Os recentes, constantes e estarrecedores ataques
cometidos pelos radicais do Estado Islâmico, entre os quais a decapitação de 21
cristãos egípcios no último fim de semana, têm levado muita gente, no mundo
inteiro, a se perguntar: o que é que pode ou deve ser feito, afinal de contas,
para dar um basta a essas aberrações?
Vários países já puseram operações militares em
andamento. Grande parte das pessoas entrevistadas pela televisão ou que se
manifestam nas redes sociais não apenas considera justificada a intervenção
militar contra um grupo terrorista capaz de tamanha selvageria; muita gente
inclusive pede mais esforços concertados para eliminar os fanáticos que parecem
não conhecer piedade alguma, razão alguma e limite algum.
Diante de uma ameaça tão brutal e real, volta à
tona o conceito de "guerra justa": em casos tão extremos, o uso da
força é uma possibilidade aceitável ou, mais ainda, é uma obrigação de justiça,
voltada a parar o injusto agressor e a defender os direitos humanos das vítimas
covardemente agredidas?
A chocante experiência que estamos vivendo diante
do grau assassino de fanatismo dos agressores faz com que venha ao caso
reavaliar com outros olhos um contexto muito semelhante: o dos cristãos da
Idade Média, que também sofreram atrocidades de todo tipo e se viram diante da
urgência de reagir, ainda que fosse pela força.
Foi nesse contexto que a cristandade empreendeu as
Cruzadas: em reação a uma ameaça horrenda, que já durava mais de 400 anos e que
precisava ser vigorosamente repelida. Não teria sido por pouca coisa, afinal,
que a maioria dos grandes santos da época apoiou as Cruzadas: entre eles,
ninguém menos que São Bernardo, Santa Catarina de Sena e São Francisco de
Assis. Isso mesmo: o São Francisco de Assis que, até hoje, é símbolo de luta
heroica pela paz. Mesmo ele se viu obrigado a acompanhar os cruzados; pregando
a reconciliação e a paz, é claro, mas sabendo, ao mesmo tempo, que a
cristandade tinha o direito e o dever de se defender das agressões sofridas.
Obviamente, a resposta dos cruzados não deve nem
pode ser vista como coisa plenamente adequada e isenta de pecados. É muito raro
que algum conflito armado termine sem atrocidades (o que é uma ótima razão para
que sempre consideremos a guerra somente como último e extremo recurso). No
entanto, a maioria das ideias populares sobre as Cruzadas é muito mais
influenciada pelo fanatismo anticatólico do que pela verdade histórica.
Um artigo de Paul Crawford, publicado alguns anos
atrás, apresenta “Quatro mitos sobre as Cruzadas”. O artigo original, que é
longo, mas excelente, pode ser lido na íntegra aqui (em inglês).
Eu me permito, a seguir, fazer um resumo do que
Paul Crawford nos relata com base em suas pesquisas.
MITO 1: “As
cruzadas foram um ataque gratuito dos cristãos ocidentais contra os
muçulmanos”.
Uma revisão cronológica honesta derruba esta
mentira. Até o ano 632, o Egito, a Palestina, a Síria, a Ásia Menor, o Norte da
África, a Espanha, a França, a Itália e as ilhas da Sicília, da Sardenha e da
Córsega eram todos territórios cristãos. Dentro das fronteiras do Império
Romano, que ainda existia no Mediterrâneo oriental, o cristianismo ortodoxo era
a religião oficial e esmagadoramente majoritária. Fora daquelas fronteiras,
ainda havia outras grandes comunidades cristãs, não necessariamente ortodoxas e
católicas, mas, ainda assim, cristãs: a maioria da população cristã da Pérsia,
por exemplo, era nestoriana. Também havia várias comunidades cristãs espalhadas
pela Arábia.
Apenas um século mais tarde, em 732, os cristãos já
tinham perdido o Egito, a Palestina, a Síria, o Norte da África, a Espanha, a
maior parte da Ásia Menor e o sul da França. A Itália e suas ilhas associadas
também estavam sob ameaça; tanto que as ilhas acabariam sob o domínio islâmico
no século seguinte. Logo após o ano de 633, as comunidades cristãs da Arábia
foram inteiramente destruídas. Tanto os judeus quanto os cristãos foram
expulsos da península arábica. Os da Pérsia estavam sob forte pressão. Dois
terços do antigo mundo cristão romano se viam agora governados pelos
muçulmanos.
O que é que tinha acontecido? Cada uma dessas
regiões listadas acima foi tomada pelos muçulmanos no espaço de apenas cem
anos. Cada uma delas foi arrancada do controle cristão por meio da violência,
em campanhas militares deliberadamente concebidas para expandir o território do
islã. E o programa de conquistas do islã não terminou por aí. Carlos Magno
bloqueou o avanço muçulmano rumo à Europa ocidental por volta do ano 800, mas
as forças islâmicas simplesmente mudaram seu foco para a Itália e para a costa
francesa, atacando a Itália continental em 837. Uma luta confusa pelo controle
do sul e do centro da Itália prosseguiu durante o resto do século IX e
continuou no século X. O próprio interior italiano chegou a ser atacado. Com a
urgência de proteger as vítimas cristãs, os papas do século X e do início do
século XI se envolveram diretamente na defesa do território. Os bizantinos
levaram muito tempo para reunir as forças necessárias para a reação armada. Em
meados do século IX, eles montaram um contra-ataque. Mas os muçulmanos
responderam com novas e ainda mais afiadas investidas.
Em 1009, um governante muçulmano mentalmente
perturbado destruiu a Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, e lançou grandes
perseguições contra cristãos e judeus. As peregrinações à Terra Santa se
tornavam cada vez mais difíceis e perigosas. Os peregrinos ocidentais começaram
a se unir e a portar armas para se proteger quando tentavam visitar os lugares
mais sagrados do cristianismo na Palestina.
Desesperados, os bizantinos apelaram pela ajuda do
Ocidente, direcionando os seus pedidos de socorro principalmente à pessoa que
eles viam como a maior autoridade ocidental: o papa, que, como vimos, já tinha
organizado a resistência cristã aos ataques muçulmanos na Itália. Finalmente,
em 1095, o papa Urbano II atendeu ao desejo do papa Gregório VII. Começou a
Primeira Cruzada.
Longe de ser “gratuitas” e de não terem sido
provocadas de fora, as Cruzadas representam o primeiro grande contra-ataque
cristão ocidental em defesa própria diante dos ataques muçulmanos ocorridos
continuamente durante mais de 400 anos, desde o início do islã, no século VII,
até o final do século XI, e que ainda continuariam depois também. Três das
cinco principais sedes episcopais do cristianismo (Jerusalém, Antioquia e
Alexandria) tinham sido capturadas já no século VII; as outras duas (Roma e
Constantinopla) tinham sido atacadas ao longo dos séculos anteriores às
Cruzadas. Constantinopla seria tomada em 1453, deixando em mãos cristãs apenas
uma das cinco (Roma). E Roma foi novamente ameaçada no século XVI. Isto é
ausência de provocação ou é uma ameaça mortal e persistente que exigia uma
defesa vigorosa, caso os cristãos quisessem exercer o seu direito de
sobreviver?
É difícil subestimar as perdas sofridas pela Igreja
nas várias ondas de conquistas muçulmanas. Todo o Norte da África, antigamente
repleto de cristãos, foi conquistado. Chegou a haver 500 bispos cristãos no
Norte da África. Hoje, as ruínas da Igreja estão enterradas na areia. Há bispos
titulares, mas não residentes. Toda a Ásia Menor, tão amorosamente evangelizada
por São Paulo, foi perdida. Grande parte do sul da Europa esteve a ponto de ser
tomado também. É mesmo possível afirmar categoricamente que os cristãos deviam
assistir impávidos ao próprio extermínio sem se defender?
MITO 2: “Os
cristãos do Ocidente foram às Cruzadas por ganância, para saquear os muçulmanos
e enriquecer”.
Poucos cruzados tinham dinheiro suficiente para
bancar as próprias obrigações em casa e, em paralelo, sustentar-se decentemente
durante uma cruzada. Desde o início, as considerações financeiras tiveram papel
muito importante no planejamento dos contra-ataques. Os primeiros cruzados
venderam tantos bens para financiar suas expedições que provocaram inflação
generalizada na Europa. Os cruzados posteriores levaram este fato em conta e
começaram a poupar dinheiro muito antes de partirem, mas os custos ainda eram
quase proibitivos.
Uma das principais razões para o fracasso da Quarta
Cruzada e do seu desvio para Constantinopla foi justamente a falta de dinheiro
antes mesmo do início das batalhas. A Sétima Cruzada, de Luís IX, em meados do
século XIII, custou mais de seis vezes a receita anual da coroa.
Os papas recorreram a manobras cada vez mais
desesperadas para levantar fundos, desde instituir o primeiro imposto de renda,
no começo do século XIII, até implantar uma série de ajustes na maneira de se
concederem as indulgências (o que acabou gerando os gritantes abusos condenados
por Martinho Lutero).
Em suma: as Cruzadas levaram à falência muito mais
evidentemente do que à riqueza. Os cruzados eram bastante cientes disso e não
viam nas Cruzadas uma forma de melhorar a sua situação, e sim uma escolha entre
lutar assumindo o risco de perder tudo e não lutar e ter a certeza de ser
destruídos.
Crawford confirma que as pilhagens eram de fato
permitidas ou toleradas quando os exércitos cristãos venciam. Os saques, infelizmente,
eram comuns nos tempos antigos e medievais, mas é relevante observar que não
eram exclusividade dos cruzados. Uma guerra dificilmente se mantém ordenada, já
que os motivos de cada soldado individual não podem ser perfeitamente
controlados.
MITO 3: “Os
cruzados eram cínicos que não acreditavam na própria propaganda religiosa: eles
tinham segundas intenções e motivações materialistas”.
Esta é uma afirmação muito popular, pelo menos a
partir de Voltaire, e parece convincente para a modernidade e a contemporaneidade,
mergulhadas em visões de mundo materialistas. Não há dúvida de que havia
cínicos e hipócritas na Idade Média, assim como os há em qualquer época.
No entanto, mito é mito e é preciso esclarecer as
coisas.
Os riscos das Cruzadas eram muito altos. Muitos
cruzados, se não a maioria, sequer voltava das batalhas. Um historiador militar
estimou que os índices de baixas na Primeira Cruzada foram de espantosos 75%.
Além disso, a participação nas Cruzadas era
voluntária: os participantes precisavam ser persuadidos a ir, e por sua conta.
O principal meio de persuasão eram os sermões, repletos de advertências de que
as Cruzadas implicavam privações, sofrimentos e, muitas vezes, a morte; as
Cruzadas afetariam gravemente as vidas dos seus participantes, provavelmente os
empobreceriam e mutilariam e certamente provocariam grandes inconvenientes para
as suas famílias.
E como é que um discurso desses funcionou?
Funcionou precisamente porque empreender uma cruzada em defesa da própria fé e
do próprio povo era entendido como uma penitência valiosa para a alma e uma
forma de purificação, além de um ato de amor desinteressado que levava a dar a
vida pelos amigos.
As evidências disponíveis sugerem que a maioria dos
cruzados foi motivada pelo desejo de defender o nome de Deus, colocar a própria
vida a serviço da proteção dos cristãos ameaçados e expiar os pecados pessoais.
São conceitos difíceis para os ocidentais de hoje,
tão laicos e tão céticos diante de motivos espirituais. Acontece que, entre o
nosso atual Ocidente e a Idade Média, existe uma grande divisão cartesiana, com
seu reducionismo materialista. São outros contextos, nos quais os parâmetros
são muito diferentes. Naquela época, a vida na terra era curta e brutal; era
"um vale de lágrimas" a ser suportado como tempo de purificação para
o encontro com Deus. Os princípios espirituais exerciam uma influência quase
incompreensível para as mentes imediatistas de hoje.
MITO 4:
“Foram as Cruzadas que ensinaram os muçulmanos a odiar e atacar os cristãos”.
Os muçulmanos já vinham atacando os cristãos
continuamente fazia mais de 450 anos quando o papa Urbano reagiu declarando a
Primeira Cruzada. Os muçulmanos não precisavam de “incentivo” algum para atacar
a cristandade. De qualquer forma, a resposta para este mito é complexa.
A primeira história muçulmana sobre as Cruzadas só
apareceu em 1899. O mundo muçulmano estava na época redescobrindo as Cruzadas,
mas com um “toque” de modernidade ocidental. No período moderno, havia duas
principais linhas europeias de pensamento sobre as Cruzadas. Uma delas,
simbolizada por pessoas como Voltaire, Gibbon e Sir Walter Scott, além de Sir
Steven Runciman no século XX, via os cruzados como bárbaros gananciosos e
agressivos que atacavam os muçulmanos civilizados e amantes da paz. A outra
linha via as Cruzadas como um episódio glorioso da longa batalha em que os
cavaleiros cristãos detiveram o avanço das hordas muçulmanas.
Não foram as Cruzadas que ensinaram o islã a odiar
e atacar os cristãos. Foi o Ocidente laico que ensinou o islã a odiar uma visão
parcial e manipulada das Cruzadas.
Aliás, esta é uma estranha tendência do nosso
Ocidente moribundo: abastecer os nossos detratores com amplos motivos,
inclusive falsos ou no mínimo parciais, para nos odiar…
Não acho necessário defender com veemência as
Cruzadas, até porque há nelas muitas coisas profundamente lamentáveis, sem
dúvida alguma. Mas o justo é o justo: também há nas Cruzadas muitos elementos
que a agenda anticatólica não apenas não quer admitir, mas até procura
esconder.
Aos laicistas e ateus que gostam de exclamar
"Olhem quantos morreram em nome das guerras e da violência
religiosa!", eu respondo: "Olhem também quantas pessoas foram
assassinadas no século XX em nome de ideologias laicas e ateias". O
historiador britânico Paul Johnson, em seu livro “Modern Times”, estima este
número em nada menos que 100 milhões.
E por acaso isso justifica que uma única pessoa
morra em decorrência de uma guerra religiosa? Não. É claro que não. Mas a
violência, a guerra, a conquista e as disputas territoriais são problemas
humanos, não necessariamente religiosos e não apenas religiosos.
O brutal sofrimento atual de cristãos aterrorizados
por radicais ligados a uma visão deformada do islã nos desafia a tomar alguma
decisão. Numa vida complexa, nem toda decisão é perfeita.
Ajudai-nos, Senhor, e, por milagre, convertei o
coração daqueles que se proclamam nossos inimigos.
Pe. Charles
Pope
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