«Porque é que a Igreja no seu culto usa de metais
preciosos e vestes solenes? Será que ela precisa disto para impressionar o
povo?»
O mobiliário e o vestiário do culto sagrado não
visam honrar os homens (nem os ministros do culto nem os fiéis) nem impressionar
a massa, mas dirigem-se primàriamente a Deus.
O homem, rei da criação, foi incumbido pelo Criador
de estabelecer ordem no mundo (cf. Gên 1,28); toca-lhe, portanto, o dever de
fazer que as criaturas inferiores, inanimadas, concorram do seu modo para
proclamar a grandeza de Deus; é esta a sua função quando utilizadas na
arquitetura, na pintura das igrejas ou na confecção de objetos atinentes à
Liturgia sagrada.
Se os templos católicos fossem apenas lugares de
reunião do povo fiel ou meras salas de oração e pregação, compreende-se que
estivessem destituídos de todo ornamento. Na concepção católica, porém, a
igreja é, antes do mais, a Casa de Deus, onde o Senhor se torna de modo
especial presente na Santa Eucaristia. É a consciência disso que sempre moveu e
ainda move os fiéis a consagrarem ao decoro da Casa de Deus o que possuem de
melhor, tanto do ponto de vista material como do ponto de vista estético ou
artístico.
De resto, o próprio Deus no Antigo Testamento se
dignou legislar minuciosa e carinhosamente sobre a arquitetura, o mobiliário e
os utensílios da liturgia israelita. Se não fosse a concepção de que a natureza
inteira deve testemunhar a grandeza do Criador, não se entenderia uma passagem
como a seguinte:
«Moisés
disse a toda a assembleia cios filhos de Israel: 'Eis o que prescreveu o Senhor
: oferecei dos vossos bens uma parte para o Senhor. Que Iodos os varões
generosos levem essa contribuição voluntária ao Senhor: ouro, prata, bronze,
púrpura violeta e escarlate, carmezim, linho fino e o pelo do cabra, peles de
carneiro ungidas de vermelho, couro fino e madeira de acácia; óleo para a
lamparina, perfumes para o crisma e incenso fino aromático, pedras do cornalina
e pedrarias para incrustar no efode e no peitoral. Todos os mais hábeis
artesãos dentre vós venham executar tudo que Javé prescreveu: a Morada, sua
tenda e sua cobertura, suas argolas e seus quadros, suas travessas, suas
colunas, seus pedestais,... as vestes do aparato para oficiar no santuário, as
vestes sagradas destinadas ao sacerdote Aarão e as que seus filhos revestirão
no exercício do sacerdócio'» (Êx 35, 4-11.19).
Veja-se ainda o que se segue a esta passagem, em Êx
36-40. Muito mais rico de pedras e metais preciosos era o Templo construído em
Jerusalém por Salomão, sob a inspiração do mesmo Senhor; cf. 3 Rs 5,11-8,66.
Tenha-se em vista outrossim Êx 31, 1-5:
«O
Senhor falou a Moisés, dizendo : 'Eis que chamei pelo nome a Beselel... Enchi-o
do Espírito de Deus, de sabedoria, do inteligência e de ciência para toda
qualidade de obras, para inventar o que se pode fazer com ouro, prata, cobre,
mármore, para talhar madeira e executar toda espécie de obras'».
No
Novo Testamento, lê-se que Cristo não recusou a libra de perfume muito precioso
com que O ungiu Maria, irmã de Lázaro e Marta. A Judas, que se escandalizava
pelo acontecimento, lembrando que o unguento podia ter sido vendido em
beneficio dos pobres, o Senhor respondeu que a mulher fizera ótima
obra, pois honrara a sua Divina Pessoa enquanto isto lhe era facultado
(cf. Jo 12,1-8; Mt 26,6-13). De resto, o Evangelista nota que Judas,
aparentemente tão zeloso dos pobres e da caridade, era, na verdade, movido pela
avareza e a cupidez, quando protestava contra o «desperdício» de perfume (cf.
Jo 12,G). A história, por sua vez, atesta que não poucos daqueles que
despojaram os templos e o culto sagrados em nome da filantropia, só o fizeram
para servir a seus interesses pessoais; através dos séculos foram muitas vezes
os grandes, e não os pequeninos, que se enriqueceram com os bens sequestrados à
Igreja. Ora não merece atenção o fato de que o primeiro a protestar contra o
«esbanjamento de valores preciosos» no culto do Senhor foi um avarento e
traidor?
Não seria lícito, porém, ao cristão esquecer os
pobres sob o pretexto de atender à dignidade da sagrada Liturgia. O erário
eclesiástico é, na verdade, distribuído de modo a servir a Deus tanto no culto
como na pessoa dos indigentes; a Igreja, ao lado de seus templos, tem suas
obras de assistência social, assim como seus Religiosos e Religiosas que se
dedicam ao serviço dos doentes, órfãos, anciãos, etc. Em tempos de calamidades
públicas, os bispos não têm hesitado cm vender utensílios do culto a fim de
aliviar os males da sociedade.
Tal venda, porem, só é indicada em casos
extraordinários, pois nas circunstâncias habituais da vida pública o despoja
mento das igrejas não seria compensado por real alivio da miséria comum: se se
fundisse o metal precioso e se vendesse a pedraria dos utensílios de culto,
para distribuir dinheiro aos pobres, não há dúvida de que exígua seria a
porcentagem dos beneficiados; os milhões de almas de um povo quase não
experimentariam benefício material, mas por certo sentiriam a imensa lacuna
espiritual acarretada por um culto destituído de suas belas expressões
sensíveis. Note-se, aliás, que o que dá valor aos utensílios sagrados muitas
vezes não é a quantidade de material precioso que entra em sua composição, mas,
sim, a finura estética e o gosto de suas linhas.
Talvez se diga por fim: Jesus apregoou o culto «em
espírito e verdade» (cf. Jo 4, 23), parecendo com isto excluir todo o aparato
sensível da Liturgia.
A esta observação responder-se-á que Jesus com
aquelas palavras entende suscitar nos seus fiéis um culto vivido e celebrado
primàriamente no íntimo da alma de cada um; sendo o homem composto de espírito
e matéria, é no seu espírito, na sua parte mais nobre, que ele tem, antes do
mais, de glorificar a Deus (não necessariamente em Jerusalém, nem no monte
Garizim, como pensavam respectivamente os judeus e os samaritanos mencionados
no contexto de Jo 4);se não provém da inteligência e
do amor da alma sinceramente unida ao seu Senhor, vã é qualquer demonstração
externa de culto. Uma vez, porem, que o cristão no seu intimo reverencie a
Deus, não lhe seria lícito furtar-se à exigência de o manifestar por atos
sensíveis; é a sua constituição natural, psicossomática, que lho impõe, fazendo
que ele seja naturalmente levado às realidades invisíveis mediante as visíveis.
Entende-se bem que, do seu lado, Deus, tendo-nos constituído em alma e corpo,
queira que também esta sua criatura, o corpo humano, O glorifique na medida do
possível, ou seja, como expressão de um espírito cheio de fé e amor.
Dom
Estêvão Bettencourt (OSB)
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