O cristianismo das origens se definia pela
misericórdia. A Igreja nasce no meio urbano, e os cristãos são cidadãos que
vivem situações difíceis de caos e miséria devido à densidade populacional.
Diante do alto índice de mortalidade infantil e da breve expectativa de vida,
ocorria um intenso fenômeno migratório. Às cidades acorria grande número de
estrangeiros, que eram bem-acolhidos pelos cristãos que lhes davam assistência
de diferentes formas.
Na Antiguidade, também os romanos praticavam
generosidade, mas os cristãos tinham uma atitude diferenciada em relação ao
próximo, pois cumpriam as obras de misericórdia por mandato divino. Se um
enfermeiro socorresse uma vítima de epidemia sabia que colocava a sua vida em
risco, mas se o cuidador fosse pagão, não esperava uma recompensa por esse
gesto. Os cristãos, ao contrário, por conta de Jesus e da promessa de vida
eterna, sabiam que esse amor ao próximo os aproximava do Pai das
misericórdias.
Os cristãos, contudo, não cuidavam do próximo com
segundas intenções, como que para merecer a vida eterna, pois o amor não pode
ter interesses. Sabiam, entretanto, que o gesto realizado na concretude da
experiência humana remetia a uma transcendência fundamental que Jesus
revelara.
Na sociedade antiga, praticar o bem sem esperar uma
recompensa era uma ideia considerada contrária à justiça. Os filósofos romanos
se opunham à misericórdia, considerando a piedade um defeito de caráter,
indigno dos sábios, mas próprio de pessoas imaturas. Para eles, usar de
misericórdia era deixar-se levar por um impulso ignorante.
Também hoje a gratuidade da misericórdia suscita
estranheza, especialmente diante da cultura que exalta o individualismo. Muitos
não compreendem como alguém pode doar a própria vida ao cuidar de um familiar
doente ou idoso. Há quem não suporte um sacrifício por si mesmo, muito menos
pelos outros. Numa sociedade com crise de alteridade, nem sempre a misericórdia
é bem-vinda.
Nós nos escandalizamos diante de imagens de
crianças refugiadas mortas durante o êxodo de seu país. Clamamos por justiça
diante das mortes praticadas cruelmente por terroristas. Precisamos manter essa
estranheza diante da falta de misericórdia, visto que nada há de mais grave do
que a indiferença. Não podemos nos acostumar com a dor do outro; precisamos ir
além: acolher os refugiados; perceber as necessidades dos migrantes; encontrar
formas de superar o ódio e a vingança; e criar a cultura da paz.
Só agindo desse modo, manteremos nossa tradição
mais profunda: praticar as obras de misericórdia como expressão de nossa
identidade cristã. Os hospitais, as escolas para pobres, os orfanatos, os
asilos, as fazendas de recuperação de drogados, as casas de apoio às vítimas do
HIV e todas as demais iniciativas que o Evangelho nos sugeriu são testemunhas
de nossa fidelidade a Jesus Misericordioso. Aquele que tomou para si os nossos
pecados e curou nossas feridas, conhece nossas misérias e nos pede que sejamos
cuidadores e portadores dessa mensagem de salvação a tantos que encontramos no
caminho da vida. Para muitos, a Boa Nova de Cristo só será acessível pela nossa
prática de amor misericordioso.
Enfim, a misericórdia deve ser uma das virtudes
prioritárias do cristão, porque Deus ama tanto o mundo que os cristãos não
podem amar a Deus se não se amarem uns aos outros. Esse amor se dilata de tal
maneira que sempre extrapola a família, a tribo, a nação e todos os limites que
possa ter um grupo humano. Até os adversários são dignos de misericórdia. A
atitude misericordiosa dos primeiros cristãos foi capaz de dar uma nova base
cultural para o renascimento do mundo romano, oprimido pelo acúmulo de miséria.
Não poderia ser essa mesma consciência que ajudaria a humanidade de hoje a
resolver seus desafios planetários?
Dom Leomar
Brustolin
Bispo
auxiliar de Porto Alegre (RS)
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