O Tríduo
Sacro, que começa com a Missa vespertina na Ceia do Senhor e vai até o Sábado
Santo, é o tempo do amor que nos convida a um serviço que vai até ao extremo da
cruz. Na quinta-feira santa Jesus antecipa o dom da sua vida no Sacramento da
Eucaristia; na sexta-feira santa, o Senhor realiza na cruz o sacrifício
redentor pela humanidade; no sábado santo, entramos nas entranhas da salvação
que se está realizando. De repente, em meio ao silêncio mais profundo, quando
tudo parecia perdido, Cristo aparece ressuscitado e glorioso.
A
Eucaristia é o sacramento que sintetiza e resume todos os mistérios da vida de
Jesus Cristo, máxime o seu Mistério Pascal (Paixão, Morte e Glorificação). Este
sacramento permanece para que nós possamos entrar em contato com quem realmente
nos salvou com seu poder e com suas obras poderosas: Jesus.
Postos
a contemplar o Cristo que se oferece para a nossa redenção e ressuscita para a
nossa salvação, a nossa vida só pode expressar-se autenticamente como serviço a
Deus e, por amor a Deus, a todas as pessoas, especialmente aos irmãos na fé.
Às
vezes preocupa-me o fato de que hoje em dia estamos muito tolerantes com as
pessoas de outras religiões e não conseguimos compreender com carinho aqueles
que são nossos irmãos na fé católica. Poderia dar-se o caso de fazer compatível
a muita tolerância para com os outros que ainda não são da nossa família e as
críticas brutais contra aqueles partilham o mesmo sangue que nós, o sangue de
Jesus, que nos reconciliou com o bom Deus. Isso seria ridículo!
A instrução de Jesus “fazei isto em memória de mim” não significa ter uma recordação intelectual de sua pessoa; trata-se de uma ordem para que a comunidade de fiéis (a Igreja) celebre a entrega de Jesus ratificada na cruz e plenificada na ressurreição. E, como a páscoa de Jesus foi realizada como plenificação da Páscoa judaica, a “memória” que se celebra é o conjunto dos atos salvíficos de Deus, quando a morte foi transformada em vida. A celebração da eucaristia é atualização, no aqui e agora, dos eventos salvíficos realizados ao longo da história que culminaram no mistério de Cristo.
COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
Evangelho: Jo 13,1-15
A cena do lava-pés situa-se na segunda parte do
Evangelho de João (13-20), na qual se relata a exaltação de Jesus, sua elevação
ao Pai. Nesse bloco, Jesus se dirige aos discípulos (cap. 13-17) num longo
discurso de despedida.
O v. 1 abre a cena da ceia, introduzindo o leitor
no contexto em que serão desenvolvidos os discursos de Jesus aos seus. A ceia é
realizada antes da festa da Páscoa, ou seja, antes de Jesus passar deste mundo
ao Pai. A ceia é dominada pela temática que perpassa por todo o evangelho: amor
e fidelidade. Jesus amou os seus e seu amor permanece até o fim. Esse amor será
transbordado na entrega definitiva de Jesus na cruz. Na cena do lava-pés, Jesus
antecipa, de modo prefigurativo, essa entrega e as suas consequências.
Nos vv. 2-5, Jesus põe-se a lavar os pés dos seus
discípulos. O gesto realizado durante a ceia é muito significativo. Sabemos que
cear com alguém significa partilhar de sua vida e ideais. Jesus partilhava com
os seus a mesma vida e missão que recebeu do Pai. Sabendo que tudo recebera do
Pai, o amor em sua plenitude, e ciente de que sua hora havia chegado, pois
estava para voltar ao Pai, Jesus vai mostrar, no gesto do lava-pés, o que significa
esse amor pleno recebido do Pai e oferecido aos seus.
As normas de conduta relativas à hospedagem
determinavam que lavar os pés era uma atividade realizada pelo anfitrião ou
pelo seu primogênito (cf. Gn 18,4; Lc 7,44), e não por um escravo, como geralmente
se pensa. No Antigo Testamento, o dono da casa lavava os pés do hóspede como
gesto de acolhida. E, assim como Abraão acolheu Deus na figura dos três homens
que o visitaram (cf. Gn 18,4), no gesto de lavar os pés, Jesus, o primogênito
de Deus, acolhe na casa paterna toda a humanidade. É um sinal profundo em que
se revela o rosto do Pai, que ama e acolhe, dando-se de forma definitiva no
Filho. Esse gesto fundamenta a vocação da Igreja no mundo.
O questionamento de Pedro (vv. 6-11) diante daquele
gesto denota a falta de disposição do apóstolo para, em nome de Jesus, acolher
na Igreja, da qual é chefe, todo ser humano indistintamente. Inicialmente Pedro
não compreendeu isso; só depois da ressurreição de Jesus é que o apóstolo
entendeu que Jesus queria a acolhida dos gentios na comunidade (At 10,34). Mas
não permitir a Jesus lavar-lhe os pés significa não tomar parte com ele, não
ter parte na herança, ou seja, não participar da comunhão com Deus realizada em
Jesus Cristo, em sua vida e morte aqui antecipada nesse gesto profético.
Os vv. 12-15 explicam a atitude de Jesus, oferecem
o seu significado. Aqueles que têm parte com Jesus, que partilham de sua vida e
missão, não poderão se ausentar do serviço ao outro. Serviço que se traduz no
acolhimento do outro, na entrega de si, numa vida de doação e serviço amoroso.
Somente ama aquele que entrega a própria vida. E entregar-se vai muito além de
simples serviço, mas é dom daquilo que se é e do amor que se tem, dom de si
para o outro.
I leitura: Ex 12,1-8.11-14
A Páscoa e o êxodo, momentos fundadores de Israel
como povo, são inseparáveis. Nesse texto proclamado hoje na liturgia,
explicita-se o propósito da primeira Páscoa: a esperança de salvação dos
primogênitos e a expectativa de libertação da escravidão. A salvação dos
primogênitos significa que a vida das futuras gerações do povo estará
assegurada, contrariando os desejos do faraó (Ex 1,16). Naquela época, era o
primogênito quem levava adiante o nome do clã ou da tribo. Sem primogênitos não
há futuro para o povo. Somada à salvação dos primogênitos estava a libertação
da escravidão, garantia de vida livre e digna para as futuras gerações.
Para representar essa dupla ação de Deus, cada
família deveria escolher um cordeiro ou cabrito sem defeito, simbolizando a
integridade da oferta ao Deus uno e perfeito. Em contraste com outras festas de
Israel, a Páscoa era uma festa familiar, pois da família dependia a existência
de gerações futuras e livres.
O sangue simbolizava a vida (cf. Gn 9,4; Lv 17,11),
e a última praga, que será narrada após o relato da celebração da primeira
Páscoa, consistirá na morte, que ameaçava hebreus e egípcios. Por meio do
sangue do cordeiro, símbolo da vida dos ofertantes, marcando a entrada das
casas, Deus proibiu a ação da morte contra os hebreus (Ex 12,22-23).
O restante do cordeiro era assado e consumido pela
família. A carne do animal não era cozida porque isso tomaria muito tempo e
esse alimento deveria ser preparado o mais rapidamente possível. A família
teria de comê-lo apressadamente, para sair sem perda de tempo. Todos deveriam
assimilar a urgência da libertação a ser realizada por Deus. Sandálias nos pés,
cajado nas mãos e rins cingidos (v. 11) são aspectos de quem tem pressa para
sair em longa viagem. Cingir os rins significa que a túnica estava levantada,
com a orla presa no cinto, deixando as pernas livres para correr, trabalhar,
lutar numa batalha ou fazer grande viagem.
Todos esses simbolismos da celebração da Páscoa dos
hebreus visam mostrar que Deus saiu vitorioso contra todos os deuses do Egito
(Ex 12,12) e sobre os maiores inimigos da humanidade representados por esses
deuses: a morte e a escravidão.
II leitura: 1Cor 11,23-26
O texto de Paulo quer enfatizar a recepção de uma
tradição viva que teve origem no próprio Cristo. Para o pensamento bíblico do
primeiro século da era cristã, os verbos “receber” e “transmitir” refletiam a
transmissão de tradições sagradas que procediam de fontes fidedignas. Assim,
falando da última ceia de Jesus, Paulo quer deixar os cristãos de sua época
cientes de que ele recebeu de fontes seguras as informações sobre esse evento
tão importante para a vida cristã.
O texto ressalta que Jesus “deu graças”: essa
expressão, no idioma em que foi escrita, é eukaristein, de onde deriva o termo
eucaristia.
A afirmação de que partiu o pão indica a
participação de todos os comensais em um mesmo pão partilhado, significando a
comunhão entre Cristo e a Igreja. “Isto é meu corpo”, no idioma nativo de
Jesus, significa “isto sou eu mesmo”. Quer dizer que o pão fracionado e
entregue aos comensais representa a totalidade da vida de Jesus, integralmente
oferecida a Deus e à humanidade. Essa oferta de Jesus é que alimenta a Igreja e
dá vida a ela enquanto caminha rumo ao reino definitivo.
PARA REFLETIR
“Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que
tinha chegado a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus
que estavam no mundo, amou-os até o fim”.
Esta é a tarde que faz memória da Ceia Pascal de Jesus.
Aquilo que o Senhor realizou durante toda a vida e consumou na cruz – isto é,
sua entrega de amor total ao Pai, por nós -, ele quis nos deixar nos gestos,
nas palavras e nos símbolos da Ceia que celebrou com os seus. Naquela Mesa
santa do Cenáculo, estava já presente, em símbolos e gestos, a entrega amorosa
do Calvário. É isto que celebramos neste momento sagrado, momento de saudade,
de aconchego e de despedida. Era em família que os judeus celebravam o Banquete
pascal… Jesus celebrou com seus discípulos, conosco, sua família: “Tendo amado os seus que estavam no mundo,
amou-os até o fim,” até o extremo de entregar a vida, pois “não há maior prova
de amor que entregar a vida pelos amigos” (Jo 15,13).
Hoje, neste final de tarde e início de noite, ele se fez
nosso servo, ele lavou nossos pés, porque “não veio para ser servido, mas para servir e
dar a vida em resgate por muitos” (Mc 10,45). Lavando os nossos pés, ele revelou de modo admirável seu
desejo de nos servir dando a vida por nossa salvação.
Hoje, ele nos deu o novo mandamento: “Se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés,
também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que
façais a mesma coisa que eu fiz”. Assim fazendo, assim falando, o Senhor nos ordena, por amor
a ele, a que nos sirvamos mutuamente, nos amemos mutuamente, nos aceitemos e
perdoemos mutuamente, até dar a vida uns pelos outros. Eis nosso testamento,
nossa riqueza e também nossa vergonha, porque tantas e tantíssimas vezes
descumprimos o desejo do Senhor! Que contemplando o gesto do Senhor, hoje nos
demos o perdão. Eu vos peço em nome de Cristo: reconciliai-vos em família, por
amor de Cristo; reconciliai-vos na paróquia, nos grupos e movimentos de Igreja,
por amor daquele que nos amou assim e nos deu o exemplo! Por Aquele que se deu
a nós nesta tarde bendita, perdoemo-nos, acolhamo-nos, amemo-nos! É o único
modo, caríssimos, de celebrarmos a Santa Páscoa no domingo próximo e de
participarmos hoje desta Ceia bendita!
O Senhor – para que tenhamos a força de amar como ele, de
confiar amorosamente no Pai como ele, de amar os irmãos como ele -, hoje, ele
instituiu o Sacramento do amor, a Eucaristia. Hoje ele deixou-se ficar no Pão e
no Vinho transfigurados pelo seu Espírito Santo, como sacramento do seu Corpo e
Sangue, imolado e ressuscitado para ser nossa oferta ao Pai, nosso alimento no
caminho e nosso penhor de ressurreição e vida eterna. Quanta gratidão, quanto
reconhecimento, devem brotar do nosso coração! Seu Corpo por nós imolado, seu
Sangue por nós derramado, Jesus por nós entregue – sacramento de um amor
eterno, de uma entrega sem fim, de uma presença perene! Comungar hoje do Corpo
e do Sangue do Senhor é não somente unir-se a ele, mas estar disposto a ir com
ele até a cruz e a morte! Ah, irmãos, não façamos como Pedro, que prometeu, mas
não cumpriu e negou o Senhor! “O cálice de bênção que abençoamos não é
comunhão com o sangue de Cristo? O pão que partimos não é comunhão com o corpo
de Cristo?” (1Cor 10,16). Que grande mistério, esta união de vida e de morte com o
nosso Senhor pela Eucaristia! Não reneguemos na vida e nas ações aquele que
hoje nos convida à sua mesa e conosco celebra a sua Páscoa!
Hoje, para presidir à Eucaristia e ser um sinal do Senhor,
mestre e servidor, Cristo, na Ceia, instituiu o sacerdócio ministerial: aqueles
que em seu nome e por sua ordem, deverão presidir à Celebração eucarística até
que ele volte. Nesta tarde sagrada, rezemos pelo nosso Bispo e pelos nossos
sacerdotes, para que sejam dignos de tão grande ministério e o exerçam como
Cristo, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida!
Irmãos e Irmãs caríssimos, guardemos no mais profundo do
coração os mistérios desta Missa na Ceia do Senhor. Um amor tão grande, uma
entrega tão total deve mover nosso coração, deve nos fazer sentir compungidos,
desejosos de abrir nossa vida para o Cristo e realmente caminhar com ele. Tudo,
nesta Celebração, respira amor, fala de amor: recordem o cordeiro imolado da
primeira leitura – é o Cristo que por nós é imolado; pensem no pão sem fermento
que partimos e no cálice da aliança que repartimos, na segunda leitura – é
ainda o Cristo que se deixa ficar entre nós e em nós, como alimento e vida
nova, plena do Espírito do Pai; recordem o Senhor inclinado, lavando-nos os
pés, dando-nos a vida e dizendo a você e a Pedro: “Se eu não te lavar, não terás parte comigo”– é o Senhor na sua
pura entrega de amor por nós!
Por favor, nestes dias, celebremos estes santos mistérios
pascais com piedade, espírito de adoração profunda e profunda gratidão para com
Aquele que por nós quis entregar-se às mãos dos malfeitores e sofrer o suplício
da cruz. Não fiquemos indiferentes, não sejamos frios: tudo quanto celebraremos
foi por nós que o Senhor instituiu e para nossa salvação que realizou! E que
pela Páscoa deste ano, ele se digne conduzir-nos à Páscoa eterna. Amém.
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