sábado, 30 de setembro de 2017

A mudança da práxis relativa à recepção da Sagrada Comunhão


Até o século XIX, os critérios para comungar eram doutrinalmente tão exigentes que, na prática, poucas pessoas comungavam.

Considerava-se que, para além de uma preparação que eu chamaria de negativa — o fiel não deveria ter consciência de nenhum pecado grave –, era necessária uma cuidadosa preparação positiva: jejum eucarístico desde a meia noite, asseio e modéstia pessoais muito mais salientados que o normal, oração fervorosa com a repetição de inúmeros atos de fé, esperança, ADORAÇÃO, humildade, caridade etc. No dia-a-dia, as pessoas comungavam raramente, somente depois de se confessarem e fora da Santa Missa.

Essa prática era tão consagrada, que Santa Teresa foi considerada suspeita de heresia porque desejava comungar todos os domingos.

A propósito, o Concílio de Trento deixou muito clara a distinção entre o rito da Santa Missa (com a comunhão do sacerdote) e o rito da Santa Comunhão dos fieis, para salvar a Igreja do erro protestante de se considerar a Missa como somente uma Ceia e, portanto, a Comunhão como o momento essencial da ação litúrgica (e não a consagração).

Os santos sempre sofreram com essa dificuldade em receber o Santíssimo Sacramento, a tal ponto que a própria Santa Teresinha do Menino Jesus chegou a dizer que, quando chegasse ao céu, a primeira coisa que pediria a Deus seria a “comunhão diária” para toda a Igreja.

De fato, ela morreu em 1897 e, em 1903, foi eleito o grande São Pio X, que, em 1905, escreveu o Decreto “Sacra Tridentina Synodos”, oferecendo a todos os fieis a possibilidade de comungarem diariamente.

Isso foi uma grande graça! Um tremendo prodígio!

Contudo, a recepção diária não servia para afrouxar as exigências de uma preparação negativa e positiva para comungar. Antes, era instrumento para difusão de maior santidade na Igreja.
Aconteceu, porém, que, com o passar do tempo, a disciplina se foi afrouxando e, de uma condição em que o fiel se sentia “PROIBIDO DE COMUNGAR”, passou-se a uma condição em que os fieis passaram a se sentir no “DIREITO DE COMUNGAR”: bastaria não ter um pecado grave na consciência que já se sentiriam aptos para aceder ao “sacrum convivium”, sem maiores exigências.

Foi uma mudança de 180 graus, já foi uma queda!, mas ainda num quadro em que as pessoas se viam obrigadas a confessar, caso houvesse consciência de pecado mortal.
A situação foi se alterando, porém.

E, há algumas décadas, chegamos ao estado em que os fiéis se sentem no “DEVER DE COMUNGAR”, como se a não recepção da comunhão fosse em si mesma um pecado. Esse dever, aliás, não é imputado apenas ao leigo, mas também à Igreja: parece que a única forma de inclusão é dar a comunhão, e ninguém possa ser privado desse sacramento, inclusive pelo próprio bem de sua alma. Não só o fiel teria o dever de comungar, mas o padre teria o dever de dar a comunhão a quem quer que seja!

Hoje, as pessoas se confessam de terem ido à Missa e não terem comungado; ou de não terem ido à Missa por não poderem comungar; ou de terem comungado em pecado grave com a intenção de depois se confessarem, porque se sentiam no dever de fazê-lo ou tinham “necessidade”QUANTA CONFUSÃO DOUTRINAL E QUANTO SACRILÉGIO!

A doutrina da Igreja é clara, e não preciso aqui explicá-la. Para comungar, é preciso ter a consciência livre de qualquer pecado grave e estar fervorosamente em pelo menos uma hora de jejum e oração, aguardando a chegada do Senhor na alma!

Na práxis pastoral hodierna, não é que mudamos 180 graus, isso já é coisa do passado! Conseguimos a “proeza” de ainda dar uma cambalhota para outros 180 graus, e parece-me que perdemos o caminho de volta.

Viva a Sagrada Comunhão diária!, mas recebida com as devidas disposições, com aquele espírito sintetizado pelo Apóstolo das Gentes: “aquele que comunga sem distinguir o corpo do Senhor, comunga a sua própria condenação. Esta é a razão por que entre vós há muitos adoentados e fracos, e muitos mortos” (1Cor 11,29-30).

Não seria essa banalidade com que tratamos a Sacratíssima Eucaristia a razão de tanta falta de firmeza na fé, de tanta apostasia, de tanta irreligião, de tanto abandono de Deus e de sua Lei?

BANALIZAÇÃO DA COMUNHÃO

“A partir da publicação da instrução `Memoriale Domini’, portanto, de há três anos para cá, algumas Conferências Episcopais pediram à Santa Sé para permitir que os ministros da Sagrada Comunhão, quando distribuem estas aos fiéis, possam depor as Espécies Eucarísticas nas mãos dos mesmos fiéis”. Assim se inicia a quarta parte da Instrução “Immensae Caritatis”, da Sagrada Congregação para o Culto Divino, de 29/01/73. Por sua vez a Instrução `Inaestimabile Donum” de 03/04/80, da mesma Sagrada Congregação, diz no n° 11: “Quanto ao modo de se apresentar à Comunhão, esta pode ser recebida pelos fiéis tanto de joelhos como de pé, de acordo com as normas estabelecidas pela Conferência Episcopal”.

O modo de o fiel comungar de pé está autorizado também pela Nova Instrução sobre o Missal Romano, que diz no n° 160, conforme nos informa o liturgista Frei Alberto Beckhãuser, OFM, em seu recente livro “Novas Mudanças na Missa”: “Os fiéis comungam ajoelhados ou de pé, conforme for estabelecido pela Conferência dos Bispos”. Quanto à comunhão recebida na mão ou diretamente na boca, a Notificação da Sagrada Congregação para o Culto Divino, de 03/04/85 diz: “Os fiéis jamais serão obrigados a adotara prática da Comunhão na mão; ao contrário, ficarão plenamente livres para comungar de um ou de outro modo”, isto é, recebendo a sagrada Eucaristia na mão ou diretamente na boca. Com base, portanto, em documentos da Sagrada Congregação para o culto Divino, ficou praticamente instituída a comunhão em forma processional, de pé e recebida na mão. A comunhão recebida dessa maneira tem sem dúvida seu significado e seu simbolismo. Seus efeitos, porém, foram desastrosos, como veremos a seguir.

A comunhão feita em fila, de pé e recebida na mão produziu uma sensível banalização da mesma a partir da década de 70, o que resultou em um rápido aumento do número de comunhões e também, como fruto da mesma banalização, um notável decréscimo do número de confissões, produzindo-se assim uma falsa convicção de que afinal não seria necessário ter tanta preocupação com o estado da alma, se em estado de graça ou não, para receber a Eucaristia e que bastaria “se confessar com Deus“. Preocupado com essa situação o então bispo de Petrópolis, Dom Manuel Pedro da Cunha Cintra, emitiu na época uma circular denominada “Comungar dignamente”.

O principal inconveniente causado pela comunhão feita em forma processional e recebida na mão e de pé é o caso de pessoas que, divorciadas e recasadas ou casadas com divorciados, se apresentam para receber a Eucaristia. Segundo comentários que se ouvem frequentemente, isso dá a convicção de que pelo menos nas Missas dominicais de maior afluência sempre haverá uma ou mais comunhões feitas indevidamente.Outras pessoas não cumprem o preceito dominical, mas vêm à Missa de vez em quando e fazem a comunhão com o pecado de não terem cumprido aquele preceito. Outras, ainda (inclusive, embora raramente, bêbados) entram na fila porque outras pessoas entraram e às vezes nem sabem como receber a comunhão na mão, dando a nítida impressão de não estarem em condições de recebê-la. Outra consequência da banalização da comunhão é o fato de entrarem na fila pessoas com vestes reduzidas, com evidente falta de respeito para com o Ssmo. Sacramento. Há também o perigo de pessoas que, virando as costas com a partícula sagrada na mão, possam ocultá-la para ser levada para finalidades sacrílegas. Não só a comunhão de pé e recebida na mão produz os inconvenientes acima referidos, mas a própria forma processional de receber a comunhão de pé e na mão faz com que a pessoa seja menos notada e facilitada assim a comunhão indevida.

Concorre também um pouco para a banalização da comunhão, a meu ver, a comunhão feita com as próprias mãos, por parte de “ministros” que se acham no presbitério, molhando a sagrada partícula no Preciosíssimo Sangue, como se fossem concelebrantes, o que é expressamente reprovado pela Instrução Interdicasterial da Santa Sé, de 15/8/97 (art. 8°, parágrafo 2), e ainda a distribuição da comunhão por ministros leigos quando o número de comungantes não “é tão elevado que o obrigaria a prolongar excessivamente o tempo da celebração da Missa”, condição posta pela Instrução “Immensae Caritatis”, acima citada, para que o ministro leigo possa exercer sua função, o que é igualmente exigido pela mesma Instrução Interdicasterial acima referida (art. 8°, parágrafo 2°). Por tudo isso o ideal é que, a meu ver, a fila fosse abolida pela CNBB e até pela Santa Sé, e que os comungantes se ajoelhassem um ao lado do outro no primeiro degrau do presbitério, o sacerdote com os ministros leigos iriam passando e dando a comunhão. Tenho a convicção de que dessa forma o número de comunhões feitas sem as disposições necessárias diminuiria bastante. (Todas as vezes que falo sobre essas disposições necessárias para comungar dignamente, noto uma diminuição do número de comunhões).

Alguém poderia objetar que, sendo a Eucaristia um sacramento em forma de alimento, não deveria ser recebida de joelhos porque ninguém se alimenta ajoelhado. Essa comparação não se rege porque também ninguém se alimenta de pé, mas sentado, nem que seja de cócoras, como fazem os boias-frias. A questão é preservar a honra e o respeito devidos ao Ssmo. Sacramento e prevenir, enquanto possível, as comunhões feitas sem as necessárias disposições. Aliás, quando eu era pároco, percebendo os inconvenientes da fila, pedi que os comungantes ficassem um ao lado do outro, embora de pé. Se naquela ocasião eu tivesse tido a oportunidade de adquirir a Instrução “Inaestimabile Donurn”, da Sagrada Congregação para o Culto Divino, de 3/4/80, teria pedido também aos fiéis que se ajoelhassem para fazer a comunhão. Pelos motivos aqui apontados, há grupos de leigos que preconizam a comunhão dessa forma, o que aliás é mais piedoso e respeitoso para com o Ssmo. Sacramento. É claro que em grandes concentrações, principalmente ao ar livre, a comunhão de joelhos não seria possível. Por outro lado, se o sacerdote fizer questão, embora indevidamente, de só dar a comunhão na mão, na prática é necessário obedecer.

Uma vez eu estava hospedado em uma casa paroquial e o pároco teve que se ausentar. Viria outro sacerdote celebrar uma Santa Missa de formatura. No sacrário havia uma ambula contendo hóstias até a meta de. Pensei comigo: “Em missa de formatura poucas pessoas comungam”; e não providenciei outro cibório. Ledo engano: Na hora da comunhão, estando a Igreja repleta, quase todo mundo entrou na fila. Há pessoas que em uma ocasião como essa acham que é chique comungar! Quando até pouco após o Concílio a comunhão era feita de joelhos, quem não tinha um mínimo de piedade não se aproximava para fazê-la. É verdade que comunhões sacrílegas sempre houve, mas não tanto como atualmente, ao que tudo indica. São Paulo, na 1á Carta aos Coríntios, já lamentava isso.


D. Estevão Bettencourt, osb

– Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS” – Nº 490 – Ano 2003 – p. 187

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