Foram chocantes as imagens de violência divulgadas na tarde de 4 de setembro passado. Um homem de 49 anos e uma mulher de 25,
estão na igreja, aparentemente, para rezar. Mas conversam e seu diálogo vai
ficando tenso, a ponto de chamar a atenção dos vigilantes do templo. Depois, os
dois saem e a polícia é avisada.
À frente da escadaria da igreja, começa a agressão
física à mulher; a cena de violência chama a atenção dos passantes, que começam
a se aproximar; a polícia acorre e isola a área; o homem está armado. Os
filminhos pelo celular se espalham rapidamente pela internet. Repórteres de uma
TV encontram-se no local e transmitem tudo ao vivo: é furo de reportagem! O
homem é valentão; arma em punho, ele ameaça matar a mulher, mas ela resiste e
tenta segurar a mão dele, para evitar que atire. A polícia procura controlar a
situação e desarmar o agressor, que parece tomado por um surto de violência.
Um passante fura o cerco e se introduz furtivamente
na cena; lança-se sobre o homem enfurecido e livra a mulher, que foge
aterrorizada; mas ele leva dois tiros a queima-roupa do homem descontrolado. O
herói ainda tem forças para ficar em pé e observar como a polícia alveja e mata
o agressor; em seguida, ele se recosta no canto da porta da igreja e desaba,
morto. Final da cena de sangue. Imagens e interrogações logo enchem as mídias
sociais.
Parecia um filme de ficção, mas foi tudo real, ao
vivo e em cores! Qual foi o motivo para tanta violência, com dois mortos
estirados no chão?! Não aconteceu na calada da noite, nem foi “num bar da
avenida São João”: foi em pleno dia, nas escadarias da Catedral da Sé, cartão
postal de São Paulo, palco de tantas manifestações em favor da dignidade
humana, da liberdade e da paz!
Episódios como esse acontecem, geralmente, com
menos visibilidade, mas com certa frequência na Paulicéia desvairada. Ainda não
passou a perplexidade diante das recentes chacinas em Osasco e Barueri; e a
cena da Praça da Sé deixou na sombra um fato igualmente horrível, descoberto no
dia seguinte, no bairro central da Bela Vista: um menino, filho de imigrados
africanos, foi encontrado morto dentro de um freezer. Como explicar isso?
Cenas de violência contra o próximo acontecem desde
que Caim matou Abel e não ouso afirmar que agora sejam mais abundantes que no
passado. Mas, hoje, existe a possibilidade de dar grande visibilidade aos
acontecimentos mais terríveis. Um dos efeitos dessa exposição cruenta de cenas
de violência pode ser o horror e o medo da população, que se entrincheira
dentro de casa; mas a violência também pode tornar-se um espetáculo para
curiosos, ou uma obsessão para caçadores de furos de reportagem. Na banalização
de cenas reais de horror, mal se faz a diferença entre ficção e realidade!
Claro está que o problema principal são os próprios
fatos de violência, e não a sua divulgação. Mesmo assim, é indiscutível que a
espetacularização dos episódios de violência deixa efeitos que precisariam ser
melhor analisados. O mínimo que se pode afirmar, é que não educa para
sentimentos bons, nem para a virtude. Como interpretar tanta explosão de
violência? Penso nos mistérios da alma humana, nas tensões crescentes do
convívio social e na perda dos valores básicos da conduta.
É difícil saber o que se passa na alma humana. Quem
conhece as suas intenções e as motivações do seu agir? Como administrar
positivamente o precioso bem da liberdade? É preciso cuidar mais e melhor das
pessoas; cuida-se das florestas, águas e animais e isso é bom; cada pequena
variação da inflação é acompanhada com interesse e preocupação... Não deveriam
receber cuidados ainda maiores o ser humano e cada pessoa individualmente? Não
é ela a razão de ser de todas as políticas econômicas, da estrutura do Estado e
das organizações da sociedade?
Os noticiários dão conta de que o homem morto por
policiais na escadaria da Catedral da Sé tinha uma ficha policial bem nutrida;
para muitos, seu lugar, talvez, não fosse a praça, mas a prisão. E se estivesse
nalguma das prisões brasileiras, quais poderiam ter sido suas chances de
recuperação para o convívio social? Como ajudar indivíduos associais a
conviverem melhor com os outros e a mudarem hábitos anti-sociais? Colocá-los
atrás das grades pode ser um alívio para a sociedade, mas isso ainda não
resolve o problema de quem está preso. Que fazer? Construir mais cadeias, para
recolher nelas todos os malfeitores e sentir-nos em paz?
Crescem as tensões sociais; o nível de
agressividade e aparecem cada vez mais evidentes as polarizações ideológicas,
às vezes fundamentalistas. Multiplicam-se acusações infundadas, ataques
gratuitos e incitações ao ódio, apenas por preconceito. A discussão política e
o confronto de ideias são é necessários e não se pretende que todos tenham as
mesmas convicções; no entanto, nunca deveriam ser deixados de lado um objetivo
bom a alcançar e o respeito às pessoas nunca. Os sonhos de vida melhor
frustrados e a insatisfação crescente da população com os rumos da política e
da economia acumulam uma carga explosiva.
Em matéria de valores comportamentais vivemos numa
espécie de reino da anarquia. Precisam ser preservadas e comunicadas as
referências comuns do convívio social, como a dignidade de cada pessoa, o
respeito pelos direitos alheios, a tolerância, a solidariedade, a justiça e a
honestidade. Sem esses valores compartilhados, o convívio social mergulha
no reino do arbítrio e da prepotência. Será que esses valores ainda estão sendo
prezados na educação sistemática e informal? O sangue derramado na escadaria da
Sé continua a nos questionar.
Cardeal
Odilo P. Scherer
Arcebispo de
São Paulo
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Publicado em
O Estado de S. Paulo, de 12 de setembro de 2015
CNBB
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