Neste domingo, a liturgia nos propõe dois exemplos de hospitalidade, o
de Abraão e o de Marta. A história de Abraão dirige nosso olhar para o mistério
escondido na hospitalidade. A história de Marta e Maria nos ensina que, antes
de se desdobrar em gestos de hospitalidade, importa saber acolher. A verdadeira
hospitalidade não consiste em preparar muitas coisas, mas em acolher o dom que
é a pessoa. Receber as pessoas com atenção, dar-lhes audiência, pode ser uma
ocasião para receber a única coisa verdadeiramente necessária, a palavra de
Deus: sua promessa (no caso de Abraão), seu ensinamento (no caso de Maria).
Por séculos quis-se apresentar Marta e Maria como dois modelos de vida
contrapostos: em Maria quis-se representar a contemplação, a vida de união com
Deus; em Marta, a vida ativa de trabalho; mas a vida contemplativa não consiste
em estar aos pés de Jesus sem fazer nada: isso seria uma desordem! Os afazeres
de cada um são precisamente o lugar em que encontramos a Deus, “o eixo sobre o qual
assenta e gira a nossa chamada à santidade” (São Josemaria Escrivá). Sem um
trabalho sério, consciente, prestigioso, seria muito difícil, para não dizer
impossível, ter uma vida interior profunda e exercer um apostolado eficaz no
meio do mundo.
A maioria dos cristãos, chamados a santificar-se no meio do mundo, não
se podem considerar como dois modos contrapostos de viver o cristianismo. Pois,
uma vida ativa que se esqueça da união com Deus é algo inútil e estéril; uma
suposta vida de oração que prescinda da preocupação apostólica e da
santificação das realidades ordinárias também não pode agradar a Deus. A chave
está, pois, em saber unir estas duas vidas, sem prejuízo nem de uma nem de
outra. Esta união profunda entre ação e contemplação pode viver-se de modos
muito diversos, segundo a vocação concreta que cada um recebe de Deus.
O trabalho, longe de ser obstáculo, há de ser meio e ocasião de uma
intimidade afetuosa com Nosso Senhor, que é o mais importante. Ou seja, é no
meio de nossos trabalhos cotidianos e através deles, não apesar deles, que Deus
convida a maioria dos cristãos a santificar o mundo e a santificação nele, com
uma vida transbordante de oração que vivifique e dê sentido a essas tarefas. A
um grupo numeroso ensinava S. Josemaria Escrivá: “Deveis compreender agora –
com uma nova clareza – que Deus vos chama a servi-lo nas e a partir das tarefas
civis, materiais, seculares, da vida humana. Deus espera-nos cada dia no
laboratório, na sala de operações de um hospital, no quartel, na cátedra universitária,
na fábrica, na oficina, no campo, no lar, e em todo o imenso panorama do
trabalho. Não esqueçam nunca: há algo de santo, de divino, escondido nas
situações mais comuns, algo que a cada um de nós compete descobrir (…). Não há
outro caminho: ou sabemos encontrar o Senhor na nossa vida de todos os dias, ou
não O encontraremos nunca. Por isso, posso afirmar que a nossa época precisa
devolver à matéria e às situações aparentemente vulgares o seu sentido nobre e
original; pondo-as ao serviço do Reino de Deus, espiritualizando-as, fazendo
delas o meio e a ocasião para o nosso encontro contínuo com Jesus Cristo”
(Temas Atuais do Cristianismo, nº 114). Temos que chegar ao amor de Maria
enquanto levamos a cabo o trabalho de Marta. Pois, o trabalho alimenta a oração
e a oração “embebe” o trabalho. E isto até se chegar ao ponto de o trabalho em
si mesmo, enquanto serviço feito ao homem e à sociedade, se converter em oração
agradável a Deus. Numa palavra, o trabalho é o meio com que nos santificamos.
E isto é o que verdadeiramente importa: encontrar Jesus no meio desses
afazeres diários, não esquecer em momento algum “o Senhor das coisas”; e menos
ainda quando esses afazeres se referem mais diretamente a Ele, pois, do
contrário, talvez acabássemos por realizá-los com a atenção posta em nós
mesmos, procurando neles somente a nossa realização pessoal, o gosto ou a mera
satisfação de um dever cumprido, e deixando de lado a retidão de intenção,
esquecendo o Mestre.
Marta ao acolher Jesus em sua casa também nos ensina que devemos abrir o
coração para o próximo, todo o próximo que se aproxima de nós ou de quem nós
nos aproximamos. É toda uma atitude de acolhimento entre os esposos, entre pais
e filhos, entre irmãos, entre os vizinhos, no trabalho, em nossas comunidades
paroquiais, etc.
É importante que acolhamos Jesus como Maria, colocando-nos aos seus pés
para ouvi-lo, mas é importante também que O acolhamos como Marta, proporcionando-lhe descanso e alimento, contanto que tudo seja feito no Senhor.
Que a Virgem Santíssima nos alcance o espírito de trabalho de Marta e a
presença de Deus de Maria, daquela que, sentada aos pés de Jesus, escutava
embevecida as suas palavras.
Comentário dos textos bíblicos
Textos: Gn 18,1-10a; Cl 1,24-28; Lc 10,38-42
Caros irmãos e irmãs, o Evangelho deste
domingo traz um relato onde sobressaem as personagens femininas, que são duas
irmãs, Marta e Maria, que vivem em Betânia com o irmão Lázaro, que, contudo,
neste caso não parece. Jesus passa pela sua aldeia e, segundo o texto, Marta o
hospeda. Este pormenor dá a entender que, das duas, Marta é a mais idosa, a que
governa a casa. De fato, depois de Jesus ter entrado, Maria senta-se aos seus
pés e ouve-o, enquanto Marta andava atarefada com muitos serviços, certamente
devido à presença do ilustre hóspede.
Parece que vemos a cena: uma irmã que anda
toda atarefada, e a outra atenta à presença do Mestre e das suas palavras. Um
pouco depois Marta não resiste e protesta: “Senhor, não te importas que minha
irmã me deixe sozinha, com todo o serviço? Manda que ela me venha ajudar!”. Mas
Jesus, com calma, responde: “Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por
muitas coisas. Porém, uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte
e esta não lhe será tirada” (v. 42).
A cena é profundamente humana. Jesus é hóspede em casa desta família
amiga. Marta se esforça para dar conta
do serviço caseiro, enquanto Maria, sentada aos pés de Jesus, escuta a sua
palavra. Podemos notar que ao responder a
Marta, Jesus não condena sua atividade e seu zelo pelo serviço a sua pessoa,
mas a adverte de um perigo: a inquietação da qual pode ser vítima. Ao dizer “Marta, Marta…”, exprime nesta
repetição do nome um sinal do afeto de Jesus para com ela e um meio de torná-la
mais atenta à lição que ele quer dar.
Jesus a censura, por ela preocupar-se demais com as coisas
materiais. Ele não condena o seu
trabalho, mas procura mostrar que, acima das preocupações materiais, devem
existir o cuidado e a solicitude para com o lado espiritual.
Jesus indica ainda que uma só coisa é
importante e indispensável: o alimento espiritual da alma. Jesus quer a união do trabalho e da
oração. Assim será a perfeição da vida:
a oração, indispensável; o trabalho, necessário.
As atitudes das duas irmãs Marta e Maria são
para nós ações complementares diante do Reino.
Marta representa a atividade serviçal, o trabalho e a preocupação de
cada dia, mas com o perigo que pode ter de nos roubar o tempo que necessitamos
para escutar em silêncio a palavra de Deus.
Em Marta e Maria estão representados os dois caminhos através dos quais
se pode servir ao Senhor.
As atividades exteriores acabam com a
morte. A união de nossa alma com Deus
perdura para sempre. Maria se ocupa do único necessário: a própria
salvação. Marta quer o mesmo fim, mas se
ocupa demais com o trabalho material.
Também na nossa vida cristã a oração e a ação
permaneçam sempre profundamente unidas. Uma oração que não leva à ação concreta
a favor do irmão pobre, doente e necessitado de ajuda, o irmão em dificuldade,
é uma prece incompleta. Mas do mesmo modo, quando no serviço eclesial só
prestamos atenção à ação, quando damos mais importância às coisas, às funções e
às estruturas, esquecendo-nos da centralidade de Cristo, sem reservar tempo ao
diálogo com Ele na oração, corremos o risco de nos servirmos a nós mesmos, e
não a Deus presente no irmão necessitado.
São Bento resumia o estilo de vida que
indicava aos seus monges com estas palavras: “Ora et labora”, ou seja, oração e
trabalho. É da contemplação de uma forte relação de amizade com o Senhor que
nasce em nós a capacidade de viver e de anunciar o amor de Deus, a sua
misericórdia, a sua ternura pelo próximo. E inclusive o nosso trabalho com o
irmão em necessidade, a nossa tarefa de caridade nas obras de misericórdia nos
levam ao Senhor.
Muitos outros santos também experimentaram uma
profunda unidade de vida entre oração e ação, entre o amor total a Deus e o
amor aos irmãos. São Bernardo, que é um modelo de harmonia entre contemplação e
laboriosidade, insiste precisamente na a importância do recolhimento interior e
da oração para se defender dos perigos de uma atividade excessiva,
independentemente da condição em que se encontra e da tarefa que está a
cumprir. São Bernardo afirma que as ocupações excessivas, uma vida frenética,
terminam muitas vezes por endurecer o coração e fazer sofrer o espírito (cf.
BENTO XVI, Audiência geral de 25 de abril de 2012).
Não podemos perder-nos no ativismo puro, mas
devemos deixar-nos penetrar sempre na nossa atividade pela luz da Palavra de
Deus e assim aprender a caridade autêntica, o serviço verdadeiro ao outro, que
necessita do nosso auxílio.
Nesta narração evangélica fica acentuado a
vocação para o primado da vida espiritual, para a necessidade de nos
alimentarmos com a Palavra de Deus, a fim de darmos luz e sabor às tarefas
quotidianas. Trata-se de um convite que
é particularmente oportuno em qualquer tempo. Em ambos os casos, não há oposição
entre os momentos de oração e da escuta de Deus e a atividade quotidiana e o
exercício da caridade. A admoestação de Jesus a Marta frisa a prioridade que
devemos dar a Deus frente as atividades cotidianas.
As palavras de Cristo dirigidas a Marta devem
encontrar eco no nosso coração. Seguindo, portanto, a eloquência dessas
palavras, peçamos a Deus para que abra os nossos corações, para atentamente
escutarmos as palavras do seu Filho Jesus. Que nós também possamos, no nosso
trabalho reservar um tempo para o Senhor.
Procuremos também nós ter aquilo que não nos
pode ser tirado, e para que isto venha a se concretizar, peçamos também a
intercessão da Virgem Maria, Mãe da escuta e do serviço, que nos ensine a
meditar no nosso coração a Palavra do seu Filho, a rezar com fidelidade, ela
que preferiu alimentar-se daquilo que dizia o Senhor. E assim como Maria, saibamos também nós
escutar atentamente a Palavra de Deus e colocá-la em prática, e que essa mesma
Palavra de Deus possa dar sentido ao nosso agir quotidiano. Assim seja.
PARA REFLETIR
O Senhor hoje nos acolhe em sua Casa,
hospeda-nos ao redor do seu Altar sagrado, para nos falar de hospitalidade.
Aquele que nos hospeda bate à nossa porta, humildemente, como hóspede,
esperando ser acolhido por nós: “Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir
minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo”
(Ap 3,20). Abramos para ele nosso coração e nossa vida.
A Palavra de Deus apresenta-nos, nas leituras
deste Domingo, dois modos de acolher o Senhor; dois modos distintos, mas que se
relacionam e mutuamente se condicionam. O primeiro, é acolhendo-o na sua
Palavra, como Maria, a irmã de Marta e de Lázaro. Para nós, ela é modelo do
discípulo perfeito, pois “sentou-se aos pés do Senhor, e escutava sua palavra”.
Marta também acolheu Jesus, mas é um acolhimento exterior e, portanto,
superficial, como o daqueles que são cristãos tão empenhados em trabalhar por
Cristo e em falar de Cristo, que esquecem de estar com Cristo, de realmente
dar-lhe atenção na escuta da Palavra e na oração. Ora, é nisto, precisamente,
que Maria, hoje, é exemplo para nós: “sentou-se aos pés do Senhor”. – Vejam a
disponibilidade, à atenção à Pessoa de Cristo, a disposição em acolher a
Palavra que brota do coração do Salvador: “escutava sua palavra”. Aqui,
cabe-nos perguntar: neste mundo dispersivo e agitado, neste mundo da competição
e do estresse, tenho tido tempo, realmente, para acolher o Cristo que bate à
minha porta? “Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir minha voz e abrir a
porta, entrarei…” Não tenhamos dúvida que grande parte da crise de fé e de
entusiasmo de muitos cristãos decorre da falta desse acolhimento íntimo em
relação ao Senhor, da incapacidade de hospedá-lo no nosso afeto e no nosso
coração pela escuta da Palavra que se torna oração amorosa e perseverante.
Talvez sirva para todos nós, ativos em excesso e dispersos contumazes, a
advertência de Jesus: “Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas
coisas. Porém, uma só coisa é necessária”. Qual? Que coisa é a única
necessária? Estar aos pés do Senhor, abrindo-se à sua Palavra: “O homem não
vive somente de pão, mas de toda Palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4). É
esta a parte que Maria escolheu e que, por nós escolhida, jamais nos será
tirada, porque Deus é fiel!
Mas, há um outro modo de acolher Aquele que
está à porta e bate. Este modo deve decorrer da escuta da Palavra e mostra se
essa Palavra é eficaz na nossa vida. Trata-se de acolher os outros, de
hospedá-los no nosso coração e na nossa vida. Recordemos a cena de Abraão,
nosso pai na fé. Colhamos os detalhes! Abraão estava sentado, talvez
descansando do almoço, “no maior calor do dia”. Ao ver os estrangeiros que lhe
estão próximos, corre ao encontro deles. Observem a solicitude de nosso pai na
fé: não os conhecia, mas corre, com pressa, até eles e os reverencia: “Assim
que os viu, correu ao seu encontro e prostrou-se por terra”. Observem a
insistência no convite para que os estranhos comam de sua mesa; notem a
solicitude em preparar rápido o melhor que tem: entrou logo na tenda, tomou
farinha fina, correu ao rebanho e pegou um dos bezerros mais tenros e melhores,
pegou coalhada e colocou tudo diante dos hóspedes… Por que fez isso? Porque tem
fé! Para Abraão, não existe acaso. Notem como ele diz aos estrangeiros: “Foi
para isso mesmo que vos aproximastes do vosso servo”. Ou seja: fizestes-vos
próximos de mim para que eu me faça próximos de vós e vos sirva! Notem ainda
como a situação se inverte: ao início, Abraão estava sentado e os hóspedes, de
pé; agora, Abraão está de pé, servindo, e os hóspedes, comodamente sentados.
Sem saber, naqueles estrangeiros, acolhidos desinteressadamente, Abraão estava
acolhendo o próprio Senhor. E, ao fazê-lo, ao esquecer-se de si para
preocupar-se com os outros, tornou-se fecundo: “Onde está Sara, tua mulher?
Voltarei, sem falta, no ano que vem, por esse tempo, e sara, tua mulher, já
terá um filho!” Bendita hospitalidade, que gera vida! Bendito sair de nós, que
nos torna fecundos!
Domingo passado, a Palavra nos fazia
perguntar: quem é o meu próximo? Pois hoje, a pergunta volta, insistente: quem
são aqueles e aquelas que estão de pé, à porta da minha tenda esperando que eu
os acolha no meu coração e na minha atenção? Pensemos nos pobres, nos
desvalidos, nos sem amor, nos que caíram, nos que se sentem sozinhos, nos que
batem à nossa porta pedindo uma esmola e nos que pedem atenção, respeito,
compreensão, perdão e amor… Somos tão tentados ao fechamento no nosso mundo e
nas nossas preocupações! E, no entanto, neles, o Senhor bate à nossa porta,
pede-nos hospedagem: “Eis que estou à porta e bato!” E isso não é de hoje nem
de ontem: desde Belém, que ele está à porta, desde Belém, que ele procura o
nosso acolhimento! Desde Belém, não “havia lugar para ele na hospedaria” (Lc
2,7).
Então, somente poderemos hospedar Jesus em
plenitude quando estes dois modos se completam: hospedá-lo na escuta da Palavra
e no silêncio da oração e hospedá-lo naqueles que vêm a nós pelos caminhos da
vida. Calha maravilhosamente hoje o conselho do Autor da Carta aos Hebreus: “O
amor fraterno permaneça. Não vos esqueçais da hospitalidade, porque graças ela alguns, sem saber, acolheram anjos” (Hb
13,1s). Mais que anjos: acolheram o próprio Deus, aquele que disse: “Em verdade
vos digo: cada vez que o fizestes a um desses irmãos mais pequeninos, a mim o
fizestes!” (Mt 25,40).
Que o Senhor nos conceda hospedar sempre, para
que encontremos hospedagem no seu coração. A ele a glória para sempre. Amém.
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