A Páscoa cristã é a prodigiosa passagem do Senhor
Jesus Cristo, cabeça da humanidade, que nos libertou da tirania de Satanás e
nos introduziu na nossa verdadeira Pátria.
CELEBREMOS
A Páscoa, a festa das festas; a solenidade das
solenidades, não se celebra dignamente senão na alegria. A Igreja quer ouvir as
nossas aclamações: Rejubilemo-nos, repete-nos ela à saciedade, e entreguemo-nos
à alegria! Os nossos irmãos orientais saúdam-se neste dia com as próprias
palavras da liturgia: Cristo ressuscitou! - Ressuscitou verdadeiramente.
Reconheçamos que, nos nossos países ocidentais, não
manifestamos da mesma forma a nossa felicidade. Ao passo que no Natal os fiéis
que entram na igreja ou dela saem trocam espontaneamente sorrisos e votos de
felicidade, na manhã da Ressurreição não nos dão a impressão de respirar uma
atmosfera de vitória. O seu porte é grave. Parecem preocupados sobretudo com
observar o dever da comunhão pascal. Será então necessário tomar um ar triste
para cumprir o mais amável dos deveres, para unir-se pelo banquete eucarístico
ao triunfo de Jesus Cristo?
Não, católico, meu irmão, não digas: Acabo de fazer
a minha Páscoa. Como parece mesquinho, neste dia, esse possessivo ridículo! É a
nossa comunidade paroquial, célula da Igreja universal, que vai celebrar a
vitória da Páscoa. Numa das leituras da missa, o sacerdote repetirá as palavras
de São Paulo: Celebremos, pois, a festa... (1 Cor 5, 8). O sentido do verbo
latino epulemur, que a Neovulgata, a versão latina oficial da Igreja, usa nesta
passagem, não oferece a menor dúvida, pois o reencontramos nos lábios do pai da
parábola do filho pródigo: Comamos e celebremos, porque este meu filho morrera
e tornou à vida (Lc 15, 23-24). Celebremos. Deixemos de lado esses rostos
sérios. Tomemos um ar de festa para cantar a glória de Cristo ressuscitado, que
nos alimenta com a sua carne divina para ressuscitar-nos com Ele.
Ouçamos em que termos um sacerdote romano do século
III, Santo Hipólito, saudava esse mistério da nossa fé: ó Crucificado, condutor
da dança divina! Ó festa do Espírito! Páscoa divina que desces dos céus à terra
e da terra tornais a subir aos céus! Solenidade nova! Assembléia de toda a
Criação! Ó alegria universal, honra, festim, delícias pelas quais a morte
tenebrosa foi aniquilada, a vida derramada sobre toda a criatura e abertas as
portas do céu!
PÁSCOA,
PASSAGEM
O Prefácio pascal resumiu os motivos da nossa
alegria em algumas frases de um cunho maravilhoso e de uma inspiração
plenamente bíblica. Com o coração voltado para o céu, damos graças ao Senhor
nosso Deus com um fervor sem igual neste dia em que Cristo, nossa Páscoa, foi
imolado.
() Oração que antecede - prefacia- a Oração
Eucarística da Missa (N. do T.).
A palavra Pdscoa significa passagem, a passagem de
Deus entre nós e a nossa passagem para Deus. A Ressurreição de Cristo é o ponto
culminante dos desígnios redentores que Deus alimentava desde longa data. Uma
das primeiras etapas da salvação da humanidade tinha sido a libertação do povo
de Israel escravizado aos egípcios. Todos os anos, o Povo Eleito comemorava
essa passagem do Senhor´ que, para tornar possível a evasão dos cativos, tinha
ferido os primogénitos das famílias egípcias e protegido as casas dos
israelitas cujas portas estavam marcadas com o sangue de um cordeiro. Em vão os
exércitos do Faraó tinham tentado apanhar os fugitivos: foram engolidos pelas
águas do Mar Vermelho, que se tinham aberto para abrir passagem aos filhos de
Israel que Moisés ia conduzir para a Terra Prometida.
A nossa Páscoa é a passagem ainda mais prodigiosa
do Senhor Jesus Cristo, cabeça da humanidade, que, ao deixar a terra e ir para
o céu, nos libertou da tirania de Satanás e nos introduziu na nossa verdadeira
Pátria. A nossa Páscoa é a antiga noite batismal no decurso da qual os
pecadores, mergulhados na água em que deveriam ter encontrado a morte, saíam da
piscina na mesma hora em que Cristo saíra do túmulo. A nossa Páscoa é o sangue
de Cristo imolado que nos valeu a salvação. O cordeiro pascal que os israelitas
compartilhavam num repasto sagrado em ação de graças pela sua libertação
passada não era senão a figura do verdadeiro Cordeiro, cujo sangue nos redimiu
e que tomamos como alimento na Eucaristia, sacramento da nossa redenção.
Seremos capazes de conter a nossa alegria? Éramos
uns infelizes cativos, submetidos a Satanás, e Cristo abriu-nos as portas da
nossa prisão. Fez-nos passar do campo de concentração para o país da liberdade.
Éramos náufragos destinados aos abismos infernais e, quando nós nos debatíamos
nas águas do dilúvio em esforços inúteis, o braço de um Barqueiro intrépido nos
agarrou e nos arrancou ao sorvedouro. O nosso Libertador, o nosso Barqueiro, é
Cristo que se imolou por nós.
O termo glorioso do seu sacrifício fez-nos passar
do pecado para o amor, da sombra para a luz, da morte para a vida, da vida
natural sempre tributária da morte para a vida sobrenatural que não conhece
declínio.
O VERDADEIRO
CORDEIRO
Ele é, continua o Prefácio, citando agora o oráculo
de João Batista (cfr. Jo 1, 29), o verdadeiro Cordeiro que tirou os pecados do
mundo. Seremos capazes de ouvir sem estremecer esta sentença de perdão? Não
haveremos de proclamar bem alto o nosso agradecimento? Vivíamos num mundo
pecador, onde todo o homem que vinha à existência era incapaz de repelir essa
herança de pecado. E num dia, num só dia, o Cordeiro pascal fez desaparecer todos
os pecados do mundo.
Cristo, inocente, reconciliou os pecadores com o
seu Pai (seqüência pascal). Deus já não percebeu mais nenhúm pecado sobre a
terra. A malícia irremediável de todos os pecados do mundo foi ultrapassada
pelo excesso de amor do nosso Salvador, que arrastou na sua esteira a
generosidade dos pecadores convertidos. Onde abundou o pecado, sobreabundou a
graça (Rom 5, 20). A partir desse momento, Deus contempla a raça humana na
pessoa da sua Cabeça, o seu Filho infinitamente amante e obediente.
-
() Oração em
forma de poesia que se recita ou canta, em algumas festas especialmente
solenes, antes da leitura do Evangelho (N. do T.).
-
Mas estaremos realmente libertos da escravidão do
pecado? A argumentação de São Paulo é taxativa. A morte, ensina o Apóstolo, é a
conseqüência, o salário do pecado: Por um homem entrou o pecado no mundo, e
pelo pecado a morte (Rom 5, 12). Ora, na manhã da Páscoa, a morte foi
destruída: se o castigo foi anulado, é porque a falta foi apagada.
O Prefácio pascal torna a pedir emprestada a
linguagem paulina para detalhar a vitória pascal de Jesus Cristo: morrendo,
destruiu a nossa morte, e ressuscitando, restituiu-nos a vida. Em conseqüência
da revolta de Adão, tínhamos sido despojados da intimidade eterna a que Deus
nos tinha destinado graciosamente. Estávamos reduzidos a ruminar em perpétua
amargura a lembrança da nossa queda e o pesar pelo paraíso perdido para sempre.
A morte, que destrói os nossos corpos como o faz com a erva dos campos, era nas
mãos de Satanás a arma pela qual ele nos privava infalivelmente dos privilégios
inauditos com que Deus nos tinha favorecido. Já não havia céu para o homem, já
não havia vida com Deus.
Mas o Filho de Deus, tornando-se um de nós, venceu
a morte invencível, e fê-lo morrendo como um de nós. É verdade que poderia ter
voltado para a sua glória esquivando-se à morte, tal como aconteceu com Elias:
nesse caso, Ele teria escapado à morte, mas esta teria conservado o seu império
sobre o restante dos homens. Para destruí-Ia, um homem devia enfrentá-la,
desfazer o seu abraço, arrancar-lhe o seu aguilhão.
A seqüência da missa da Páscoa faz-nos assistir ao
admirável duelo entre a Morte e a Vida na arena do sepulcro de José de
Arimatéia. O nosso campeão, Cristo, tendo-se imolado sobre a Cruz, foi provocar
a Morte no obscuro domínio em que ela encerrava as suas vítimas. O céu e o
inferno marcam os pontos dessa luta gigantesca, que não durou menos de trinta e
seis horas. Mas na manhã do terceiro dia, o Autor da vida, tendo rompido as
cadeias que o prendiam, derribou a Morte e pô-la fora de combate. A morte
corporal, castigo da falta de Adão, estava abolida.
Cristo, morrendo, destruiu a nossa morte´,
desarticulou-a, dividiu-a em duas. A primeira morte permanece ainda como
castigo do pecado, mas já não é senão uma passagem inofensiva que desemboca na
eterna morada de Deus. A segunda morte, a do condenado, já não tem direitos
sobre aqueles que participam da Ressurreição do Senhor. Onde está, ó morte, a
tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão? (1 Cor 15, 55).
Ressuscitando, restituiu-nos a vida. Fez-nos
recuperar o estado sobrenatural em que Deus tinha criado o homem. Tornamo-nos
novamente filhos adotivos de Deus. A partir de agora, participamos da vida
divina do nosso Irmão ressuscitado. Se cremos nEle, se aderimos a Ele sob o
signo do batismo, se nos incorporamos a Ele sob o signo da Eucaristia, se,
assentindo à sua palavra, nós a pomos em prática, não formamos com Ele senão um
só corpo, a Igreja dos ressuscitados.
Como compreendemos bem que a liturgia multiplique
os aleluia para aclamar a vitória de Jesus Cristo e agradecer-lhe por nos ter
associado a ela. Graças ao seu triunfo, somos pecadores perdoados, mortais
destinados a ressuscitar.
ESFORÇO DE
CONVERSÃO
Essa alegria pascal, não a exprimiremos apenas nos
nossos cânticos, mas havemos de manifestá-la por um esforço generoso e leal de
conversão.
Com efeito, aquilo que Jesus realizou em nome da
humanidade, da qual Ele é a cabeça, ainda não se realizou efetivamente para
cada um de nós. É verdade que São Paulo emprega os verbos no passado quando
declara: Deus deu-nos a vida com Cristo lt;...gt;, e corressuscitou-nos, e
sentou-nos nos céus em Cristo Jesus (Ef 2, 5-7). Da parte de Deus, é coisa
feita; no entanto, falta ainda que cooperemos com essas graças insignes. A
redenção do nosso corpo - como o Apóstolo faz questão de precisar - ainda
pertence ao futuro: em esperança estamos salvos (Rom 8, 23-24). Sim, Cristo
redimiu-nos do pecado pela sua morte, mas com a condição de que já não deixemos
o pecado reinar no nosso corpo mortal, cedendo às suas concupiscências.
Ofereçamo-nos a Deus, insiste ele, como mortos que voltaram à vida; ponhamos o
nosso corpo ao serviço de Deus, fazendo dele o instrumento de obras santas
(cfr. Rom 6, 1-14).
Não há nisso nenhuma contradição. Ao pedir-nos
docilidade e um esforço pessoal, Deus não retoma com uma mão o que nos deu com
a outra. Jesus continua conosco para secundar a nossa boa vontade e terminar a
sua obra em nós. O banquete pascal espera-nos sobre o altar. Aproximemo-nos
alegremente para comungar o corpo imolado de Cristo, que venceu por nós o
pecado e a morte. Ele nos pede apenas um ato de honestidade: São Paulo alude na
segunda leitura da missa de Páscoa (1 Cor 5, 6-8) ao costume dos israelitas
que, na véspera da celebração pascal, lançavam ao fogo o velho fermento a fim
de não o misturar com os pães ázimos do repasto ritual. Pede-nos assim que tomemos
a precaução de nos desembaraçarmos do nosso velho fermento de maldade e
perversão.
E nós o fizemos. Esse fundo lamentável de pecado,
depusemo-lo na Sexta-feira Santa aos pés da Cruz sobre a qual morria o nosso
Salvador. Mas não podíamos ser libertados de uma vez por todas e já não estar
sujeitos ao desejo do mal. Não nos entristeçamos por termos de continuar a
recomeçar continuamente esse trabalho de purificação. Devemos crer que
testemunhamos ao Senhor um amor muito maior se renovamos cada dia o nosso
desejo de evitar as negligências e as imprudências que conduzem ao pecado.
Alegremo-nos porque temos de reconverter-nos a Deus diariamente, porque temos
de voltar a afirmar-lhe e provar-lhe a nossa fidelidade. Não tremamos ao pensar
nos perigos de amanhã. O nosso Cordeiro pascal irá trazer-nos o remédio capaz
não apenas de pensar as chagas de ontem, mas de obter-nos uma cura eterna.
A nossa alegria pascal deve manifestar-se também na
caridade fraterna. Jesus espera de nós essa resposta direta ao testemunho de
amor que nos dá na manhã da Ressurreição. Mostrar-lhe-emos o nosso
reconhecimento e a nossa fé, e ao mesmo tempo conservaremos, com mais segurança
a nossa pureza, se nos amarmos como irmãos, como seus irmãos. A santa Páscoa
revelou-se-nos hoje - lemos num hinário da liturgia bizantina -, Páscoa a pura,
Páscoa a grande, a Páscoa dos crentes, Páscoa que nos abre as portas do
paraíso. Páscoa! Abracemo-nos todos com alegria, ó Páscoa! É a libertação das
dores!
A nossa liturgia latina, menos exuberante, não se
preocupa menos de ver uma terna caridade reinar entre os cristãos que devem
reencontrar-se todos na mesma casa do Pai, como partilharam nesta manhã do
mesmo repasto pascal. Dignai-vos, Senhor - diz uma antiga oração litúrgica -,
infundir em nós o espírito do vosso amor. Fizestes de nós um só corpo; dai-nos
a todos um só coração, para que, na alegria unanimemente experimentada da vossa
Ressurreição, devamos ainda à vossa bondade a graça de amar-nos agora uns aos
outros como nos amaremos eternamente.
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Fonte: A
Vitória da Páscoa. Editora Quadrante. São Paulo, 2002. Págs 5-12.
Tradução:
Quadrante
Disponível
em: Quadrante
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