emprega
construções gregas correspondentes a “nós vai”, “eu lhe digo: Toma teus
papéis”.
4) O autor do livro e seu nome garantem a inspiração. –
Ora há vários livros cujo respectivo autor é ignorado; ver Hb.
Ainda que um
livro trouxesse o rótulo: “inspirado por Deus”, não se lhe poderia dar crédito,
pois é muito fácil dizer isto sem prova ulterior.
Por conseguinte
o critério de inspiração e canonicidade há de ser depreendido de algo de fora
da Bíblia, ou seja, da tradição oral, que é anterior à escrita e a acompanha
sempre, através do Magistério da Igreja.
3. Dois
catálogos do Antigo Testamento
Deve-se notar
que os judeus tinham dois catálogos de sua literatura sagrada:
- o de Jâmnia,
cidade do Sul da Palestina, onde os rabinos se reuniram por volta do ano 90 para
delimitar seu catálogo e evitar que os escritos cristãos se aglutinassem aos do
Antigo Testamento. Tais critérios eram fortemente sugeridos pelo nacionalismo
de Israel, que desde 587 a.C, estava sob o jugo estrangeiro; assim estipularam
que todo livro sagrado deveria ter sido escrito em hebraico (não em aramaico
nem em grego); e somente na terra de Israel poderia ter sido inspirado (não no
Egito nem na Babilônia). Por força destes critérios não foram reconhecidos os
sete livros ditos “deuterocanônicos”;
- o catálogo de
Alexandria, onde havia uma famosa colônia judaica, que falava uma língua
estrangeira (grego) e vivia em terra estrangeira. Os judeus tanto assimilaram o
linguajar local que foram traduzindo a Bíblia do hebraico para o grego entre
250 e 100 a.C. Essa tradução é também dita “dos Setenta” por causa de uma
lenda, que afirmava ser ela obra de setenta e dois homens, que, encerrados em
cubículos independentes uns dos outros, traduziram as páginas sagradas do mesmo
modo. Essa tradução grega contém os sete livros deuterocanônicos e alguns
outros livros tidos como sagrados. Eis, porém, que os Apóstolos e evangelistas,
escrevendo em grego, citaram o Antigo Testamento na versão dos LXX; é o que se
depreende os seguintes exemplos:
Em Mt 1,23, o
evangelista usa o vocábulo “virgem” (parthénos) do texto grego
em vez de “jovem” (almah em hebraico).
Em At 7,14s
Estêvão diz que Jacó levou para o Egito 75 descendentes (LXX) em vez de dizer
70 como se lê no texto hebraico. Cf. Gn 46,26s.
Em At 7,43
Estêvão cita um deus pagão como Renfan (LXX) em lugar do nome hebraico
“Quijum”.
Estes dados
demonstram que a tradução dos LXX não era utilizada somente pelos judeus de
Alexandria, mas também pelos da Palestina. Em conseqüência deste amplo uso dos
LXX as gerações cristãs foram propensas a aceitar não somente o texto dos LXX,
mas também seu catálogo mais amplo. Isso suscitou hesitações entre cristãos dos
três primeiros séculos, mas finalmente a dúvida foi superada pelo
reconhecimento dos deuterocanônicos em 393 por parte do Concílio Regional de
Hipona, que emitiu um decreto sobre o assunto adotando o cânon amplo, como se
lê a seguir:
“Devemos
agora tratar das Escrituras Divinas. Vejamos o que a Igreja Católica
universalmente aceita e o que deve ser evitado: Começa a ordem do Antigo
Testamento: um livro da Gênese, um do Êxodo, um do Levítico, um dos Números, um
do Deuteronômio, um de Josué (filho de Num), um dos Juízes, um de Rute, quatro
livros dos Reis, dois dos Paralipômenos, um livro de 150 salmos, três livros de
Salomão (um dos provérbios, um do Eclesiastes, e um do Cântico dos Cânticos).
Ainda um livro da Sabedoria e um do Eclesiástico. A ordem dos Profetas: um
livro de Isaías, um de Jeremias com Cinoth (isto é, as suas lamentações), um
livro de Ezequiel, um de Daniel, um de Oséias, um de Amós, um de Miquéias, um
de Joel, um de Abdias, um de Jonas, um de Naum, um de Habacuc, um de Sofonias,
um de Ageu, um de Zacarias e um de Malaquias. A ordem dos livros históricos: um
de Jó, um de Tobias, dois de Esdras, um de Ester, um de Judite e dois dos
Macabeus. A ordem das escrituras do Novo Testamento, que a Santa Igreja
Católica Romana aceita e venera são: quatro livros dos Evangelhos (um segundo
Mateus, um segundo Marcos, um segundo Lucas e um segundo João). Ainda um livro
dos Atos dos Apóstolos. As 14 epístolas de Paulo Apóstolo: uma aos Romanos,
duas aos Coríntios, uma aos Efésios, duas ao Tessalonissenses, uma aos Gálatas,
uma aos Filipenses, uma aos Colossenses, duas a Timóteo, uma a Tito, uma a
Filemon e uma aos Hebreus. Ainda um livro do Apocalipse de João. Ainda sete
epístolas canônicas: duas do Apóstolo Pedro, uma do Apóstolo Tiago, uma de João
Apóstolo, duas de outro João (presbítero) e uma de Judas Apóstolo (o zelota)”.
É de notar que
tal cânon não assumiu todos os livros contidos no cânon dos LXX: Odes de
Salomão, 3/4 Esdras, 3/4 Macabeus... o que só se explica pela ação do Espírito
Santo guiando sua Igreja. Aliás foi o Espírito prometido por Jesus à Igreja
quem orientou os trâmites para se chegar ao cânon autêntico.
A definição de
Hipona foi confirmada por concílios regionais posteriores no Ocidente. Quanto
ao Oriente, o Concílio de Trulos (692) repetiu a definição dos concílios
anteriores, ficando assim o cânon amplo usual em toda a Igreja. Houve, sem
dúvida, vozes destoantes, como a de São Jerônimo. Eis que foi para Belém
estudar hebraico com os rabinos e lá assumiu o cânon de Jâmnia, mas mesmo assim
traduziu para o latim os deuterocanônicos. Na Idade Média Hugo de São Vítor
(1141) também abraçou o cânon restrito. Eram vozes isoladas, que não
prevaleceram sobre o pensamento comum da Igreja.
No século XV, em
1454 a primeira Bíblia impressa por Joseph Gutenberg continha os
deuterocanônicos, 50 anos antes da Reforma protestante.
O Concílio de
Trento (1545-1563) nada acrescentou à Bíblia, foi Martinho Lutero quem eliminou
da Bíblia os deuterocanônicos, adaptando-se ao Sínodo de Jâmnia.
Note-se porém,
que o próprio Lutero traduziu para o alemão os deuterocanônicos.
Observa o Prof.
Alessandro Lima:
“Felizmente
alguns estudiosos protestantes em contato com os testemunhos dos primeiros
cristãos têm constatado a verdade. É o caso do historiador J.N.D Kelly:
‘Deveria ser
observado que o Antigo Testamento admitido como autoridade na Igreja era algo
maior e mais compreensivo que o Antigo Testamento protestante [...] ela sempre
incluiu, com alguns graus de reconhecimento, os chamados apócrifos ou
deuterocanônicos. A razão para isso é que o Antigo Testamento que passou em
primeira instância nas mãos dos cristãos era.... a versão grega conhecida como
Septuaginta... a maioria das citações nas Escrituras encontradas no Novo
Testamento são baseadas nelas preferencialmente do que na versão hebraica...
nos primeiros dois séculos... a Igreja parece ter aceitado a todos, ou a
maioria destes livros adicionais, como inspirados e trataram-nos sem dúvida
como Escritura Sagrada. Citações de Sabedoria, por exemplo, ocorrem em 1
Clemente e Barnabé... Policarpo cita Tobias, e a Didaché cita Eclesiástico.
Ireneu se refere à Sabedoria, à história de Susana, Bel e o Dragão (livro de
Daniel), e Baruc. O uso dos deuterocanônicos por Tertuliano, Hipólito, Cipriano
e Clemente de Alexandria é tão freqüente que referências detalhadas não são
necessárias’” (KELLY,1978).
Um parecer
semelhante é do também protestante Leonard Rost:
“Algumas
dessas obras [os deuterocanônicos] foram acolhidas nas coletâneas de livros
sagrados que, de acordo com o testemunho dos grandes unciais gregos do século
VI, foram adotados pela Igreja cristã em solo egípcio; mas por certo não o
teriam sido, se já não fizessem parte de uma coletânea judaica. Só assim se
explica o motivo pelo qual esses escritos encontraram acolhida e gozaram do
mesmo prestígio que o Cânon hebraico que, por razões de ordem lingüística,
quanto mais tempo se passava, menos acessível se tornava aos cristãos na língua
original” (ROST, 1980, p. 19-20).
Infelizmente as
alterações do Cânon Bíblico não ficaram somente por conta dos Protestantes. A
Igreja Ortodoxa Russa a partir do séc. XVII também retirou os livros deuterocanônicos
do AT de suas Bíblias. Os livros 3 Esdras e 3 Macabeus foram declarados
canônicos nos Concílios Ortodoxos de Jassy na Romênia (1642) e Jerusalém
(1672). A Igreja Ortodoxa Copta da Etiópia tem 81 livros ao todo na Bíblia,
contendo a mais no NT “Atos de Paulo”, “1 Clemente”, “Pastor de Hermas”, etc.
No AT da Igreja Etíope é adicionado o “Livro dos Jubileus”, o “Livro de
Enoque”, além de 2 Esdras, etc. A peshita (Bíblia da Igreja Ortodoxa Siríaca)
exclui 2 Pedro, 2 e 3 João, Judas e Apocalipse” (pp. 95).
4.
Objeções protestantes
Os protestantes
procuram justificar sua posição, acusando os livros deuterocanônicos de ensinar
heresias; assim, por exemplo:
1) a remissão dos pecados mediante a esmola
e Tb 4,10; 12,9; Eclo 3,33. Essa prática, dizem nega a eficácia redentora do
sacrifício de Cristo.
A propósito
observamos: o sacrifício de Cristo é posterior a tais práticas caritativas. O
livro dos Provérbios (10,12) propõe a mesma tese; seria, por isto, necessário
eliminá-lo do cânon?
O Novo
Testamento ensina a mesma doutrina; ver Mc 9,41; Lc 11,41. Jesus confirma o
valor das esmolas juntamente com outras formas de caridade. Ver Mt 6,2: “Quando
deres esmola, não faças como os hipócritas...” Cf. 1Pd 4,8; At 10,31.
2) a vingança e o ódio dos inimigos em Eclo
12,6 e Jt 9,4, contradizendo Mt 5,44-48 (“orai por vossos inimigos”). – A
respeito vale a pena lembrar que o Eclo pertence ao Antigo Testamento, onde
estava em vigor a lei do talião, apresentada em Ex 21,24; Lv 24,20; 19,19-21.
3) a prática do suicídio em 2Mc 14,41. –
A propósito vem o caso de Sansão que se suicida; vêm ainda Jz 9,54; 16,28s; 1Sm
31,4s; 2Sm 16,23. Deveriam tais passagens ou tais livros ser eliminados do
cânon por causa do crime que narram?
4) ensino de artes mágicas em Tb 6,8s. –
A respeito observamos em Tb 8,3 que não é Tobias quem expulsa o demônio, mas é
o anjo Rafael. Havia interesse em ocultar a Tobias ação do anjo. Mais: em Jo
9,6, Jesus cura o cego usando saliva. Em Tg 5,14 há a instrução referente ao
uso do óleo para aliviar os enfermos. Seriam práticas mágicas? Não. São
primícias dos sacramentos.
5) Prática da mentira em Jt 11,13-17 e Tb
5,15; 19. – Ora, no Antigo Testamento lê-se que Abraão mandou sua esposa Sara
mentir, dizendo ela que era irmã dele; cf. Gn 20,21. Mais: Jacó, auxiliado por
sua mãe, mente ao pai cego dizendo-lhe que era Esaú, o filho mais velho; cf. Gn
27,19. Jacó também enganou o sogro; conforme Gn 31,20. Será que por causa de
tais casos, o livro do Gênesis deveria ser retirado do cânon?
Quanto a Judite,
ela agiu durante uma guerra e disse inverdade ao chefe do acampamento oposto,
das quais este devia desconfiar, tendo-a como provável espiã; Holofernes,
porém, deixou-se fascinar pelos artifícios utilizados pela mulher estrangeira.
A culpa foi dele, que acabou degolado.
6)
Erros históricos cronológicos. O
gênero literário dito “midrache” era muito usual entre os judeus; comporta
certas imprecisões historiográficas a fim de mais realçar o significado
teológico do evento relatado. Ocorre também nos livros protocanônicos; tenha-se
em vista, por exemplo, Mt 1,1-17, texto em que o Evangelista apresenta Jesus
como filho de Abraão e de Davi mediante 42 gerações, que vão de Abraão a Jesus.
Essas quarenta e duas gerações são dividas em três segmentos de quatorze nomes
cada um. Com este artifício o evangelista queria dizer que Jesus é Davi por
excelência ou três vezes Davi; com efeito 14 é a soma das três consoantes que
compõem o nome Davi; tais consoantes tinham valor numérico: D=4 e V=6; donde
4+6+4 = 14. Era mais interessante ao autor sagrado manifestar o papel
messiânico de Jesus mediante tal artifício do que contar exatamente quantas
gerações se interpunham entre Abraão e Jesus. – Ora o uso do midrache não tirou
ao Evangelho de Mateus a sua canonicidade, como não a tira aos
deuterocanônicos.
5.
Deuterocanônicos e o Novo Testamento
Alessandro Lima
aponta ainda algumas passagens do Novo Testamento que aludem a textos
deuterocanônicos. Assim:
Hb 11,35
menciona “mulheres que reencontraram seus mortos pela ressurreição”. Quem seriam
essas mulheres?
- Poderíamos
responder citando a viúva de Sarepta, cujo filho ressuscitou por intermédio do
profeta Elias (1Rs 17,17-23) e a sunanita, cujo filho foi ressuscitado por
intercessão de Eliseu (2Rs 4,8-37). Trata-se, porém, de dois casos isentos de
tortura e perseguição, ao passo que Hb 11,35 se refere a um clima de violência
contra os irmãos macabeus que foram torturados e martirizados por não quererem
renegar a sua fé, certos de que Deus lhes daria a graça da ressurreição. É,
pois, aos macabeus em 2Mc 7,1-40 que Hb se refere.
Ainda é de notar
que a carta aos hebreus foi escrita aos judeus da Palestina – o que demonstra
que a versão da LXX também era familiar aos habitantes da Terra Santa.
Ap 8,2-5 alude a
“sete anjos que assistem diante de Deus... A fumaça dos perfumes subiu da mão
do anjo com as orações dos santos diante de Deus” – O pano de fundo desta visão
está em Tb 12,12-15. Com efeito diz o arcanjo Rafael a Tobias: “Quando
enterrava os mortos, eu apresentava tuas orações ao Senhor. Eu sou Rafael, um
dos sete que assistem na presença do Senhor” (Tb 12,12s).
Em Lc
23,35.37.39 e em Mc 15,15-19 os escárnios e zombarias proferidos contra Jesus
têm seu pano de fundo literário em Sb 2,13-21.
Além do mais,
faz-se necessário notar que nos livros protocanônicos do Antigo Testamento
mesmo há o registro de fatos escabrosos, que não invalidam a canonicidade
destes livros; apresentam a miséria humana a fim de mais salientar a
misericórdia divina. Eis alguns tópicos:
Em Gn 19,30-36
as filhas de Lot embriagam seu pai para ter relações sexuais com ele.
Em Gn 16,15
Abraão tem um filho com sua serva Agar.
Em 1Sm 28 Saul
consulta uma pitonisa ou uma necromante.
Em 2Sm 11,1-21
Davi planeja a morte de seu general Urias para poder ficar com a mulher dele.
Estas
considerações permitem repetir que nenhum critério usual entre os homens se
aplica à escolha dos livros sagrados. Esta é obra do Espírito Santo.
O
protestantismo, que professa seguir somente a Tradição escrita (a Bíblia),
começa sua história recorrendo à Tradição oral; depois disto cai em contradição
rejeitando a Tradição oral como ela vive e fala na Igreja assistida pelo
Espírito Santo.
Fonte: PR
ano XLVIII, julho 2007. No. 541. Pgs 306-312
Disponível em: Veritatis Splendor
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