Pedro Álvares Cabral ordenou que se erguesse um altar na
praia da Coroa Vermelha, convocou seus capitães a passar das caravelas para
batéis e desembarcou na faixa de areia. Era um domingo, dia do Senhor. Sob a
bandeira de Cristo, cercado pela exuberante vegetação tropical, o frade
franciscano Henrique Soares de Coimbra pregou o Evangelho, falou da cruz e da
nova terra na qual ela acabara de chegar e entoou missa – a primeira celebrada
nesta parte do mundo. Era 26 de abril de 1500. O Brasil nascia ali, sob a égide
da Igreja Católica.
Durante a maior parte
dos cinco séculos seguintes, o país e a religião permaneceriam indissociáveis.
Como a licença papal concedida aos portugueses para explorar o Novo Mundo
estava condicionada à expansão da fé, colonização e evangelização
confundiam-se. Com o conquistador, vinha o padre. O amálgama entre Brasil e
catolicismo foi tal que, até a proclamação da República, em 1889, Estado e
Igreja mantiveram-se fundidos no regime conhecido como padroado.
O
país se fez ao redor de igrejas construídas na praça central de cada cidade ou
vilarejo, aprendeu as primeiras letras em escolas geridas por padres e freiras,
formou seu imaginário escutando as histórias dos personagens do Antigo e do
Novo Testamento, construiu toda uma cultura baseada no alicerce dos valores
católicos. Em 1940, meio século após a separação entre Igreja e Estado, 95% dos
brasileiros se declaravam seguidores do Papa.
Agora,
passados 516 anos do primeiro domingo de missa, esse país não existe mais. A
maior nação católica do mundo já não é tão católica assim. Pela primeira vez na
história, talvez já nem se possa mais dizer que o Brasil é um país
católico.Essa é uma transformação significativa, que vem se anunciando nas
estatísticas há mais de 40 anos. Durante esse período, a proporção de
membros da Igreja na população despenca cerca de 10 pontos percentuais a cada
década. Em 1980, eles ainda eram 89%. Passaram rapidamente a 83,3% (1991),
73,6% (2000) e 64,6% (2010). O próximo Censo ocorre apenas daqui a quatro anos,
mas especialistas acreditam que ele vai flagrar a continuidade dessa tendência
– a dúvida é apenas quanto ao tamanho do tombo.
Algumas pesquisas
recentes sugerem que pode ser robusto e que a maioria católica possa estar
ameaçada. O Datafolha, que mede a religiosidade do brasileiro desde 1994,
detectou apenas 57% de católicos em 2013 – no levantamento anterior, em 2010, o
índice foi de 63%, quase igual ao do Censo. Na avaliação do Pew Research
Center, uma instituição norte-americana, o declínio se confirma, mas em ritmo
menos alucinante: em 2014, 81% dos brasileiros diziam ter sido criados como
católicos, mas só 61% afirmavam ser católicos.As pesquisas que chamam mais
atenção e que permitem prever um Brasil não-católico são aquelas centradas nas
faixas etárias mais baixas – grupos que serão os brasileiros de amanhã e sob
cuja orientação vai ser moldada a religiosidade das próximas gerações. Para a
maior parte desses jovens, a igreja apostólica romana dos seus pais e avós
significa pouco. Levantamento feito três anos atrás pelo Instituto Data Popular
apontou que só 44% dos brasileiros de 16 a 24 anos definiam-se como católicos.
Em alguns estratos, há indícios de que os crentes sejam ainda mais minoritários.
Em 2015, a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
realizou uma pesquisa, em todas as unidades da federação, com pessoas de 18 a
34 anos. A amostra não refletia o perfil exato do brasileiro, privilegiando
pessoas de classes B e C e com instrução acima da média. Mesmo com esse reparo,
o dado espanta: só 34,3% disseram seguir o catolicismo.
O
bispo auxiliar de Porto Alegre Leomar Antônio Brustolin, que coordena a
pós-graduação em Teologia da PUCRS, reconhece: o Brasil já não pode mais ser
definido como um país católico. Ele avalia o encolhimento do rebanho como parte
de algo mais amplo, um enfraquecimento dos valores cristãos.
–
Temos feito há anos essa reflexão na Igreja Católica. Constata-se, e essa é
inclusive a posição da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos dos Brasil), que
vivemos numa sociedade pós-cristã. Permanecem, por exemplo, os feriados nas
datas do cristianismo, mas eles não têm mais o mesmo significado e a mesma
vivência – diz o bispo, que relata ter provocado controvérsia, durante uma
celebração de Corpus Christi, por defender a ideia de que certos feriados
católicos deveriam ser revistos no Brasil, uma vez que seu sentido se perdeu
para grande parte da população. – Quando o nosso pai morre, a gente não
continua celebrando o aniversário dele – compara.
Os jovens guardiões
Na
arquidiocese de Porto Alegre, onde Brustolin atua, dados sobre a administração
dos sacramentos oferecem um vislumbre da "descatolização" em curso.
Segundo a edição de 2015 do guia do arcebispado, a quantidade de batizados,
primeiras comunhões, crismas e casamentos nos 29 municípios da jurisdição é
pouco expressiva e, além disso, recuou de forma acelerada. Em 2008, foram
batizadas 26,8 mil crianças. Mas o número diminui ano após ano, até chegar à
marca dos 20,8 mil em 2013. No mesmo período de apenas seis anos,
verificaram-se quedas ainda maiores na primeira eucaristia (de 14,9 mil para
8,2 mil), nas crismas (de 7,6 mil para 4,8 mil) e até nos casamentos (de 3,1
mil para 1,8 mil).
Quando
as pessoas deixam de ser batizadas, de fazer a catequese e de se crismar,
corre-se o risco de uma ruptura cultural e sociológica. Até uma ou duas
gerações atrás, ser brasileiro significava, em larga medida, crescer em um lar
decorado com imagens de Cristo e dos santos, ter uma avó ou tia devota que
exigia a presença semanal na missa, absorver uma série de costumes,
superstições e narrativas de origem católica e ter nos sacramentos uma espécie
de formação obrigatória. Os referenciais de um indivíduo tinham origem nesse
contexto religioso. No momento em que a igreja saiu de dentro das casas e em
que as pessoas saíram de dentro das igrejas, esses referenciais se esmaecem. É
mais ou menos como se, na Grécia Antiga, os helenos deixassem de conhecer sua
mitologia.
Essa realidade aparece
com frequência diante de Deonira Viganó La Rosa, 75 anos, que há três décadas
coordena encontros para formação de casais decididos a celebrar o matrimônio na
igreja. No passado, diz ela, esses cursos tinham como foco os ensinamentos de
biologia humana, de métodos anticoncepcionais e de economia doméstica. Na
atualidade, quando em geral os noivos já vivem juntos e já têm experiência
sexual, tais tópicos perderam a razão. O que antes era desnecessário, falar
sobre princípios fundamentais do cristianismo, passou para o primeiro plano.
–
Quase sempre, esses casais têm formação superior, porque os pobres não casam na
Igreja. Moram juntos e, quando decidem ter filhos, resolvem casar. Pensam que o
casamento na igreja é uma bênção. Não desmerecemos, mas explicamos que não é
isso, fazemos compreenderem que é uma opção mútua de amar e respeitar pela vida
toda. Ele dizem que nunca vão à missa. Perguntamos: o que vocês acham que é ser
cristão? Quem é Jesus Cristo? Quais são os mandamentos que ele trouxe? Daí, a
gente se choca. Eles não sabem – conta Deonira.
A
abordagem de Deonira, além de falar do Evangelho, consiste em argumentar que,
mesmo estando afastados da Igreja, os noivos são cristãos, porque compartilham
dos valores trazidos por Jesus.
–
Eles chegam para a formação amedrontados, acham que vai ter um padre passando
moral e fazendo proibições. Essa é a imagem que as pessoas têm da Igreja, uma
imagem doutrinária. Veem a Igreja como uma coisa arcaica. Eu digo que, toda vez
que amam o próximo, eles estão sendo católicos – afirma.
Essa
forma de pensar não é consensual. Se Deonira entende que mesmo aqueles que
nutrem dúvidas sobre a própria ligação com a Igreja podem se considerar
católicos, caso compartilhem de determinados valores, muitas figuras dentro da
hierarquia eclesiástica apresentam um ponto de vista oposto: o de que grande
parte dos que ainda afirmam ser católicos, no Censo e nas pesquisas, na verdade
não o são. O padre Leandro Chiarello, pároco da Igreja do Rosário e professor
da PUCRS, fornece um exemplo:
–
Vinte ou 30 anos atrás, a pessoa que se divorciava sofria restrições na família
e na sociedade. Hoje, quem sofre a restrição social é quem está casado. Quando
a pessoa diz que está casada há 20 anos, a reação dos outros é de espanto. E o
cara ainda acha necessário acrescentar: "E casado com a mesma
mulher". Existe uma contradição entre teoria e prática. Se tu perguntares
qual religião segue, a pessoa responde: "Sou católico". Mas ela não
vai à missa, não se compromete com a comunidade, não se envolve. Dos 100 milhões
de brasileiros que se dizem católicos, muitos não levam a sério os ensinamentos
de Cristo e da Igreja. Na época em que 85% das pessoas se diziam católicas no
país, o cardeal Aloísio Lorscheider costumava usar uma frase interessante:
"Na verdade, católicos mesmo são só 6%".
O
fenômeno mencionado por Chiarello é algo já documentado em uma série de
pesquisas. Elas mostram que a quantidade minguante de brasileiros que se define
como católica expressa opiniões e crenças frontalmente contrárias à doutrina.
Em 2011, como parte de seu mestrado em Teologia, Edson Frizzo entrevistou 1.104
alunos de Humanismo e Cultura Religiosa, disciplina obrigatória nos cursos de
graduação da PUCRS. A maior fatia (61,2%) definia-se como católica, mas a
crença era de fachada. Apenas 19,2% acreditavam na ressurreição, menos do que
os crentes na encarnação (44%). No que dizia respeito a valores, revelou-se um
festival de anticatolicismo: os estudantes eram a favor do divórcio (90,9%), da
eutanásia (64,1%), do aborto (56,6%), da pena de morte (50,7%), do controle
artificial de natalidade (72%), do sexo antes do casamento (92,9%) e da união
homossexual (52,5%).
–
A doutrina católica não mudou, continua a mesma. Mas as pessoas começaram a
pensar diferente. Virou comum dizer: "Sou católico, mas em tal questão sou
contra a Igreja" – observa Frizzo.
Ele
atua no Curso de Liderança Juvenil (CLJ), um dos grupos de jovens mais
importantes da estrutura católica, e observa que está cada vez mais difícil
arrebanhar – nas escolas e nas famílias – gente interessada em
participar:
–
Em paróquias nas quais, algum tempo atrás, teríamos seis ou sete jovens
entrando por semestre, agora são três ou quatro. Hoje eles têm outras ofertas,
têm o shopping, a praia, a praça, os amigos, a diversão. Parece que a Igreja
vai na contramão da modernidade. Alguns chegam sem a primeira comunhão, sem a
crisma. Estão meio perdidos. O que sabem de Jesus é só o que viram em filmes.
Mariana Endres, 20 anos, sente-se discriminada na faculdade: "É muito difícil falar em Deus. Todo mundo diz que é ateu" Foto: Mateus Bruxel / Agencia RBS |
Uma dificuldade
adicional é que os identificados com a Igreja passaram a ser vistos como E.T.s.
Segundo Frizzo, os jovens católicos relatam ser alvo de preconceito, de piada,
de bullying. Alguns se retraem e preferem esconder a própria fé, para não serem
vistos como criaturas esquisitas. Estudante de Pedagogia na UFRGS e
vice-presidente do CLJ no vicariato de Porto Alegre, Mariana Endres, 20 anos,
considera-se um pouco isolada entre os colegas de faculdade. Confessa sentir
alguma discriminação por ser religiosa e conta que, com frequência, embarca em
discussões durante as aulas – como quando algum professor defende a legalização
do aborto.
Uma
das questões que geram incredulidade entre seus colegas é sua decisão de não
ter relações sexuais antes do casamento. Ela namora um rapaz há quatro anos.
"Como assim? Tu não vais experimentar? Como é que sabes que depois vais gostar?",
questionam os colegas. Mariana não cala o que pensa:
–
Defendo valores, defendo a castidade, defendo a Igreja e me oponho ao casamento
gay em uma sala de aula onde todo mundo pensa o contrário. Como é que não vou
defender as coisas que mais amo? Mas é muito difícil falar em Deus. Na
faculdade, todo mundo diz que é ateu. É como se eu vivesse em dois mundos. Um
durante a semana, entre pessoas sem Deus, e outro nos fins de semana, que
dedico à Igreja.
No
caso do estudante de Direito da UFRGS Michael Jacques, 22, o pensamento
diferente também está dentro de casa. Vindo de uma família sem prática
religiosa, não foi batizado, não fez a primeira comunhão e nunca frequentou
missa. Aos 18 anos, amigos do colégio convidaram-no a fazer parte do CLJ. Ele
resistiu, mas acabou aceitando, motivado pela curiosidade e pela amizade. Foi
conquistado. Como já era adulto, teve de fazer a catequese junto a uma gurizada
de 13, 14 anos.
–
Eu tive de partir do zero, porque não sabia praticamente nada – conta.
Na
faculdade, Jacques não esconde seu catolicismo, mas também não costuma se
posicionar:
–
Em uma turma de 35 alunos, só uns cinco praticam. Acredito que, se eu falasse
sobre religião, seria mal recebido. As pessoas estão muito apegadas a ideias
materialistas. Negam a realidade de Deus.
Michael Jacques, 22 anos, sente-se isolado na universidade: "Em uma turma de 35 alunos, só uns cinco praticam o catolicismo" Foto: Carlos Macedo / Agencia RBS |
Diante desses jovens que
crescem em famílias sem prática religiosa e dos noivos que procuram a bênção
sem saber direito quem é Jesus, a Igreja se vê forçada a voltar ao be-a-bá. Na
arquidiocese de Porto Alegre, está em andamento uma iniciativa para duplicar o
tempo de duração da catequese e do curso de preparação para a crisma. A
formação total, de dois anos, passará para quatro. O bispo Brustolin observa:
–
Em uma sociedade na qual a maioria é cristã, basta nascer que você vai
aprendendo tudo naturalmente, olhando para o pai, para a mãe e para os irmãos.
Agora é como se alguém chegasse de uma outra cultura, como a japonesa, e
dissesse: eu gostaria de ser cristão. Tem de começar da base.
O
próprio diálogo entre gerações ou com o passado pode se tornar difícil. A
laicização significa, por exemplo, que um brasileiro deste início de milênio
provavelmente se sentirá em território estranho quando percorrer os clássicos
de nossa literatura. Tome-se Machado de Assis, geralmente considerado um ateu niilista.
Mesmo que desprovido de fé, ele estava mergulhado em um cultura católica, que
transparecia em cada uma de suas páginas. Esse imaginário era compartilhado com
seus contemporâneos, que não teriam dificuldade para compreender um parágrafo
como o seguinte, do Dom Casmurro: "Como Abraão, minha mãe levou o filho ao
monte da Visão, e mais a lenha para o holocausto, o fogo e o cutelo. E atou
Isaac em cima do feixe de lenha, pegou do cutelo e levantou-o ao alto. No
momento de fazê-lo cair, ouve a voz do anjo que lhe ordena da parte do Senhor:
'Não faças mal algum a teu filho; conheci que temes a Deus'. Tal seria a
esperança secreta de minha mãe. Capitu era naturalmente o anjo da
Escritura". Ao leitor médio de hoje, essa passagem pode parecer impenetrável.
As tradições abandonadas
A mudança de pontos de
referência e de mentalidade é algo que pode ser verificado dentro das famílias
brasileiras. O padre Attilio Hartmann, diretor da Livraria Padre Reus, é um
entre 11 irmãos. Sete deles abraçaram a vida religiosa: dois como sacerdotes e
cinco como freiras. Na geração seguinte, já não é possível encontrar tanta
devoção na família.
–
Nem precisa fazer pesquisa para ver como mudou. Para meus irmãos que têm
filhos, é muito difícil fazê-los ir à missa. São gente muito boa, mas a
religião não fala para eles – diz Attilio.
Entre
os irmãos de Attilio que enfrentam essa dificuldade está Alice Hartmann
Cornelius, 71 anos, ministra da eucaristia na paróquia de São Pedro da
Serra, município a meio caminho entre Montenegro e Bento Gonçalves. Ela tem
quatro filhos. Sonhava que um deles se tornasse padre, e de fato dois entraram
para o seminário – mas acabaram desistindo. Hoje, a mãe já ficaria faceira se
os filhos fossem católicos praticantes:
–
Eles só vão à Igreja uma vez que outra. São adultos, então não posso
obrigá-los. Fico triste, às vezes. Digo a eles que de vez em quando é bom ir à
missa. Acredito que um dia eles vão acordar.
Irmã de padre, Alice Hartmann, 71 anos, despede-se dos filhos e vai sozinha à missa na paróquia de São Pedro da Serra Foto: Carlos Macedo / Agencia RBS |
Um dos filhos que
estiveram para realizar o sonho de Alice é o eletricista João Rodrigo
Cornelius, 38 anos. Aos 13, ele ingressou no Seminário de Gravataí, em
regime de internato. Estava empenhado em virar padre. Após três anos, concluído
o Ensino Fundamental, transferiu-se para o Seminário de Bom Princípio. Lá,
encontrou uma realidade bem diferente. A vocação não resistiu.
– Em Bom Princípio,
o seminário era no centro da cidade. Comecei a sair no fim de semana, a jogar
futebol com outros jovens, a conviver com pessoas diferentes, a ter contato com
outras formas de pensamento. Pedi para sair do seminário por um ano e não
voltei mais – conta João Rodrigo, que se define como católico, mas diz não
frequentar muito a igreja.
O
outro ex-seminarista da família Hartmann é o irmão mais velho, o representante
comercial André Francisco Cornelius, 41, que passou dois anos estudando para
ser padre, antes de mudar de ideia. Ele também diz que continua a se considerar
católico, mas nem isso, nem a formação como seminarista convenceu-o da
importância de casar na Igreja. Ele e a mulher, pais de duas crianças, não
tiveram matrimônio religioso.
–
Isso é comum. O anormal hoje é casar na Igreja – afirma André.
Dotada
de apenas 3 mil habitantes, São Pedro da Serra é dominada por uma igreja
imponente, com cerca de 600 lugares, capaz de acolher um quinto da população
local. Mas não é algo que costume acontecer. Alice, que comparece a todas as
missas, queixa-se de que o templo está cada vez mais vazio:
–
A igreja é quase uma catedral. Quando eu era criança, havia missa todo dia,
sempre lotada. Hoje, é apenas na quarta, no sábado e no domingo, mas só enche
no Domingo de Ramos, na Semana Santa e no Natal. No resto do ano, é muito,
muito espaço vazio. Eu me entristeço bastante.
Às
19h de uma quarta-feira do final de março, ZH acompanhou Alice à missa. A idosa
despediu-se dos quatro filhos, que ficaram em casa, e fez a pé o curto caminho
até o templo. Na imensa nave, encontrou o padre, Isaías Colling, a concidadã
responsável por tocar o órgão e mais oito fiéis, nenhum jovem entre eles. Todos
se aglomeraram junto ao altar, deixando atrás de si um mar de bancos
desocupados. No final da celebração, uma devota entrou, esbaforida. Não chegara
no horário porque estava jogando vôlei.
O
sacerdote reconhece que a sensação de rezar em uma igreja quase vazia é
incômoda:
–
A gente fica se questionando: será que preciso melhorar? Será que a mensagem
não está boa? Será que o problema é o horário? Mas eu sempre acho que não posso
trabalhar pensando nos que não vêm. Tenho de focar nos que vêm, mesmo que sejam
poucos.
Colling tem 27 anos, foi
ordenado há um ano e meio e está há três meses à frente da paróquia.
Se
no passado qualquer um que decidisse ser padre tornava-se venerável de
imediato, no caso dele, que fez a formação já neste terceiro milênio, a
experiência foi distinta. Sua escolha era questionada a todo momento por
pessoas de sua geração, especialmente a opção pela castidade:
–
Quando optei por ser padre, parecia que o mundo estava em um caminho e eu
seguia na contramão.
As migrações da fé
A
mudança dos ares religiosos em São Pedro da Serra permite entrever que, quando
se fala em "descatolização" do Brasil, há uma série de facetas a
examinar. Uma delas, bastante evidente, é a da volatilidade do catolicismo
nacional. Para muitos, declarar-se católico parece ter sido uma forma rebuscada
de indiferença religiosa, a resposta a uma pressão social. Todo mundo ia à
missa, observa o padre Attilio, mas era em grande parte por imposição. Surge
assim essa figura insólita e tão brasileira, o "católico
não-praticante", que ninguém sabe quantificar.
É
esse universo não-praticante, supõe-se, que responde por uma parte muito
expressiva das pessoas que deixaram de se considerar católicas. Há, nesse
particular, pelo menos dois fenômenos. De um lado, encontra-se a perda de fiéis
para outras agremiações, especialmente pentecostais e neopentecostais, um tema
já estudado e explorado à exaustão. O segmento evangélico foi o que mais
cresceu no país no passado recente. Em 1991, abrangia 9% da população. Em 2010,
22,2%.
A
maior parte desses adeptos saiu das hostes papistas. Segundo dados do Pew
Research Center, 54% dos protestantes brasileiros foram originalmente criados
como católicos. Nesse caso, o afastamento do catolicismo não implica saída da
esfera cristã. Mas a Igreja de Roma também perdeu adeptos para a descrença
total ou para a simples desvinculação de qualquer instituição. Os que se
declaram sem religião passaram de 5% para 8% em duas décadas. Na pesquisa da
PUCRS realizada no ano passado entre jovens, o ateísmo, o agnosticismo e a fé
sem religião somaram 32,14% das respostas.
–
A descatolização é, em grande medida, uma desdogmatização. Esse é o grande
fenômeno. A questão do "é assim e pronto" não funciona mais com as novas
gerações. Esse pessoal pergunta muito "por quê". Para os jovens de
hoje, por exemplo, a família é um jogo de montar, é uma família Lego, mesmo que
isso contrarie a doutrina religiosa. É por isso que há tanta gente dizendo que
tem fé, mas não religião – comenta Ilton Teitelbaum, coordenador da pesquisa.
A
transformação cultural também abriu caminho para a expansão dos que se declaram
ateus – um tipo de posicionamento que até pouco tempo atrás era tabu no Brasil.
Em 2008, o engenheiro civil Daniel Sottomaior, curitibano radicado em São
Paulo, descobriu comunidades de ateus na internet e fundou a Associação
Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), que combate a discriminação e o
preconceito contra quem não tem fé. No final de 2010, a agremiação tinha 1,7 mil
sócios. Passados pouco mais de cinco anos, tem 10 vezes mais: 17,4 mil. O Rio
Grande do Sul se destaca. Apesar de responder por 5,5% da população brasileira,
abriga 8,4% dos filiados à Atea. A página da entidade no Facebook acumula 485
mil fãs.
–
Nosso crescimento foi enorme. As pessoas se sentem mais à vontade para se
declarar ateias. Mas estão saindo do armário lentamente. Uma coisa é você
se associar no recôndito do seu quarto. Outra coisa é vestir a camiseta. Vemos
isso na nossa página do Facebook. Nas postagens, as pessoas dizem que gostariam
muito de compartilhar, mas que não vão fazer isso porque vão ter problemas,
porque a família é religiosa – observa Sottomaior.
Na
avaliação dele, no grupo majoritário que se declara católico dentro da
população brasileira há uma proporção considerável de pessoas que já não o são.
É desse contingente que saem os que optam pelo caminho do fervor evangélico
pentecostal ou, ao contrário, pela rejeição à fé ou pelo menos à fé
institucionalizada. O teólogo Faustino Teixeira, do programa de pós-graduação
em Ciência da Religião da Universidade Federal Juiz de Fora (MG), assinala que
o catolicismo virou uma espécie de doador universal, tanto para outras igrejas
como para os sem religião. Ele vê esse fenômeno como parte de "um
desencanto com as formas tradicionais de pertença religiosa e um aumento da
sede espiritual, ainda que não vinculada a uma tradição específica".
–
Os dados do último censo mostram com clareza que se fragiliza essa imagem de um
Brasil profundamente católico. O que ocorre, como diz com acerto o antropólogo
Pierre Sanchis, é que o catolicismo deixou de ser a religião dos brasileiros
para se tornar a religião de boa parte dos brasileiros, mas, mesmo assim,
estamos diante de um fenômeno impressionante de queda na declaração de crença
dos católicos. Há por todo lado uma certa desafeição às instituições religiosas
tradicionais, o que vem engrossar o caldo dos "sem religião", que
hoje representam a terceira declaração de "crença" no país, em torno
de 8% – relata Faustino.
Para
o sociólogo da religião Ricardo Mariano, professor da Universidade de São Paulo
(USP), as migrações da fé ocorridas nas últimas décadas, com redução da
proporção de católicos, podem ser vistas no contexto de uma concretização da
liberdade religiosa, que, apesar de garantida desde o final do século 19 no
país, só materializou-se de fato mais de 50 anos depois.
–
Com o advento da República, ocorreu a formalização legal da liberdade
religiosa. Mas ela não foi conquistada de imediato. A força da Igreja Católica
era muito grande. Imprensa, delegacias de polícia, juízes, intelectuais e uma
série de outras categorias, além do clero, criavam dificuldades para os outros
credos, que foram discriminados e perseguidos. Nos anos 1940, 1950, 1960, muitos
pastores pentecostais eram presos. Foi só na segunda metade do século 20,
sobretudo a partir dos anos 1980, que a liberdade religiosa passou a vigorar na
realidade, e não apenas na lei – historia Mariano.
No
novo cenário de pluralismo, observa o professor, é natural que as pessoas façam
algo que não era tão comum no passado: refletir sobre qual é a sua religião e
tomar uma decisão diante das opções disponíveis. E uma dessas decisões, pode
ser, naturalmente, não ter crença. Outra consequência do pluralismo seria a
presente amplificação de conflitos, controvérsias e debates públicos envolvendo
questões como feminismo, orientação sexual, aborto e direitos das minorias.
Mariano complementa:
–
Diferentes concepções de mundo existentes em uma sociedade tendem a gerar maior
conflito. Hoje em dia, nem os evangélicos, nem os católicos, nem os
representantes das minorias têm força suficiente para vencer as disputas no
parlamento. Cada vez mais, a luta se judicializa. É por isso que a união de
pessoas do mesmo sexo foi decidida no STF (Supremo Tribunal Federal). No
parlamento, nenhum lado prevalece.
Em
um cenário de pluralismo e secularização crescentes, vale evocar a
transformação tremenda que ocorreu em mentalidade, valores, comportamentos e
ética como consequência da transição ocorrida entre o mundo pagão da
Antiguidade e o mundo cristão que emergiu de suas ruínas. Quando mudaram as
crenças, mudaram também o homem e a sociedade. Se, como define o bispo
Brustolin, realmente ingressamos em uma fase "pós-cristã", isso
significa que a sociedade e o homem virarão outra coisa, mais uma vez?
–
O conjunto de valores com os quais a religião trabalha tem um impacto sobre a
sociedade. Quando não queremos mais o cristianismo como norteador da
experiência humana, esses valores se perdem. O que os substitui? Que
projeto vem no lugar? – indaga Brustolin.
O
bispo aponta que algumas instituições basilares nasceram no seio do
catolicismo. Cita os hospitais, uma invenção católica, que na origem eram o
lugar para hospedar os fracos e os doentes – e que ainda hoje, no Brasil, são
em grande quantidade entidades vinculadas à Igreja. A universidade seria um
caso parecido: surgiu no período medieval como um espaço essencialmente
católico. Para Brustolin, quando a sociedade brasileira deixa de se identificar
com a religião, essas instituições permanecem, mas perdem alguma coisa da sua
essência:
–
Elas podem ficar reféns de outros projetos, que não a humanização. Eu posso ter
uma universidade, um hospital, uma escola que não estão mais preocupados em
humanizar a sociedade. Elas passam a ter outro sentido, que pode ser o mercado,
pode ser a ideologia. Até mesmo o conceito de pessoa pode ser afetado, porque o
que temos hoje nasceu das primeiras disputas cristológicas, lá nos séculos 3 e
4.
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ZH
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