"Prometeu
morrer por ele, quando não era capaz nem de morrer com
ele..."
(Santo Agostinho, Sermão 296, 1).
(Santo Agostinho, Sermão 296, 1).
No
Domingo de Ramos, e de novo na Sexta-feira Santa, nós ouvimos e participamos de
uma das cenas mais infames da história cristã. Faz-se a leitura do Evangelho
(dos Sinóticos no Domingo de Ramos e do Evangelho de São João, como de costume,
na Sexta-feira da Paixão) da noite em que Jesus Cristo foi traído por Seus
amigos, preso e condenado por autoridades tanto religiosas quanto seculares,
torturado e executado como um traidor e revolucionário. Os fiéis participam no
desenrolar da história, assumindo os papéis: dos soldados romanos que bateram
em Jesus; do povo judeu que O acusou ante Pilatos ("Achamos este homem
fazendo subversão entre o nosso povo", "Ele agita o povo"); e —
na parte mais condenatória do drama — da multidão ainda maior reunida no
pretório ("Fora com ele! Solta-nos Barrabás!", "Crucifica-o!
Crucifica-o!"). Essas são umas das mais difíceis palavras que temos que
pronunciar em toda a liturgia católica, "mea culpa, mea maxima culpa"
incluídas.
Em uma
espécie de história paralela à principal, somos levados a uma narrativa secreta
envolvendo Pedro. Enquanto o processo formal de Jesus acontece, Pedro é
submetido a um processo informal. Não estou certo do que os estudiosos têm a
dizer sobre isso, mas parece-me que essa história só podia vir à tona por uma
acusação do próprio apóstolo, uma confissão que Pedro provavelmente fez aos
seus irmãos e que foi obrigado a reviver mais e mais vezes pelo resto de sua
vida. Pedro — a pedra! — tinha se quebrado de medo no momento de sua prova.
Mas Pedro
estava com medo de quê? Obviamente, diríamos nós, ele estava com medo dos
romanos, dos seus soldados, das suas espadas, das suas lanças e das suas
cruzes. Estava com medo de que defender o seu amigo lhe custasse a vida. Estava
com medo de que os judeus, por meio dos romanos, lhe tirassem a vida, assim
como tinham conspirado para tirar a vida de seu mestre.
Mas não
era este o mesmo homem que, apenas algumas horas antes, quando Jesus fora
confrontado por Judas e por um bando de soldados, "puxou uma espada
e feriu o servo do sumo sacerdote, cortando-lhe a ponta da orelha direita"
(Jo 18, 10)? Nós geralmente pensamos que esse grupo consistia apenas de
alguns homens, mas alguns comentaristas especulam que esse bando de soldados,
na verdade, era um batalhão de 200 sob o seu comandante (cf. Jo 18, 12),
ou talvez uma legião tão grande quanto 600. O ataque de Pedro ao servo do sumo
sacerdote teria exigido dele alguma presença de espírito, para dizer o mínimo.
Não acredito que muitos dos que puxaram espadas contra uma legião romana tenham
sobrevivido para contar a história.
Se ele
não estava com medo de entregar a sua vida, então, do que estava com medo? Por
que não correu em defesa de Jesus no pátio, assim como havia feito no horto? No
segundo livro de sua trilogia biográfica Jesus de Nazaré, o Papa Bento
XVI provê o seguinte comentário:
"A
sua vontade de passar às vias de fato, o seu heroísmo, acaba na renegação. Para
assegurar-se um lugar perto da fogueira no átrio do palácio do Sumo Sacerdote e
possivelmente informar-se sobre os últimos desenvolvimentos do caso de Jesus,
Pedro assevera que não o conhece. O seu heroísmo descambou numa mesquinha forma
de tática. Deve aprender a esperar a sua hora; tem de aprender a expectativa, a
perseverança." [1]
Na
perspectiva de Ratzinger, o pecado de Pedro não foi uma falta de coragem, mas
um desejo de heroísmo. Ele não temia uma morte violenta per se, mas o
tipo de fatalidade que estava, com cada vez mais claridade, para se abater
sobre Jesus; uma fatalidade que incluiria não apenas a morte violenta, mas que
seria precedida pelo escárnio público e por uma espera prolongada nas
mãos de seus apreensores. Não lhe faltou a coragem para tomar iniciativa
própria, mas para entregar-se ao auto-abandono e permitir que Deus agisse em
seu lugar. Ele queria ser bem sucedido de modo ativo, não passivamente. Ele
sabia que tinha a coragem para um momento bem determinado e escolhido de
bravata, mas faltavam-lhe a confiança e a perseverança requeridas para lançar a
sua sorte, houvesse o que houvesse, no momento que se lhe apresentava.
Um modo
óbvio de identificar-se com Pedro e aprender de seu fracasso é refletir sobre a
nossa própria tendência de negar a nossa identidade cristã quando somos
confrontados com alguma oposição. Talvez no trabalho. Talvez entre os nossos
amigos. Talvez quando menos esperamos ser apontados como um deles, ou
onde mais somos tentados a negá-lo. Mas outra forma, talvez mais adequada, de
nos identificarmos com essa história, é vê-la como uma cartografia bíblica dos
desafios concretos que existem em uma vida simultaneamente física e espiritual.
Como
Pedro, nós somos confrontados todos os dias com a tarefa de fazer provisões e
tomar decisões prudentes para esta vida e a próxima — não simplesmente para uma
ou para outra. Esse tem sido desde sempre um esforço das pessoas sensatas. A
era moderna tem apresentado um novo desafio à humanidade nesse sentido, graças
a um quadro filosófico único na história humana — um "quadro
imanente", que James K. A. Smith descreve como "um espaço social construído
que situa as nossas vidas inteiramente dentro de uma ordem natural",
"o espaço circunscrito do moderno imaginário social que torna impossível a
transcendência" [2].
Suspeito
que nessa "era secular", mais do que nunca, muitos de nós lutamos com
a tendência de Pedro: se queremos que algo seja feito, confiamos em nós mesmos
para fazer as coisas naturalmente, ao invés de permitir que Deus faça algo
sobrenatural que exceda as nossas capacidades. Nós, assim como Pedro, nos
entusiasmamos com a ideia de um Messias, mas não com a de um Servo Sofredor.
O problema inicial de Pedro nunca foi ter se omitido em um momento de desafio —
ao contrário, parecia ser justamente nesses momentos que ele tomava a frente e
chamava a responsabilidade para si, mesmo sem entender completamente o que lhe
era pedido. Mesmo quando Jesus fê-lo vislumbrar a Sua divindade, ele quis
entesourá-la, fazer uma tenda para ela (cf. Lc 9, 28-36), ainda sem
entender que a glória do Senhor só seria totalmente revelada no tempo devido —
isto é, na Ressurreição. Até lá, porém, ele estava preso ao "quadro
imanente".
O
capítulo 21 do Evangelho de São João pinta uma figura diferente de Pedro, que
foi atualizada à luz da Ressurreição. Pedro tem a chance de afirmar três vezes
o que antes ele tinha negado três vezes, e de reconciliar-se com o Senhor,
apesar de suas fraquezas e imperfeições. É com esse pano de fundo que Jesus lhe
dá uma lição final de obediência, que mudaria definitivamente a sua
perspectiva: "Quando eras jovem, tu mesmo amarravas teu cinto e andavas
por onde querias; quando, porém, fores velho, estenderás as mãos, e outro te
amarrará pela cintura e te levará para onde não queres ir" (Jo 21,
18). Com isso, a perspectiva de Pedro foi alargada: não eram mais as suas
concepções, os seus planos, as suas ações ou a sua habilidade de sucesso
mundano. Ele aprendia que o seu papel na Igreja — e na sua própria salvação —
deveria ser sobrenatural.
O conto
apócrifo do Quo vadis toca na mesma questão. A razão natural por que
Pedro fugiu de Roma não era o medo de perder a própria vida, mas o temor de que
a Igreja se perdesse sem ele. Só um encontro com o Senhor Ressuscitado poderia
lembrá-lo que a confiança era necessária, mais do que as conquistas temporais.
Depois disso, então, ele seguiria os passos do próprio Cristo e participaria na
paradoxal vitória da Cruz, a qual só faz sentido para aqueles que crêem nela.
Teremos nós a coragem de fazer o mesmo?
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Referências:
1. BENTO XVI, Papa. Jesus de
Nazaré: da entrada em Jerusalém até a resurreição (trad. de Bruno Bastos
Lins). São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011, p. 74.
2. SMITH, James K. A. How
(Not) to Be Secular: Reading Charles Taylor. Eedermans,
2014, p. 141.
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Crisis Magazine | Tradução
e adaptação: Equipe Christo Nihil Præponere
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