O principal produto comercial da TV Globo, a
chamada “novela das nove”, tem perdido audiência e repercussão há vários anos,
mas, pela primeira vez na história, foi agora ultrapassado em audiência por uma
concorrente.
A Globo é uma das maiores produtoras mundiais de
telenovelas, exportadas para dezenas de países, e sua influência nos costumes
dos brasileiros já foi objeto de estudos inclusive de veículos internacionais como
a revista britânica “The Economist“. As novelas da emissora foram apontadas
como importantes instrumentos sociológicos para mudar a mentalidade das classes
baixa e média do país no tocante a valores morais e familiares, tornando mais
“naturais” não só fenômenos como a coabitação, o divórcio e a prática sexual
dissociada do amor matrimonial, mas também a infidelidade conjugal, o aborto, o
relativismo ético, a vingança, a aceitação de trapaças como meio de ascensão
social e a banalização da maldade, com vilões e vilãs que frequentemente se
tornam mais populares e até “queridos” que os tradicionais “mocinhos e
mocinhas” – estes representados muitas vezes como “chatos” e “bobos”.
Mas a longa sequência de telenovelas panfletárias e
relativistas da maior emissora do país não parece estar agradando tanto assim
ao telespectador. A carga intensa de erotismo, futilidade, violência, maldade e
falta de sentido existencial em novelas como “Em Família”, “Império”,
“Babilônia” e agora “A Regra do Jogo” tem sido acompanhada de uma perda
crescente de audiência, conforme as medições do Ibope.
Ainda assim, a popular “novela das nove” se
mantinha em primeiro lugar na audiência nacional havia décadas até que uma
inesperada “novela bíblica” mudou “as regras do jogo” impostas pela Rede Globo.
“Os Dez Mandamentos” é uma obra produzida pela TV
Record, emissora ligada à organização Igreja Universal do Reino de Deus. A
organização é alvo de dezenas de acusações de exploração de fiéis para fins
lucrativos, inclusive por parte de ex-pastores como Mário Justino (seu livro
“Nos Bastidores do Reino“, que chegou a ser judicialmente proibido no Brasil na
década de 1990, contém acusações bombásticas contra o fundador da igreja, Edir
Macedo, e relata práticas institucionalizadas de extorsão, manipulação e
lavagem cerebral que seriam cotidianas na organização). O recente investimento
da rede em tramas de fundo bíblico, no entanto, tem atraído inclusive um
público não religioso, mas cansado do vazio moral da Globo e pelo menos curioso
para conhecer a saga de Moisés e do povo eleito, conduzido da escravidão no
Egito para a Terra Prometida – com direito a muitos efeitos especiais que, é
preciso reconhecer, fazem parte do chamariz.
As redes sociais têm sido prolíficas em gerar
“memes” contrastando Moisés e o anti-herói da trama concorrente, envolvido com
uma violenta facção criminosa do Rio de Janeiro. Os comentários sobre a
história bíblica trazem termos como “decente” e “ensinamentos”, enquanto a
história da Globo é pontuada por palavras como “baixaria” e “lixo”.
“Sim, pode-se dizer que é uma guerra de valores”,
afirma João Carlos Massarolo, pesquisador de narrativa seriada associado à
Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e entrevistado pela edição desta
semana da revista “Veja“.
A Record não foi a única emissora a se aproveitar
da opção da Globo por tramas amorais vendidas como “realistas” (como se a
realidade contivesse apenas elementos amorais, imorais e marcadamente
relativistas). O SBT também cresceu em audiência apostando na adaptação de
tramas infantis mexicanas ou argentinas, como “Chiquititas”, “Carrossel” e
“Cúmplices de um Resgate”. Mesmo a Band, pouco dada a telenovelas, investiu com
acerto na dublagem de novelas importadas de um país improvável como a Turquia:
tramas como “Mil e Uma Noites” e “Fatmagül” têm mais que dobrado a audiência da
emissora paulista com histórias que abordam dilemas éticos a partir de uma
perspectiva familiar tradicional.
A relativização moral, onipresente na sociedade
brasileira contemporânea, parece ter começado finalmente a encontrar seus
limites nos anseios humanos por mais sentido de vida e por mais solidez nas
referências comportamentais.
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Aleteia
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