O profeta
Amós escreve numa época de muita religiosidade e pouca justiça social. As
palavras dele nos levam a perceber que a religião possui profunda inserção
social. De nada vale prestar culto a Deus e os pobres continuarem a ser
oprimidos.
Introdução
Amós está incluído no grupo dos “mensageiros da
aliança”, e a maior parte de suas declarações são fragmentos de atividades
judiciais da aliança, nos quais Javé, nos papéis de promotor e juiz, faz as
acusações e condena a liderança do povo por violar a aliança e deixar de
“observar os princípios básicos da política social expressa no decálogo”,
explorando os fracos e pobres (Am 2,4-7). Provavelmente Amós profetizou entre
os anos 760 e 755 a.C., durante o reinado de Jeroboão II, no reino do Norte
(793-753 a.C.), pondo ênfase na questão social e econômica ao denunciar o luxo
excessivo às custas da exploração da população comum.
Enquanto os abastados e funcionários do Estado
viviam na comodidade, usufruindo do conforto concedido pela situação, esclarece
Schwantes (2013, p. 16), os camponeses eram obrigados a bancar, com muito
sofrimento, os planos de expansão comercial e militar de Jeroboão II. O rei
impôs um aumento na tributação e colocou o serviço religioso como o centro
arrecadador, usando as festas e rituais para incentivar a produção e
consequentemente aumentar a arrecadação. Amós era contra essa religiosidade que
de Deus não tinha nada! A classe dominante de Israel “multiplica as
transgressões”, subjugando e empobrecendo o povo, usando até a força bruta para
conseguir seus intentos (3,9-10; 4,1; 8,4). A necessidade que o Estado tinha de
criar riquezas, forçando os camponeses com a tributação, surgiu graças aos
altos custos do aparato militar, da elite administrativa, da expansão do
comércio internacional e do consumo dos produtos de luxo importados. Tudo isso
bancado pelo povo (Am 4,1), que era pisado (Am 2,7), aterrorizado (Am 3,9),
esmagado (Am 4,1) e destruído (Am 8,4) pela tributação estatal. Amós deixa bem
claro que a classe dominante em Israel se encontrava em uma situação
confortável, segura e sem problemas. Viviam com a confiança de que o mal nunca
se aproximaria deles. Agradeciam a Deus pela prosperidade, mas não se
preocupavam nem se “afligiam com a ruína de José” (v. 6). A religiosidade dos
abastados era de uma espiritualidade equivocada, já que achavam que Deus estava
ao lado deles, abençoando-os, enquanto oprimiam os pobres e necessitados. Mas
Deus “desceu para onde está o escravo, o sofredor, o oprimido. Ele nunca se
encontra no lugar que é ocupado pelos opressores, pois nesses lugares existe a
tendência de arrastar Deus para o seu lado com o objetivo de legitimar o
esquema opressor” (ROSSI, 1990, p. 28). Javé sempre olhou pelos pobres e
necessitados e nunca irá abençoar qualquer sistema que use de opressão para
manter-se.
A rica expressão de Amós “Quero ver o direito
brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca” está inserida
num contexto em que o profeta explicita o tipo de culto desejado por Deus. Os
cultos espetaculares, com suas esplêndidas liturgias que demonstravam grande
fervor religioso, não passavam de disfarces para esconder o grosseiro egoísmo e
ateísmo prático dos líderes. Não devemos nos esquecer da vinculação do
santuário de Betel à coroa e de como os sacerdotes eram funcionários do rei. Em
Amós 7,13, Amasias, sacerdote de Betel e consequentemente funcionário de
Jeroboão II, afirma que Betel era o santuário do rei e ali era o templo do
reino, deixando claro que a situação religiosa estava sob o controle real. É
indiscutível que o templo foi facilmente manipulado por razões de Estado.
1. Rios
secam quando deixamos de praticar a justiça
Os atos e rituais que expressavam liturgicamente a
fé na divindade não foram criados pela camada pobre de Israel, mas sim pelos
ricos e para os ricos. E assim o reinado de Jeroboão II tornou-se o contexto de
práticas religiosas consideradas formas hediondas de pecado, porque vinculadas
à opressão dos pobres. A religiosidade esquizofrênica em Israel também é
encontrada em Amós 4,4-5, em que constatamos que o cumprimento dos rituais do
templo, a adoração e a participação das festas seriam para proveito dos
próprios ofertantes e para encobrir suas falhas morais e a opressão aos justos
empobrecidos. Uma falsa religiosidade substituindo a prática da justiça e a
adoração verdadeira. De nada valia a religião se era usada para encobrir as
injustiças, tampouco seus rituais bem elaborados e a pompa dos cultos. E o que
falar de Amós 8,4, em que lemos sobre o desprezo pelos dias sagrados que os
comerciantes eram obrigados a observar? Não viam a hora de passar esses dias
para que pudessem pôr em prática seus métodos para enganar e roubar a população
oprimida.
Esses dados mostram que as práticas religiosas em
Israel eram meramente formais, sem um real relacionamento do cultuador com
Deus. As festas, os ritos, os dias santos, os sacrifícios, as procissões eram,
todos, meios de autogratificação dos ofertantes, usados para compensar sua
injustiça. O que caracterizava, portanto, a religiosidade das classes altas de
Israel era: luxo e pompa na forma; falta de contato com Deus no conteúdo;
manipulação da divindade na atitude, a fim de legitimar as práticas contrárias
à lei da aliança (ZABATIERO, 2013, p. 50).
O código da aliança estava completamente esquecido,
não era mais praticado. E o se importar com o próximo não estava mais em uso.
Participar de um culto manipulado era o suficiente para justificar as
injustiças dos poderosos. Aos olhos dos profetas, havia íntima relação entre a
injustiça e a falta de misericórdia dos poderosos, de um lado, e a pobreza
espiritual deles, de outro. A religião dos ricos era fingida, uma máscara que
escondia suas reais intenções de oprimir e roubar os pobres e fracos (Os 6,6;
Am 5,21-24).
Na crítica dos profetas, “o culto se converteu num
lugar de autocomplacência e de fartura. Javé se converteu em mera função de uma
empresa religiosa que é manipuladora e interessada” (BRUEGGEMANN, 2007, p.
711). O culto deveria ser testemunha e encarnação da prática de comunhão com
Javé, com o verdadeiro caráter de Javé como soberano e misericordioso. Mas o
templo e os rituais nele realizados funcionavam somente como um possível
calmante para Javé. O significado dos rituais se esvaziara, perdera-se de vista
o que realmente importava: amar solidariamente. Quando os profetas criticavam o
que ocorria no templo e deslegitimavam os ritos sacrificais, a intenção deles
era somente uma, acabar com as injustiças sociais e econômicas. Talvez seja
possível afirmar que os profetas propunham nova forma de adoração, fundamentada
na prática da justiça e no restabelecimento do direito dos pobres e explorados.
Nos profetas encontramos o desmascaramento da violência e da superficialidade
do sistema religioso e a declaração de qual rito é, de fato, agradável a Deus:
a prática da solidariedade. É preciso insistir no fato de que, para o povo de
Deus, a justiça representa tanto o problema essencial da existência quanto um
elemento essencial de saúde social.
Atos de maldade, violência e injustiça provocam
Javé. Vivemos num tempo em que é praticamente impossível não ser envolvido com
a exploração do pobre no mundo. No entanto, a solidariedade é palavra que
assume contornos de arcaico e de raridade. Esquecemo-nos com muita facilidade
de que a medida de uma sociedade plenamente humana reside justamente na vida de
seu povo pobre. Uma sociedade em que falta o cuidado pelo vulnerável/pobre é,
significativamente, desumana e desumanizadora. A opressão do fraco pelo forte
há de se tornar na literatura profética um sinal incontestável da negação de
Deus. Nesse sentido, a negação de Deus não passaria pela confissão religiosa,
mas, sim, pela negação de gestos de solidariedade e de proteção em relação aos
mais fracos.
2. O
conhecimento de Deus exige sempre a prática da justiça
Exatamente por causa disso também podemos
interpretar a realidade e como ela se manifesta por meio do não conhecimento de
Deus. Poder-se-ia dizer que a totalidade da sociedade é prejudicada quando
alguém se afasta desse conhecimento e, consequentemente, o custo social se
eleva. Todas as vezes que o conhecimento de Deus é rejeitado, mal interpretado,
manipulado ou ocultado, temos forte reflexo no aumento da prática de injustiças
entre os mais pobres.
O conhecimento de Deus exige sempre a prática da
justiça exatamente porque ele é a fonte da prática da justiça. Percebe-se que o
cotidiano é o definidor do conhecimento de Deus. Não é necessário olhar para o
alto, mas sim para a terra! A vida prática daqueles que deturpam o conhecimento
de Deus é vida cheia de injustiças entre os seres humanos. Devemos, sem sombra
de dúvida, pensar de forma coletiva, ou seja, talvez seja necessário abandonar
a percepção de que conhecemos Deus a partir da singularidade. Por quê?
Basicamente porque compreender o conhecimento de Deus como toda a sociedade –
todo o tecido social – é prejudicado quando alguém se afasta desse
conhecimento. A questão, portanto, não é a integridade de Deus, mas a
integridade do ser humano e da criação.
O ranking do conhecimento de Deus – alto ou baixo –
residiria na maneira como a solidariedade é praticada para com o pobre! A
relação de proximidade existente entre Deus e o próximo é de extrema clareza no
Antigo Testamento. A negação do outro pobre significaria a negação do próprio
Deus. Dois textos me parecem emblemáticos a fim de esclarecer um pouco mais:
“Não explorarás ao jornaleiro necessitado e pobre, seja ele seu irmão ou um
estrangeiro que reside em sua terra. Pagará a ele a cada dia seu salário, sem
deixar que o sol se ponha sobre esta dívida; porque ele é pobre e, para viver,
necessita de seu salário. Assim ele não clamará a Javé contra ti e não ficarás
em pecado” (Dt 24,14-15); “Quem burla de um pobre ultraja o seu Criador” (Pr
17,5). Gutiérrez é claro ao afirmar: “Onde há justiça e direito há conhecimento
de Javé, quando aqueles faltam este está ausente […] o Deus da revelação
bíblica é conhecido através da justiça inter-humana” (1973, p. 252). A equação
me parece diáfana: recusamos o próprio Deus quando aceitamos e até mesmo
legitimamos a desigualdade social, política e econômica. Se a presença de Deus
acontece de maneira ativa e proativa em relação aos pobres, nosso encontro com
ele somente pode acontecer a partir de gestos concretos que viabilizem a
solidariedade com os pobres e sua libertação. Na miséria se encontra a
verdadeira face de Deus.
Em outras palavras, se o comportamento ético não
melhorar, a consequência inevitável seria a ausência de Javé de sua própria
casa. A acusação de fundo é justamente aquela que aponta para a discrepância
entre o comportamento na vida diária e a confiança no templo. A verdadeira
religião foi convertida em mentira por conta das injustiças cometidas pela
comunidade de adoração contra os pobres em seu meio. É necessário salientar,
segundo a percepção de Blank (2002, p. 47), que “não é o culto em si que está
sendo rejeitado, mas toda a ideologia que usa o culto para encobrir interesse
de poder, interesses ideológicos e até interesses econômicos ou religiosos”.
Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a falsa adoração contribui para um aumento
substancioso do custo social. Onde falta a dimensão horizontal, a dimensão
vertical é impossível. Percebe-se uma relação de anterioridade do horizontal
sobre o vertical. A relação horizontal é pré-requisito para a vertical, e a
vertical somente subsiste com base na emergência da horizontal. Não se trata de
repudiar o sacrifício realizado nas celebrações, mas de indicar que ele é
inaceitável quando as qualidades da justiça e do direito estão faltando.
O relacionamento com Javé não é construído por meio
de um processo mágico, mas unicamente por meio da obediência à sua vontade, que
é livre e não se prende a coisa alguma. Além disso, o profeta acrescenta que a
busca que eles fazem por Deus no templo não combina com as injustiças
praticadas no dia a dia; isto é, ele condena enfaticamente os sacrifícios
realizados no templo acompanhados pelas injustiças praticadas exteriormente
(cf. Is 1,10-17). O culto não combina com a vida diária deles e, por isso, não
é autêntico. O comportamento diário é o critério para a autenticidade do culto.
Certamente, para o profeta, é aquilo que acontece nas ruas que profana ou não o
templo. E, consequentemente, Amós relativiza a forma de culto que não tem seu
início na “sacralização” da vida, ao dizer que Javé deseja ver o direito brotar
como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca. No entanto, muitos não
viam a necessidade de seguir a vontade de Javé na vida diária. Era, poderíamos
dizer, uma fé sem responsabilidade social.
Não se trata, portanto, de rezar mais ou menos. Mas
de encontrar Deus e celebrar a vida no encontro com os pobres, pois “somente
através deles o homem entra em contato com Deus. Ou, melhor dizendo, somente
quando o homem busca a Deus por esta via indireta tem sentido buscá-lo também
de forma direta” (SICRE, 1990, p. 401). Não resta dúvida de que o conhecimento
de Deus se manifesta notadamente no campo das relações entre os seres humanos.
Afirmaríamos que o mais importante não é o culto, mas a prática da justiça!
Epsztein segue na mesma linha ao afirmar que “o culto de Javé que não for
acompanhado de conduta íntegra torna-se blasfêmia, induzindo os fiéis ao erro”
(1990, p. 112).
A percepção de Amós tinha como ponto de partida o
espaço público, para somente depois caminhar em direção ao espaço privado.
Nesse sentido, o espaço do templo – contraposto ao espaço público, isto é, das
ruas – talvez possa ser visto na literatura de Amós como uma extensão do que
acontece na vida pública. Afirmamos que era extensão porque o profeta não
percebia a “vida das ruas” e a “vida do templo” como entidades distintas e
distantes. Seriam realidades complementares que poderiam, até mesmo, agir como
agentes de reforço mútuo. A tentação de um dualismo que separa a vida do culto
é real! Mas o culto deveria funcionar como se fosse uma retroalimentação dos fiéis,
que os modelaria e os levaria a uma prática alternativa no “mundo real”. Somos
necessariamente levados a concluir que a prática do bem, da retidão e da
justiça era a expressão fundamental do compromisso com Javé. De acordo com
Vitório (2012, p. 26): “o padrão de conduta baseado na vontade divina estava
calcado nas relações interpessoais fundadas na misericórdia e na justiça, mais
do que em práticas cultuais. O cultual ocupava lugar secundário, quando se
tratava de agir corretamente em relação ao semelhante”.
Nos mais variados textos proféticos é possível
perceber com clareza a decadência da fé em Israel. Uma decadência não originada
da falta de “fé”, mas sim da falta de foco em observar a relação intrínseca e
inevitável entre celebração da vida e celebração de Javé. Todavia, os atos
formais do culto, por mais performáticos que pudessem ser, já não davam
qualquer sinal de que ali se adorava a Javé. Gerstenberger (2007, p. 233)
ratifica que, na época dos profetas, “crítica social e crítica ao culto andavam
de mãos dadas”.
A questão de fundo dos profetas não era a reforma
pura e simples da liturgia que ocorria nas celebrações no templo. Não se
tratava de reforma e muito menos de uma crítica ao modelo litúrgico. O que se
condenava de maneira contundente era a falta de vínculo entre celebração e
vida, isto é, pensava-se que Javé pudesse ser subornado e comprado com rituais
grandiloquentes e, além disso, que Javé pudesse estar do lado deles, mesmo
quando a violência e a opressão se faziam presentes na ordem do dia.
Os profetas, nesse sentido, demonstravam profunda
convicção de que a celebração religiosa não podia ser separada da vida. Seria
impensável e, até mesmo, impossível buscar a Deus sem reconhecer a necessidade
imperativa de praticar a justiça em todas as relações humanas. A violação do
direito inalienável do ser humano é, antes de tudo, uma violação do próprio
Deus. Trata-se de crime contra Javé, o autor e protetor da vida. Afinal, ao
suprimir o direito do pobre, “sua existência em si está ameaçada” (SCHWANTES,
2013, p. 100). Não se trata, portanto, de ações dos poderosos que ameaçam
somente a propriedade; em jogo está a própria vida dos oprimidos.
A situação descrita por Amós em seu livro é a de
indivíduos que, durante o dia, exploravam as pessoas e, mais tarde, se
refugiavam no templo. Eles queriam estar próximos de Deus, contanto que
pudessem estar distantes de todos os outros que eram diariamente violentados
por eles mesmos. Todavia, poderíamos afirmar que não há como ter comunhão com
Deus e, ao mesmo tempo, oprimir as pessoas; não há comunhão vertical quando não
há comunhão horizontal; e seria impensável amar a Deus que não vemos se
negligenciarmos aqueles que vemos. Uma das mais belas peças teológicas dos
profetas pode muito bem ser assim resumida: não há conhecimento de Deus quando
não há comunhão e solidariedade com os mais pobres.
3. Se dez
vezes formos aos pobres, dez vezes nos encontraremos com Deus
Os caminhos do povo de Deus em direção aos
santuários de Betel, Berseba, Gilgal ou Jerusalém, ao invés de aproximarem-no
de Deus, distanciavam-no. Eram caminhos que levavam para mais próximo dos
templos e para mais distante dos pobres! A religião não pode ser vista na
perspectiva do conceito de neutralidade. Estamos diante de pessoas que
exploravam a revelação religiosa em vista de seus próprios interesses.
Narcotizavam as próprias mentes de tal maneira, que passavam a utilizar
conscientemente a religião para justificar suas injustiças no trato com seus
semelhantes. A direção a princípio poderia ser considerada correta, mas os
passos revelavam uma prática que situava em compartimentos bem separados a
religião e a vida. Nesse caminho presumiam que Deus estivesse com eles, mas na
verdade não o conheciam. Não podemos nos esquecer de que a prática do bem é
sinal incontestável da presença de Deus. E, consequentemente, “ninguém pode
pressupor que Deus está com ele, se não pratica o bem” (LOPES, 2007, p. 130). E
Amós não nos deixa esquecer, por exemplo, de que “buscar a Deus” (5,4) e
“buscar o bem” (5,14) têm o mesmo significado. Havia entre eles muita
religiosidade e nenhuma vida, mas não podemos nos esquecer de que a vida
precede o culto.
Amós não fala sozinho; Isaías e Jeremias juntam-se
a ele para nos dizerem que Javé estava cansado do culto que parte da população
fazia porque havia iniquidade associada ao ajuntamento solene (Is 1,11-13).
Liturgia e vida deveriam ser visualizadas simetricamente, isto é, toda vida
deveria ser percebida como cúltica. Amós, por sua vez, usa palavras realmente
fortes para demonstrar a desaprovação ao culto: “aborreço”, “desprezo”, “não me
deleito”, “não me agradarei nem atentarei”, “afasta de mim o estrépito”, “não
ouvirei” (5,21-23). Impressiona a força das palavras e como todas elas nos
levam a pensar que a prática da justiça e do direito deve preceder o ritual
religioso. Os rituais, por mais pomposos que possam ser, não substituem a
prática da justiça. Aqueles do meio do povo que acorriam aos santuários
poderiam ser descritos da seguinte forma:
eles iam ao templo, mas a vida não era
transformada; cantavam, mas não adoravam; corriam a Gilgal, mas não deixavam
correr os ribeiros de justiça e de retidão. Não havia conexão entre religião e
vida. Eles eram liturgicamente avivados, mas eticamente reprovados; tinham
carisma, mas não caráter; cantavam bonito no templo, mas viviam de forma
horrenda aos olhos de Deus; diziam amar a Deus, mas oprimiam o próximo (LOPES,
2007, p. 135).
A celebração da vida não apenas precede o ritual
religioso, como também o ratifica. Mazzarolo (2005) segue igualmente pelo mesmo
caminho ao dizer:
Deus não quer em primeiro lugar um culto dirigido a
ele, muitas vezes como desculpa para a conduta injusta de vida; ele quer sim
uma vida nova que espalhe sua própria justiça. A exigência de Deus, portanto, é
para que os homens se convertam da relação de desigualdade para uma relação
social justa e igualitária, através da partilha de um sistema econômico onde os
bens são distribuídos de tal maneira que gerem vida para todos.
Todavia, o contrário, por mais sugestivo que possa
ser e parecer, não expressa nem de perto a mesma e necessária verdade da
teologia bíblica do Antigo Testamento. Deus procura vida, e não culto.
Conclusão
A performance no culto de nada adianta se estiver
desvinculada da performance em defesa da vida dos mais fracos. Deus não cabe na
sacristia nem muito menos pode ser reduzido a um sacristão! Rituais
desconectados da vida e que negam a vida estão à procura da domesticação de
Deus. Domesticando o sagrado, pensam que podem manipulá-lo e, manipulando-o,
invertem a posição, ou seja, deixam de ser criaturas para se tornar criadores.
Havia uma grande falha na teologia que procedia do templo exatamente porque ela
não tinha como fonte perene de alimentação a libertação e a defesa do mais
vulnerável. A percepção de Amós nos ajuda a compreender que os crimes sociais
se tornaram crimes religiosos
Que fazer para sobreviver dentro de um sistema em
que o pobre é uma forma ilegítima de existência humana?
Amós nos ajuda a pensar que adoramos a Deus no
corpo desfalecido dos fracos. O corpo deles é um altar em que Deus sempre se
faz presente. Nesse sentido, um crime cometido contra o ser humano deve ser
compreendido como um crime contra Deus e, além disso, a negação do caráter de
cuidador dos pobres se reflete na negação da divindade. Quando caminhamos em
direção aos pobres, são os nossos pés que rezam.
____________________________________________
Bibliografia
BLANK, R. J. O Deus que desafia seu próprio culto.
Revista de Cultura Teológica, São Paulo, v. 10, p. 33-47, 2002.
BRUEGGEMANN, W. Teología del Antiguo Testamento.
Salamanca: Sígueme, 2007.
EPSZTEIN, L. A justiça social no antigo Oriente
Próximo e o povo da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1990.
GERSTENBERGER, E. Teologias no Antigo Testamento.
São Leopoldo: Sinodal, 2007.
GUTIERREZ, G. Teologia da Libertação. Petrópolis:
Editora Vozes, 1973.
LOPES, Hernandes Dias. Amós: um clamor pela justiça
social. São Paulo: Hagnos, 2007.
MAZZAROLO, I. O clamor dos profetas ao Deus da
justiça e misericórdia. São Paulo: Mazzarolo, 2005.
ROSSI, Luiz Alexandre Solano. Como ler o livro de
Jeremias: profecia a serviço do povo. São Paulo: Paulus, 1990.
SCHWANTES, M. O direito dos pobres. São Leopoldo:
Oikos, 2013.
SICRE, J. L. A justiça social nos profetas. São
Paulo: Paulinas, 1990.
VITÓRIO, J. Nas sendas do direito e da justiça.
Educação para uma vida ética no profetismo bíblico. Estudos Bíblicos,
Petrópolis, v. 113, p. 23-36, 2012.
ZABATIERO, J. P. T. Uma história cultural de
Israel. São Paulo: Paulus, 2013.
Luiz
Alexandre Solano Rossi
Doutor em
Ciências da Religião pela Umesp, pós-doutor em História Antiga pela Unicamp e
em Teologia pelo Fuller Theological Seminary. É professor no mestrado e
doutorado em Teologia da PUC-PR e coordenador da graduação em Teologia da
PUC-PR. E-mail: luizalexandrerossi@yahoo.com.br.
__________________________________________
Vida Pastoral
Nenhum comentário:
Postar um comentário