Até o século
XIX, os critérios para comungar eram doutrinalmente tão exigentes que, na
prática, poucas pessoas comungavam.
Considerava-se
que, para além de uma preparação que eu chamaria de negativa — o fiel não
deveria ter consciência de nenhum pecado grave –, era necessária uma cuidadosa
preparação positiva: jejum eucarístico desde a meia noite, asseio e modéstia
pessoais muito mais salientados que o normal, oração fervorosa com a repetição
de inúmeros atos de fé, esperança, ADORAÇÃO, humildade, caridade etc. No
dia-a-dia, as pessoas comungavam raramente, somente depois de se confessarem e
fora da Santa Missa.
Essa prática
era tão consagrada, que Santa Teresa foi considerada suspeita de heresia porque
desejava comungar todos os domingos.
A propósito,
o Concílio de Trento deixou muito clara a distinção entre o rito da Santa Missa
(com a comunhão do sacerdote) e o rito da Santa Comunhão dos fieis, para salvar
a Igreja do erro protestante de se considerar a Missa como somente uma Ceia e,
portanto, a Comunhão como o momento essencial da ação litúrgica (e não a
consagração).
Os santos
sempre sofreram com essa dificuldade em receber o Santíssimo Sacramento, a tal
ponto que a própria Santa Teresinha do Menino Jesus chegou a dizer que, quando
chegasse ao céu, a primeira coisa que pediria a Deus seria a “comunhão diária”
para toda a Igreja.
De fato, ela
morreu em 1897 e, em 1903, foi eleito o grande São Pio X, que, em 1905,
escreveu o Decreto “Sacra Tridentina Synodos”,
oferecendo a todos os fieis a possibilidade de comungarem diariamente.
Isso foi uma
grande graça! Um tremendo prodígio!
Contudo, a
recepção diária não servia para afrouxar as exigências de uma preparação
negativa e positiva para comungar. Antes, era instrumento para difusão de maior
santidade na Igreja.
Foi uma
mudança de 180 graus, já foi uma queda!, mas ainda num quadro em que as pessoas
se viam obrigadas a confessar, caso houvesse consciência de pecado mortal.
A situação
foi se alterando, porém.
E, há
algumas décadas, chegamos ao estado em que os fiéis se sentem no “DEVER
DE COMUNGAR”, como se a não recepção da comunhão fosse em si mesma um
pecado. Esse dever, aliás, não é imputado apenas ao leigo, mas também à Igreja:
parece que a única forma de inclusão é dar a comunhão, e ninguém possa ser
privado desse sacramento, inclusive pelo próprio bem de sua alma. Não só o fiel
teria o dever de comungar, mas o padre teria o dever de dar a comunhão a quem
quer que seja!
Hoje, as
pessoas se confessam de terem ido à Missa e não terem comungado; ou de não
terem ido à Missa por não poderem comungar; ou de terem comungado em pecado
grave com a intenção de depois se confessarem, porque se sentiam no dever de
fazê-lo ou tinham “necessidade”… QUANTA CONFUSÃO DOUTRINAL E
QUANTO SACRILÉGIO!
A doutrina
da Igreja é clara, e não preciso aqui explicá-la. Para comungar, é preciso ter
a consciência livre de qualquer pecado grave e estar fervorosamente em pelo
menos uma hora de jejum e oração, aguardando a chegada do Senhor na alma!
Na práxis pastoral
hodierna, não é que mudamos 180 graus, isso já é coisa do passado! Conseguimos
a “proeza” de ainda dar uma cambalhota para outros 180 graus, e parece-me que
perdemos o caminho de volta.
Viva a
Sagrada Comunhão diária!, mas recebida com as devidas disposições, com aquele
espírito sintetizado pelo Apóstolo das Gentes: “aquele que comunga sem
distinguir o corpo do Senhor, comunga a sua própria condenação. Esta é a razão
por que entre vós há muitos adoentados e fracos, e muitos mortos” (1Cor
11,29-30).
Não seria
essa banalidade com que tratamos a Sacratíssima Eucaristia a razão de tanta
falta de firmeza na fé, de tanta apostasia, de tanta irreligião, de tanto
abandono de Deus e de sua Lei?
BANALIZAÇÃO DA COMUNHÃO
“A partir da publicação
da instrução `Memoriale Domini’, portanto, de há três anos para cá, algumas
Conferências Episcopais pediram à Santa Sé para permitir que os ministros da
Sagrada Comunhão, quando distribuem estas aos fiéis, possam depor as Espécies
Eucarísticas nas mãos dos mesmos fiéis”. Assim se inicia a quarta parte da
Instrução “Immensae Caritatis”, da Sagrada Congregação para o Culto Divino, de
29/01/73. Por sua vez a Instrução `Inaestimabile Donum” de 03/04/80, da mesma
Sagrada Congregação, diz no n° 11: “Quanto ao modo de se apresentar à Comunhão,
esta pode ser recebida pelos fiéis tanto de joelhos como de pé, de acordo com
as normas estabelecidas pela Conferência Episcopal”.
O modo de o fiel
comungar de pé está autorizado também pela Nova Instrução sobre o Missal
Romano, que diz no n° 160, conforme nos informa o liturgista Frei Alberto
Beckhãuser, OFM, em seu recente livro “Novas Mudanças na Missa”: “Os fiéis
comungam ajoelhados ou de pé, conforme for estabelecido pela Conferência dos
Bispos”. Quanto à comunhão recebida na mão ou diretamente na boca, a
Notificação da Sagrada Congregação para o Culto Divino, de 03/04/85 diz: “Os fiéis jamais serão obrigados a adotara
prática da Comunhão na mão; ao contrário, ficarão plenamente
livres para comungar de um ou de outro modo”, isto é, recebendo a sagrada
Eucaristia na mão ou diretamente na boca. Com base, portanto, em documentos da
Sagrada Congregação para o culto Divino, ficou praticamente instituída a
comunhão em forma processional, de pé e recebida na mão. A comunhão recebida
dessa maneira tem sem dúvida seu significado e seu simbolismo. Seus efeitos,
porém, foram desastrosos, como veremos a seguir.
A comunhão feita em
fila, de pé e recebida na mão produziu uma sensível banalização da mesma a partir da
década de 70, o que resultou em um rápido aumento do
número de comunhões e também, como fruto da mesma banalização, um notável
decréscimo do número de confissões, produzindo-se assim uma
falsa convicção de que afinal não seria necessário ter tanta preocupação com o
estado da alma, se em estado de graça ou não, para receber a Eucaristia e que
bastaria “se confessar com
Deus“. Preocupado com essa situação o então bispo de
Petrópolis, Dom Manuel Pedro da Cunha Cintra, emitiu na época uma circular
denominada “Comungar dignamente”.
O principal
inconveniente causado pela comunhão
feita em forma processional e recebida na mão e de pé é o caso de pessoas
que, divorciadas e recasadas ou casadas com divorciados, se apresentam para
receber a Eucaristia. Segundo comentários que se ouvem frequentemente,
isso dá a convicção de que pelo menos nas Missas dominicais de maior afluência
sempre haverá uma ou mais comunhões feitas indevidamente.Outras pessoas não cumprem o preceito
dominical, mas vêm à Missa de vez em quando e fazem a comunhão com o pecado de
não terem cumprido aquele preceito. Outras, ainda (inclusive,
embora raramente, bêbados) entram na fila porque outras pessoas entraram e às
vezes nem sabem como receber a comunhão na mão, dando a nítida impressão de não
estarem em condições de recebê-la. Outra consequência da banalização da
comunhão é o fato de entrarem na fila pessoas com vestes reduzidas, com
evidente falta de respeito para com o Ssmo. Sacramento. Há
também o perigo de pessoas que, virando as costas com a partícula sagrada na mão,
possam ocultá-la para ser levada para finalidades sacrílegas.
Não só a comunhão de pé e recebida na mão produz os inconvenientes acima
referidos, mas a própria forma processional de receber a comunhão de pé e na
mão faz com que a pessoa seja menos notada e facilitada assim a comunhão
indevida.
Concorre também um pouco
para a banalização da comunhão, a meu ver, a comunhão feita com as próprias
mãos, por parte de “ministros” que se acham no presbitério, molhando a sagrada
partícula no Preciosíssimo Sangue, como se fossem concelebrantes, o que é
expressamente reprovado pela Instrução Interdicasterial da Santa Sé, de 15/8/97
(art. 8°, parágrafo 2), e ainda a distribuição da comunhão por ministros leigos
quando o número de comungantes não “é tão elevado que o obrigaria a prolongar
excessivamente o tempo da celebração da Missa”, condição posta pela Instrução
“Immensae Caritatis”, acima citada, para que o ministro leigo possa exercer sua
função, o que é igualmente exigido pela mesma Instrução Interdicasterial acima
referida (art. 8°, parágrafo 2°). Por tudo isso o ideal é que, a meu ver, a
fila fosse abolida pela CNBB e até pela Santa Sé, e que os comungantes se
ajoelhassem um ao lado do outro no primeiro degrau do presbitério, o sacerdote
com os ministros leigos iriam passando e dando a comunhão. Tenho a convicção de
que dessa forma o número de comunhões feitas sem as disposições necessárias
diminuiria bastante. (Todas
as vezes que falo sobre essas disposições necessárias para comungar dignamente,
noto uma diminuição do número de comunhões).
Alguém poderia objetar
que, sendo a Eucaristia um sacramento em forma de alimento, não deveria ser
recebida de joelhos porque ninguém se alimenta ajoelhado. Essa comparação não
se rege porque também ninguém se alimenta de pé, mas sentado, nem que seja de
cócoras, como fazem os boias-frias. A questão é preservar a honra e o respeito
devidos ao Ssmo. Sacramento e prevenir, enquanto possível, as comunhões feitas
sem as necessárias disposições. Aliás, quando eu era pároco, percebendo os
inconvenientes da fila, pedi que os comungantes ficassem um ao lado do outro,
embora de pé. Se naquela ocasião eu tivesse tido a oportunidade de adquirir a
Instrução “Inaestimabile Donurn”, da Sagrada Congregação para o Culto Divino,
de 3/4/80, teria pedido também aos fiéis que se ajoelhassem para fazer a
comunhão. Pelos motivos aqui apontados, há grupos de leigos que preconizam a
comunhão dessa forma, o que aliás é mais piedoso e respeitoso para com o Ssmo.
Sacramento. É claro que em grandes concentrações, principalmente ao ar livre, a
comunhão de joelhos não seria possível. Por outro lado, se o sacerdote fizer
questão, embora indevidamente, de só dar a comunhão na mão, na prática é
necessário obedecer.
Uma vez eu estava
hospedado em uma casa paroquial e o pároco teve que se ausentar. Viria outro
sacerdote celebrar uma Santa Missa de formatura. No sacrário havia uma ambula
contendo hóstias até a meta de. Pensei comigo: “Em missa de formatura poucas
pessoas comungam”; e não providenciei outro cibório. Ledo engano: Na hora da
comunhão, estando a Igreja repleta, quase todo mundo entrou na fila. Há pessoas
que em uma ocasião como essa acham que é chique comungar! Quando até pouco após
o Concílio a comunhão era feita de joelhos, quem não tinha um mínimo de piedade
não se aproximava para fazê-la. É verdade que comunhões sacrílegas sempre
houve, mas não tanto como atualmente, ao que tudo indica. São Paulo, na 1á
Carta aos Coríntios, já lamentava isso.
D. Estevão
Bettencourt, osb
– Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS” – Nº 490 –
Ano 2003 – p. 187
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