Não 'habemus' mais Papa?
As manifestações politizadas de Francisco tiveram pouca repercussão nas pautas
nobres da grande mídia. Mas e se ele tivesse defendido o liberalismo de
direita?
Vamos imaginar uma situação diferente da que aconteceu na semana
passada, na qual o Papa asseverou que o capitalismo é uma “ditadura sutil”,
que a concentração monopolista dos meios de comunicação impõe “pautas
alienantes” e gera um “colonialismo ideológico”, e supor o que ocorreria se o
Papa defendesse a redução das funções públicas do Estado, o direito a
monopolizar a formação da opinião, o mercado desregulado e o império cultural
dos países ricos sobre os países pobres. Convém notar, em primeiro lugar, que
as importantes manifestações do Papa tiveram escassos reflexos nas pautas
nobres da grande mídia, com exceção da Folha de São Paulo, e só foram
expandidas, como informação, pelas “redes” alternativas de comunicação.
Creio que se o
Papa tivesse defendido as posições já conhecidas do liberalismo de direita,
teríamos o início de uma nova grande campanha contra o setor público, contra os
pressupostos de um Estado Social de Direito e, certamente, um novo ciclo de
propaganda dos “ajustes”, que tem massacrado as camadas sociais mais pobres de
todos os continentes. Se o Papa tivesse adotado as posições já conhecidas da
direita liberal, teríamos um novo ciclo de lavagem cerebral, de natureza
ideológica, baseada num velho princípio que informou as saídas de crises, sob
governos comprometidos com os mais ricos: na hora de bonança e crescimento
concentremos renda, na hora de perdas e recessão distribuímos os prejuízos para
baixo.
Parece que todos
aqueles colunistas, jornalistas, “especialistas” de plantão da grande mídia,
que saudaram a emergência de um Papa que se locomovia de ônibus, que conhecia a
vida dos pobres de Buenos Aires, que falava com palavras simples aos seus
fiéis, não esperavam que ele fosse o homem que aparentava ser: um homem
profundamente religioso, que não escondia as suas convicções de que o ser
humano real, este que sofre os tormentos do capitalismo “sem alma”, merece a
atenção e o carinho de uma Igreja que promete a salvação na eternidade.
Nas memórias do
grande diretor John Huston está transcrita uma carta do magnífico escritor
B.Traven, autor do precioso, entre outros, “Tesouro de Sierra Madre”, que se
tornou película dirigida por Huston e cujo personagem principal foi encenado
por Humphrey Bogart. O escritor, que duvidava da seriedade de intenções dos que
queriam transformar seu livro em filme diz, na carta citada por Huston: “Em
Hollyhood todo mundo pensa unicamente em dinheiro e em novos contratos, ninguém
pensa em fazer algo extraordinariamente grande.”
Fazer “algo
extraordinariamente grande”, mesmo se os tortuosos caminhos da História venham,
depois -independentemente da vontade daqueles seres humanos especiais- desviar
o curso da sua intencionalidade ética. O Papa deve ter pensado algo parecido,
quando deu as declarações que afrontaram aqueles que, além de deter um poder
extraordinário pela sua riqueza material, controlam a formação das opiniões a
seu respeito. E o fazem porque subjugam o “direito humano à comunicação”, como
diz aqui o nosso professor Pedrinho Guareschi, colocando as emoções a serviço
da acumulação sem trabalho e profanando os corpos na chama irracional do
consumismo.
A Europa das
Luzes teve capacidade de combinar, por um certo tempo, a emergência da cultura
democrática com o escravismo; depois, fez conviver a democracia política com o
colonialismo e seus massacres; hoje, depois do curto reinado social-democrata
-na mesma Europa- a Alemanha, nação devedora do Século passado que jamais pagou
suas dívidas de guerra, dá um passo trágico: faz da Grécia, estuprada pelo
nazismo, a Câmara de tortura do capital financeiro. Nós, seres não especiais,
dizermos isso que o Papa disse, é o trivial. O não-trivial é o Papa dizer isso,
que ele disse, e a grande mídia praticamente censurar suas mensagens.
Parece que, de
repente, o essencial do que é o Papa, um ser humano solidário com os pobres e
que desafia o capitalismo a ser verdadeiramente democrático, que não teme ser
taxado de “esquerda” -parece que este Papa essencial- deixou de existir para a
grande mídia, que o tratará, agora, como já fez um apressado colunista da mesma
Folha, como um populista-peronista. O Papa, que não teve seu coração nem sua
mente forjados pela direita midiática escapou do controle ideológico do
neoliberalismo, e disse: sois seres humanos, não sois mercadorias. Não aceitem
isso que aí está, façam algo extraordinariamente grande!
Tarso Genro, Carta Maior
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Pragmatismo
Político
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