«Oh! se conhecesses o mistério da cruz!, disse Santo
André ao tirano que queria induzi-lo a renegar a Jesus Cristo, por ter Jesus se
deixado crucificar como malfeitor. «Oh! se entendesses, tirano, o amor que
Jesus Cristo te mostrou querendo morrer na cruz para satisfazer por teus
pecados e obter-te uma felicidade eterna...».
Quanto agrada a Jesus Cristo que nós nos lembremos
continuamente de sua paixão e da morte ignominiosa que por nós sofreu, muito
bem se deduz de haver ele instituído o Santíssimo Sacramento do altar com o
fito de conservar sempre viva em nós a memória do amor que nos patenteou,
sacrificando-se na cruz por nossa salvação. Já sabemos que na noite anterior à
sua morte ele instituiu este sacramento de amor e depois de ter dado seu corpo
aos discípulos, disse-lhes – e na pessoa deles a nós todos – que ao receberem a
santa comunhão se recordassem do quanto ele por nós padeceu: “Todas as vezes
que comerdes deste pão e beber de deste cálice, anunciareis a morte do Senhor”
(1 Cor 11, 26). Por isso a santa Igreja, na missa, depois da consagração,
ordena ao celebrante que diga em nome de Jesus Cristo: “Todas as vezes que
fizerdes isto, fazei-o em memória de mim”. E São Tomás escreve: “Para que
permanecesse sempre viva entre nós a memória de tão grande benefício, deixou
seu corpo para ser tomado como alimento” (Op. 57). E continua o santo a dizer
que por meio de um tal sacramento se conserva a memória do amor imenso que
Jesus Cristo nos demonstrou na sua paixão.
Se alguém padecesse por seu amigo injúrias e
ferimentos e soubesse que o amigo, quando se falava sobre tal acontecimento nem
sequer nisso queria pensar e até costumava dizer: falemos de outra coisa – que
dor não sentiria vendo o desconhecimento de um tal ingrato? Ao contrário,
quanto se consolaria se soubesse que o amigo reconhece dever-lhe uma eterna
obrigação e que disso sempre se recorda e se lhe refere sempre com ternura e
lágrimas? Por isso é que todos os santos, sabendo a satisfação que causa a
Jesus Cristo quem se recorda continuamente de sua paixão, estão quase sempre
ocupados em meditar as dores e os desprezos que sofreu o amantíssimo Redentor
em toda a sua vida e particularmente na sua morte. Santo Agostinho escreve que
as almas não podem se ocupar com coisa mais salutar que meditar cotidianamente
na paixão do Senhor. Deus revelou a um santo anacoreta que não há exercício
mais próprio para inflamar os corações com o amor divino do que o meditar na
morte de Jesus Cristo. E a Santa Gertrudes foi revelado, segundo Blósio, que
todo aquele que contempla com devoção o crucifixo é tantas vezes olhado
amorosamente por Jesus quantas ele o contempla. Ajunta Blósio que o meditar ou
ler qualquer coisa sobre a paixão traz-nos maior bem que qualquer outro
exercício de piedade. Por isso escreve São Boaventura: “A paixão amável que
diviniza quem a medita” (Stim. div. amor, p. 1. c. 1). E falando das chagas do
crucifixo, diz que são chagas que ferem os mais duros corações e inflamam no
amor divino as almas mais geladas.
O SALVADOR
Adão peca e se rebela contra Deus e sendo ele o
primeiro homem, pai de todos os homens, perdeu-se com todo o gênero humano. A
injúria foi feita a Deus, motivo por que nem Adão nem os outros homens, com
todos os sacrifícios, mesmo oferecendo sua própria vida, poderiam dar uma digna
satisfação à Majestade divina; para aplacá-la plenamente era necessário que uma
pessoa divina satisfizesse a justiça divina. E eis que o Filho de Deus, movido
à compaixão pelos homens, arrastado pelos extremos de sua misericórdia, se
oferece a revestir-se da carne humana e a morrer pelos homens, para assim dar a
Deus uma completa satisfação por todos os seus pecados e obter-lhes a graça
divina que perderam.
Desce, pois, o amoroso Redentor a esta terra e
fazendo-se homem quer curar os danos que o pecado causara ao homem. Portanto,
quer não só com seus ensinamentos, mas também com os exemplos de sua santa
vida, induzir os homens a observar os preceitos divinos e por essa maneira
conseguir a vida eterna. Para esse fim Jesus Cristo renunciou a todas as
honras, às delícias e riquezas de que podia gozar neste mundo e que lhe eram
devidas como ao Senhor do mundo, e escolhe uma vida humilde, pobre e atribulada
até morrer de dor sobre uma cruz. Foi um grande erro dos judeus pensar que o
Messias devia vir à terra para triunfar de todos os seus inimigos com o poder
das armas e, depois de os ter debelado e adquirido o domínio do mundo inteiro,
deveria tornar opulentos e gloriosos os seus sequazes. Mas se o Messias fosse
qual os judeus o desejavam, príncipe soberano e honrado de todos os homens como
senhor de todo o mundo, não seria o Redentor prometido por Deus e predito pelos
profetas. É o que ele mesmo declara quando responde a Pilatos: “O meu reino não
é deste mundo” (Jo 18, 36). Por esse motivo repreende São Fulgêncio a Herodes
por ter tão grande temor de ser privado do seu reino pelo Salvador, quando ele
não viera para vencer o rei pela guerra, mas a conquistá-lo com sua morte
(Serm. 5 de Epiph.).
Dois foram os erros dos judeus a respeito do
Redentor esperado: o primeiro foi que, quando os profetas falavam dos bens
espirituais e eternos, eles o interpretavam dos bens terrenos e temporais. “E a
fé reinará nos teus tempos; a sabedoria e a ciência serão as riquezas da
salvação; o temor do Senhor esse é o teu tesouro” (Is 33, 6). Eis os bens
prometidos pelo Redentor, a fé, a ciência das virtudes, o santo temor, eis as
riquezas da prometida salvação. Além disso, promete que dará remédio aos
penitentes, perdão aos pecadores e liberdade aos cativos dos demônios:
“Enviou-me para evangelizar os mansos, para curar os contritos de coração e
pregar remissão aos cativos e soltura aos encarcerados” (Is 61, 1).
O outro erro dos judeus foi que pretenderam
entender da primeira vinda do Salvador o que fora predito pelos profetas da
segunda vinda, para julgar o mundo no fim dos séculos. Assim, escreve Davi do
futuro Messias que ele deverá vencer os príncipes da terra e abater a soberba
de muitos e com a força da espada subjugar toda a terra (Sl 109,6). E o profeta
Jeremias escreve: “A espada do Senhor devorará a terra de um extremo a outro”
(Lm 12, 12). Isso, porém, entende-se da segunda vinda, quando vier como juiz a
condenar os malvados. Falando, porém, da primeira vinda, na qual deveria
consumar a obra da redenção, mui claramente predisseram os profetas que o
Redentor levaria neste mundo uma vida pobre e desprezada. Eis o que escreve o
profeta Zacarias, falando da vida abjeta de Jesus Cristo: “Eis que o teu rei
virá a ti, justo e salvador; ele é pobre e vem montado sobre uma jumenta e
sobre o potrinho da jumenta” (Zc 9, 9).
Esta profecia realizou-se plenamente quando Jesus
entrou em Jerusalém, assentado sobre um jumento, sendo recebido com todas as
honras, como o Messias desejado, segundo o testemunho de São João (Jo 12,14).
Também sabemos que ele foi pobre desde o seu nascimento, tendo vindo a este
mundo em Belém, lugar desprezado, e numa manjedoura: “E tu, Belém Efrata, tu és
pequenina entre os milhares de Judá, mas de ti é que há de sair aquele que há
de reinar em Israel e cuja geração é desde o princípio, desde os dias da eternidade”
(Mq 5, 2). E essa profecia foi assinalada por São Mateus (2,6) e São João (7,
42). Além disso, escreve o profeta Oséias: “Do Egito chamarei o meu Filho” (11,
1), o que se realizou quando Jesus Cristo, como menino, foi levado para o
Egito, onde permaneceu sete anos como estranho no meio de gente bárbara, dos
parentes e dos amigos, devendo viver necessariamente mui pobremente. Continuou,
depois de voltar à Judéia, a levar uma vida pobre. Ele mesmo predisse pela boca
de Davi que pobre deveria ser durante toda a sua vida e atribulado pelas
fadigas: “Eu sou pobre e vivo em trabalhos desde a minha mocidade” (Sl 87,16).
A EXPIAÇÃO
Deus não podia ver plenamente satisfeita a sua
justiça com os sacrifícios oferecidos pelos homens, mesmo sacrificando-lhe suas
vidas e, por isso, dispôs que seu próprio Filho tomasse um corpo humano e fosse
a digna vítima que o reconciliasse com os homens e lhes obtivesse a salvação.
“Não quiseste hóstia nem oblação, mas tu me formaste um corpo” (Hb 10, 5). E o
Filho unigênito se ofereceu voluntariamente a sacrificar-se por nós e desceu à
terra para completar o sacrifício com sua morte e assim realizar a redenção do
homem: “Eis, aqui venho para fazer, ó Deus, a tua vontade, como está escrito de
mim no princípio do livro” (Hb 10, 7).
Pergunta o Senhor, referindo-se ao pecador: “Que
importará que eu vos fira de novo?” (Is 1, 5). Isso dizia Deus, para nos dar a
entender que, por mais que punisse os seus ofensores, suas penas não seriam
suficientes para reparar a sua honra ultrajada, e por isso enviou seu próprio
Filho a satisfazer pelos pecados dos homens, visto que ele podia dar uma digna
reparação à justiça divina. Depois declarou por Isaías, falando de Jesus feito
vítima para expiar nossas culpas: “Eu o feri por causa dos crimes de meu povo”
(53, 8), e não se contentou com uma pequena satisfação, mas quis vê-lo abatido
pelos tormentos: “E o Senhor quis quebrantá-lo na sua enfermidade” (Is 53, 10).
Ó meu Jesus, ó vítima de amor, consumida de dores na cruz para pagar os meus
pecados, desejaria morrer de dor, pensando quantas vezes vos tenho desprezado
depois de tanto me haverdes amado. Não permitais que eu continue a viver tão
ingrato a tão grande bondade. Atraí-me todo a vós: fazei-o pelos merecimentos
desse sangue que derramastes por mim!
Quando o Verbo divino se ofereceu para remir os
homens, de duas maneiras se podia fazer essa redenção: uma por meio do gozo e
da glória, outra das penas e dos vitupérios. Ele, porém, que com sua vinda não
só pretendia livrar o homem da morte eterna, mas também ganhar a si o amor de
todos os corações humanos, repeliu o caminho do gozo e da glória e escolheu o
das penas e dos vitupérios (Hb 10, 34). A fim, portanto, de satisfazer por nós
a justiça divina e juntamente para inflamar-nos com seu santo amor, quis qual
criminoso sobrecarregar-se de todas as nossas culpas e, morrendo sobre uma
cruz, obter-nos a graça e a vida feliz. É justamente o que exprime Isaías
quando afirma: “Verdadeiramente ele foi o que tomou sobre si as nossas
fraquezas e ele mesmo carregou com as nossas dores” (Is 53, 4).
Disso encontram-se duas figuras claras no Antigo
Testamento: a primeira era a cerimônia usada todos os anos do “bode expiatório”
sobre o qual o sumo pontífice entendia impor todos os pecados do povo e por
isso todos, cumulando-o de maldições, o enxotavam para a floresta para servir
aí de objeto à ira divina (Lv 16, 5). Esse bode figurava nosso Redentor, que
quis espontaneamente sobrecarregar-se com todas as maldições a nós devidas por
nossos pecados (Gl 3, 13), feito por nós maldição, para nos obter as bênçãos
divinas. E assim escreve o Apóstolo em outro lugar: “Aquele que desconhecia o
pecado, fê-lo por nós, para que nós fôssemos feitos justiça de Deus nele” (2
Cor 5, 21). Como explicam Santo Ambrósio e Santo Anselmo, aquele que era a
mesma inocência, fê-lo pecado; revestiu-se com as vestes do pecador e quis
tomar sobre si as penas devidas a nós pecadores, para nos obter o perdão e nos
tornar justos aos olhos de Deus.
A segunda figura do sacrifício que Jesus Cristo
ofereceu por nós a seu eterno Pai na cruz, foi a “serpente de bronze” suspensa
em um poste, que curava os hebreus mordidos pela serpente de fogo, quando para
ela olhavam (Nm 21, 8). Assim escreve São João: “Como Moisés suspendeu a
serpente no deserto, assim importa que seja levantado o Filho do homem, para
que todo o que crê nele não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 14).
À LUZ DAS PROFECIAS
É preciso refletir que no capítulo 2.º da
“Sabedoria” está predita a morte ignominiosa de Jesus Cristo. Ainda que as
palavras desse capítulo possam se referir à morte de qualquer homem justo,
contudo, afirma Tertuliano, São Cipriano, São Jerônimo e muitos outros santos
Padres, que de modo especial quadram à morte de Cristo: Aí se diz no versículo
18: “Se realmente é o verdadeiro filho de Deus, ele o amparará e o livrará das
mãos dos contrários”. Essas palavras correspondem perfeitamente ao que diziam
os judeus, quando Jesus estava na cruz: “Confiou em Deus: livre-o agora, se o
ama; pois disse que era filho de Deus” (Mt 27, 43). Continua o sábio a dizer:
“Façamos-lhe perguntas por meio de ultrajes e tormentos... e provemos a sua
paciência. Condenemo-lo a uma morte a mais infame” (Sb 2, 19-20). Os judeus
escolheram para Jesus Cristo a morte da cruz, que era a mais ignominiosa, para
que seu nome ficasse para sempre aviltado e não fosse mais relembrado, segundo
um outro testemunho de Jeremias: “Ponhamos madeira no seu pão e exterminemo-lo
da terra dos viventes e não haja mais memória de seu nome” (Jr 11, 19). Ora,
como podem dizer hoje em dia os judeus ser falso que Jesus fosse o Messias
prometido, por ter sido arrebatado deste mundo por uma morte torpíssima, quando
seus mesmos profetas haviam predito que ele deveria ter uma morte tão vil?
Jesus aceitou, porém, semelhante morte porque
morria para pagar os nossos pecados: também por esse motivo quis qual pecador
ser circuncidado, ser resgatado quando foi apresentado ao templo, receber o
batismo de penitência de São João. Na sua paixão, finalmente quis ser pregado
na cruz para pagar por nossos licenciosas liberdades, com a sua nudez reparar a
nossa avareza, com os opróbrios a nossa soberba, com a sujeição aos carnífices
a nossa ambição de dominar, com os espinhos os nossos maus pensamentos, com o
fel a nossa intemperança e com as dores do corpo os nossos prazeres sensuais.
Deveríamos por isso continuamente agradecer com lágrimas de ternura ao eterno Pai
por ter entregue seu Filho inocente à morte para livrar-nos da morte eterna. “O
qual não poupou seu próprio Filho, mas entregou-o por todos nós: como não nos
deu também com ele todas as coisas?” (Rom 8, 32). Assim fala São Paulo e o
próprio Jesus diz, segundo São João (3, 16): “Tanto Deus amou o mundo que lhe
deu seu Filho unigênito”. Daí exclamar a santa Igreja no sábado santo: “Ó
admirável dignação de vossa piedade para conosco! Ó inestimável excesso de
vossa caridade! Para resgatar o escravo, entregastes o vosso Filho”. Ó
misericórdia infinita, ó amor infinito de nosso Deus, ó santa fé! Quem isto crê
e confessa, como poderá viver ser arder em santo amor para com esse Deus tão
amante e tão amável?
Ó Deus eterno, não olheis para mim, carregado de
pecados, olhai para vosso Filho inocente, pregado numa cruz, e que vos oferece
tantas dores e suporta tantos ludíbrios para que tenhais piedade de mim. Ó Deus
amabilíssimo e meu verdadeiro amigo, por amor, pois, desse Filho que vos é tão
caro, tende piedade de mim. A piedade que desejo é que me concedais o vosso
santo amor. Ah, atraí-me inteiramente a vós do meio do lodo de minhas torpezas.
Consumi, ó fogo devorador, tudo o que vedes de impuro na minha alma e a impede
de ser toda vossa.
NOSSO FIADOR
Agradeçamos ao Pai e agradeçamos igualmente ao
Filho que quis tomar a nossa carne e juntamente os nossos pecados para dar a
Deus com sua paixão e morte uma digna satisfação. Diz o Apóstolo que Jesus
Cristo se fez nosso fiador, obrigando-se a pagar as nossas dívidas (Hb 7, 22).
Como mediador entre Deus e os homens, estabeleceu um pacto com Deus por meio do
qual se obrigou a satisfazer por nós a divina justiça e em compensação
prometeu-nos da parte de Deus a vida eterna. Já com muita antecedência o
Eclesiástico nos advertia que não nos esquecêssemos do benefício deste divino
fiador, que, para obter a salvação, quis sacrificar a sua vida (Eclo 29, 20). E
para mais nos assegurar do perdão, diz São Paulo, foi que Jesus Cristo apagou
com seu sangue o decreto de nossa condenação, que continha a sentença da morte
eterna contra nós, e a afixou à cruz, na qual, morrendo, satisfez por nós a
justiça divina (Col 2, 14). Ah, meu Jesus, por aquele amor que vos obrigou a
dar a vida e o sangue no Calvário por mim, fazei-me morrer a todos os afetos
deste mundo, fazei que eu me esqueça de tudo para não pensar senão em vos amar
e dar-vos gosto. Ó meu Deus, digno de infinito amor, vós me amastes sem reserva
e eu quero também amar-vos sem reserva. Eu vos amo, meu sumo Bem, eu vos amo,
meu amor, meu tudo.
Em suma, tudo o que nós podemos ter de bens, de
salvação, de esperança, tudo possuímos em Jesus Cristo e nos seus merecimentos,
como disse São Pedro: “E não há em outro nenhuma salvação, nem foi dado aos
homens um outro nome debaixo dos céus em que nós devemos ser salvos” (At 4,
12). Assim para nós não há esperança de salvação senão nos merecimentos de
Jesus Cristo. Donde São Tomás, com todos os teólogos, conclui que depois da
promulgação do Evangelho nós devemos crer explicitamente, por necessidade não
só de preceito, como também de meio, que somente por meio de nosso Redentor nos
é possível a salvação.
Todo o fundamento de nossa salvação está, portanto,
na redenção humana do Verbo divino, operado na terra. É preciso, pois, refletir
que ainda que as ações de Jesus Cristo feitas no mundo, sendo ações de uma
pessoa divina, eram de um valor infinito, de maneira que a mínima delas bastava
para satisfazer a justiça divina por todos os pecados dos homens, contudo só a
morte de Jesus foi o grande sacrifício com o qual se completou a nossa
redenção, motivo pelo qual as Sagradas Escrituras se atribui a redenção do homem
principalmente à morte por ele sofrida na cruz: “Humilhou-se a si mesmo, feito
obediente até à morte e morte de cruz” (Fl 2, 8). Razão por que escreve o
Apóstolo que, quando tomamos a sagrada eucaristia, nos devemos recordar da
morte do Senhor: “Todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste vinho,
anunciareis a morte do Senhor, até que ele venha” (1 Cor 11,26). Por que é que
diz da morte e não da encarnação, do nascimento, da ressurreição? Porque foi
esse tormento, o mais doloroso de Jesus Cristo, que completou a redenção.
Por isso dizia S. Paulo: “Não julgueis que eu sabia
alguma coisa entre vós, senão a Jesus Cristo e este crucificado” (1 Cor 2,2).
Muito bem sabia o apóstolo que Jesus Cristo nascera numa gruta, que habitara
por trinta anos uma oficina que ressuscitara e subira aos céus. Por que então
escreve que não sabia outra coisa senão Jesus crucificado? Porque a morte
sofrida por Jesus na cruz era o que mais o movia a amá-lo e o induzia a prestar
obediência a Deus, a exercer a caridade para com o próximo, a paciência nas
adversidades, virtudes praticadas e ensinadas particularmente por Jesus Cristo
na cátedra da cruz. São Tomás escreve: “Em qualquer tentação encontra-se na
cruz o auxílio; aí a obediência para com Deus, aí a caridade para com o
próximo, aí a paciência nas adversidades, donde assevera Agostinho: A cruz não
foi só o patíbulo do mártir, como também a cátedra do mestre”. (In c. 12 ad
Heb.).
À SOMBRA DA CRUZ
Almas devotas, procuremos ao menos imitar a esposa
dos Cânticos, que dizia: “Eu assentei-me à sombra daquele que tanto desejei”
(Cânt 2, 3). Oh! que doce repouso as almas que amam a Deus encontram nos
tumultos deste mundo e nas tentações do inferno e mesmo nos temores dos juízos
de Deus, contemplando a sós em silêncio o nosso amado Redentor agonizando na
cruz, gotejando seu sangue divino de todos os seus membros já feridos e
rasgados pelos açoites, pelos espinhos e pelos cravos. Oh! como a vista de
Jesus crucificado afugenta de nossas mentes todos os desejos de honras mundanas,
das riquezas da terra e dos prazeres dos sentidos! Daquela cruz emana uma
vibração celeste, que docemente nos desprende dos objetos terrenos e acende em
nós um santo desejo de sofrer e morrer por amor daquele que quis sofrer tanto e
morrer por amor de nós.
Ó Deus, se Jesus Cristo não fosse o que ele é,
Filho de Deus e verdadeiro Deus nosso criador e supremo senhor, mas um simples
homem, quem não sentiria compaixão vendo um jovem de nobre linhagem, inocente e
santo, morrer à força de tormentos sobre um madeiro infame, para pagar, não os
seus delitos, mas os de seus mesmos inimigos e assim libertá-los da morte em
perspectiva? E como é possível que não ganhe os afetos de todos os corações um
Deus que morre num mar de desprezos e de dores por amor de suas criaturas? Como
poderão essas criaturas amar outra coisa fora de Deus? Como pensar em outra
coisa que em ser gratos para com esse tão amante benfeitor? “Oh! se conhecesses
o mistério da cruz!”. disse Santo André ao tirano que queria induzi-lo a
renegar a Jesus Cristo, por ter Jesus se deixado crucificar como malfeitor. Oh!
se entendesses, tirano, o amor que Jesus Cristo te mostrou querendo morrer na
cruz para satisfazer por teus pecados e obter-te uma felicidade eterna,
certamente não te empenharias em persuadir-me a renegá-lo; pelo contrário, tu
mesmo abandonarias tudo o que possuis e esperas nesta terra para comprazeres e
contentares um Deus que tanto te amou. Assim já procederam tantos santos e
tantos mártires que abandonaram tudo por Jesus Cristo. Que vergonha para nós,
quantas tenras virgenzinhas renunciaram a casamentos principescos, riquezas
reais e todas as delícias terrenas e voluntariamente sacrificaram sua vida para
testemunhar qualquer gratidão pelo amor que lhes demonstrou este Deus
crucificado.
Como explicar então que a muitos cristãos a paixão
de Cristo faz tão pouca impressão? Isso provém do pouco que consideram nos
padecimentos sofridos por Jesus Cristo por nosso amor. Ah, meu Redentor, também
eu estive no número desses ingratos. Vós sacrificastes vossa vida sobre uma
cruz, para que não me perdesse, e eu tantas vezes quis perder-vos, ó bem
infinito, perdendo a vossa graça! Ora, o demônio, com a recordação de meus
pecados, pretenderia tornar-me dificílima a salvação, mas a vista de vós crucificado,
meu Jesus, me assegura que não me repelireis de vossa face se eu me arrepender
de vos haver ofendido e quiser vos amar. Oh! sim, eu me arrependo e quero
amar-vos com todo o meu coração. Detesto aqueles malditos prazeres que me
fizeram perder a vossa graça. Amo-vos, ó amabilidade infinita, e quero amar-vos
sempre e a recordação de meus pecados servirá para me inflamar ainda mais no
vosso amor, que viestes em busca de mim quando eu de vós fugia. Não, não quero
mais separar-me de vós, nem deixar mais de vos amar, ó meu Jesus. Maria,
refúgio dos pecadores, vós que tanto participastes das dores de vosso Filho na
sua morte, suplicai-lhe que me perdoe e me conceda a graça de o amar.
Santo Afonso Maria de Ligório
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Fonte: Reflexões
sobre a Paixão de Jesus Cristo expostas às almas devotas.
Tradução: Pe.
José Lopes Ferreira, C.Ss.R.
Disponível
em: Quadrante
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