Uma pergunta comum que brota espontaneamente
naqueles que começam a descobrir o sentido da Liturgia e mergulhar em seu
verdadeiro espírito é: "o que fazer quando os abusos litúrgicos são
tamanhos e a bagunça tão generalizada que a Santa Missa fica quase que
desfigurada e a vontade maior é chorar e sair correndo dali?".
É bem verdade que, em último caso, o fiel pode
discretamente sair da celebração (e procurar outra mais adequada caso o dia
seja de preceito). E por "último caso" entenda-se aqui uma situação
verdadeiramente excepcional, em que permanecer na missa levaria o fiel a pecar
(e.g. contra a caridade no que diz respeito ao celebrante ou alguém que o
auxilia), pois aplicar isto corriqueiramente pode demonstrar duas coisas da
parte do fiel:
Um mau entendimento de que a liturgia na terra é
perfeita, o que não é verdade, pois enquanto a liturgia celeste é perfeita em
essência e forma, a terrestre é imperfeita em sua forma);
Uma vaidade florescente, em contraposição à
humildade que diminui, por se considerar uma espécie de Sr. Liturgista.
Parafraseando Tomás de Kempis na Imitação de Cristo: "Que te aproveita
discutires sabiamente sobre a Sagrada Liturgia e o Santíssimo Sacramento, se
não és humilde, desagradando, assim, ao mesmo Nosso Senhor presente no
Santíssimo Sacramento?"[1]
Esta mesma pergunta possui uma outra resposta,
muito mais heróica e meritória. Desta vez eu a li das penas do católico J. R.
R. Tolkien, autor da famosíssima série O Senhor dos Anéis:
"A única cura para o alquebramento da fé débil
é a Comunhão. Apesar de sempre em Si próprio perfeito e complexo e inviolável,
o Sagrado Sacramento não opera completamente e de uma vez por todas em qualquer
um de nós. Como o ato de Fé, ele deve ser contínuo e cultivado pelo exercício.
A frequência é o maior efeito. Sete vezes por semana é mais acalentador do que
sete vezes a intervalos. Recomendo também isto como um exercício (infelizmente
muito fácil de se encontrar a oportunidade para tal): faça sua comunhão em
circunstâncias que afrontem seu gosto. Escolha um padre fanho ou gago ou um
frade orgulhoso e vulgar; e uma igreja repleta da usual multidão burguesa, com
crianças malcomportadas – daquelas que gritam àqueles produtos de escolas
católicas que no momento em que o tabernáculo é aberto recostam-se e bocejam –
, jovens sem gravata e sujos, mulheres de calças e frequentemente com o cabelo
despenteado e descoberto. Vá à Comunhão com eles (e reze por eles). Será
exatamente (ou melhor) como uma missa conduzida por um homem visivelmente santo
e compartilhada por algumas pessoas devotas e decorosas. (Não poderia ser pior
do que a bagunça da alimentação dos Cinco Mil – após a qual [Nosso] Senhor
propôs a alimentação que estava por vir.)" [2]
Já ouvi referirem-se a isto como
a "técnica de São João", que consistiria em: como o jovem
apóstolo, agarrar-se na barra da saia de Nossa Senhora aos pés da Cruz e
chorar de dor pelo descaso com que é tratado Nosso Senhor no Santíssimo
Sacramento do Altar... e aguentar. Aguentar, pois o Calvário certamente não foi
fácil de suportar, mesmo para aqueles que apenas o presenciaram. Era o momento
em que o Salvador e Rei remia o mundo. E era o momento em que o mesmo Salvador
e Rei era brutalmente injuriado, seu corpo todo esfacelado sendo entregue por
nossos pecados.
Por que isto seria mais heróico e meritório? Faço
uma analogia com a água pura e a água suja. Em ambos os casos a água está
presente em essência. As impurezas da água barrenta não a tornam menos
água, não ferem sua essência. Contudo, nos impedem de enxergar sua pureza e
cristalinidade. É o mesmo com a Santa Missa. As impurezas dos abusos litúrgicos
não a tornam menos Missa [3]. Mas atrapalham a nós, sensíveis como somos,
e nos impedem de enxergar seu brilho e glória.
Poucos são os que conseguem enxergar além da água
barrenta e ver sua essência. Poucos também são os que conseguem enxergar além
dos abusos litúrgicos. Mas com os olhos da fé podemos nos esforçar por fazê-lo,
e é mister que o façamos.
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[1] Diz a frase original: "Que te aproveita
discutires sabiamente sobre a SS. Trindade, se não és humilde, desagradando,
assim, a essa mesma Trindade?" (Imitação de Cristo, Livro I, Cap. 1, n.3)
[2] Trecho da carta para seu filho Michael Tolkien,
1 de Novembro de 1963. Mais trechos desta carta podem ser lidos aqui.
[3] A menos, claro, que as partes essenciais sejam
alterados e a Santa Missa, além de ilícita, não seja válida.
Daniel Pereira Volpato
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Salvem a Liturgia
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