domingo, 9 de agosto de 2015

A utilização da imagem de Nossa Senhora Aparecida por uma Escola de Samba


Há diversas notícias na imprensa dando conta de que uma Escola de Samba do Estado de São Paulo fará homenagem a Nossa Senhora Aparecida no próximo carnaval. As notícias dizem ainda que haveria a autorização do Arcebispo de São Paulo para o desfile – desde que respeitados os parâmetros de prudência quanto à história da veneração a esta imagem da santa, e de respeito a ela por parte dos foliões.

Não poucos fiéis, porém, têm se manifestado de forma enérgica contra esta utilização. De fato, muitos registram o “caráter essencialmente pagão” do carnaval, que seria, portanto, uma festa em si mesma incompatível com o cristianismo. Outros preocupam-se com a exposição do respeitável e venerável símbolo religioso que é a imagem de Nossa Senhora Aparecida num meio marcado pela embriaguez, culto aos sentidos e sexualidade desenfreada, totalmente incompatível com a dignidade devida a este símbolo religioso e mesmo à pessoa que ele representa, Nossa Senhora Maria Santíssima. Seu sentimento religioso deve ser respeitado. Mas há algumas questões a ponderar.

Não tenho dúvidas de que o carnaval utiliza, e mesmo se constitui, de muitos elementos pagãos; o mesmo se poderia dizer, no entanto, e sem pecar, da própria liturgia católica: cito como exemplo a coroa do advento. Cristianizar elementos originalmente pagãos é próprio da fé católica, desde sempre, e representa o reconhecimento de que a religião cristã é uma religião encarnada e culturalmente respeitosa. É certo que os elementos pagãos do carnaval, ultimamente, vêm adquirindo um relevo que ultrapassa o razoável. Abusam-se deles, a ponto de desfigurar completamente a própria razão de ser do carnaval, como preparação para a ascese da quaresma, fixado, inclusive civilmente, com base na data da páscoa. Mas como lembra o ditado latino "abusus non tollit usus", poderíamos afirmar que o fato de que os elementos pagãos do carnaval são abusados através, digamos, do culto à sexualidade e à embriaguez não deve tolher-nos, a nós cristãos, de usar desses dias para extravasar uma alegria santa, aquela mesma que é a nossa força. Não podemos permitir que o abuso pagão tolha o nosso uso santo. 

Historicamente, sempre houve o uso de elementos de piedade nas verdadeiras festas de carnaval cristãs, aquelas movidas pela alegria do Espírito de que fala a Bíblia. Cito as congadas, reizados, folguedos que se desenvolviam em torno da simulação de batalhas entre as forças de Nosso Senhor e as forças do mal, e que tanta alegria davam e dão ainda ao povo mais inocente. Mas será que nos grandes centros o paganismo ganhou, e conseguiu descristianizar de tal modo o carnaval a ponto de tornar desaconselhável que ali sejam manifestados elementos da nossa fé? (Seria um triste fim para os nossos congados e reizados, em que as forças de Deus sempre vencem!) Quanto a isso, duas posturas são possíveis: abandonar o carnaval ao paganismo desenfreado ou retomá-lo com muita prudência, através da ocupação tranquila de espaços capazes de permitir o retorno a uma alegria mais inocente, que permitiu à Igreja incorporar o carnaval em seu próprio calendário de festas. Cabe ao juízo prudencial do Magistério arbitrar sobre como agir em tais questões, que envolvem fé e moral.

Levanta-se ainda uma segunda questão. Trata-se da "culturalidade" dos símbolos religiosos católicos e seu uso fora dos ambientes eclesiais. Vamos começar pelo mais simples: o crucifixo. Ele não é uma “marca registrada”, um “logotipo” da Igreja Católica. É a representação artística do suplício de um ser humano, admirável em muitos sentidos. De um ser humano que, inegavelmente, marcou a nossa cultura ocidental muito mais do que qualquer outro , nos últimos milênios. Não há uma relação de pertença, nem de exclusividade, entre o crucifixo e a Igreja Católica. Não há patente registrada, nem marca comercial. O crucifixo é visto em muitos ambientes não-católicos, como terreiros de umbanda, candomblés, centros espíritas, lojas da “Nova Era”, templos da “Boa-Vontade”, até mesmo em algumas denominações evangélicas, para não mencionar as repartições públicas e órgãos estatais. Enfim, é uma imagem de domínio público. Relaciona-se com muitos valores que são caros à nossa sociedade e que são profundamente arraigados em sua história. E que ultrapassam os limites visíveis da pertença à Igreja una, santa, católica e apostólica. Os limites de sua utilização parecem ser os limites do respeito aos valores que ele simboliza, não somente religiosos, mas também históricos e culturais. É exatamente por isto que o uso de crucifixos em prédios públicos não fere a laicidade estatal.

É certo que há alguns anos, o cardeal dom Eugênio Salles proibiu que uma escola de samba do Rio de Janeiro levasse à avenida uma imagem do Cristo Redentor, considerando que seria inconveniente o uso que se faria dele no espaço carnavalesco. Mas há, aí, uma sutileza jurídica: a estátua do Cristo Redentor é propriedade privada da Igreja Católica, como santuário católico construído com dinheiro de doação de fiéis em lugar sob administração da arquidiocese do Rio de Janeiro. Há, portanto, um claro "direito de imagem" de natureza privada, aí, a possibilitar um controle mais estrito de sua utilização. Isto não se dá do mesmo modo com a imagem de Nossa Senhora Aparecida, que tem 300 anos, é de domínio público e faz parte da história de São Paulo e do Brasil. E mormente quando seu uso, ao contrário daquele da estátua do Redentor no Rio de Janeiro, foi precedido de pedido formal de autorização e de submissão às condições fixadas pelas autoridades eclesiais católicas.

Assim, diversamente da questão do Cristo Redentor, que envolvia direito privado de imagem, aqui se trata de imagem de domínio público cujo único fundamento válido para uma vedação do uso por uma escola de samba seria o do eventual vilipêndio a objeto religioso. Mas, salvo engano, esse juízo de vilipêndio não pode ser feito de modo puro e simples por um fiel contra outro, se há o discernimento do Bispo responsável pela respectiva arquidiocese, mormente quando há elementos que tornam este juízo eclesial de liberação razoavelmente plausível.

Há uma terceira questão. Um fiel católico não poderia recorrer a uma autoridade estatal contra esse juízo prudencial do bispo ordinário. A Concordata Brasil Santa Sé tem dispositivos específicos quanto à proteção do patrimônio cultural, em especial seu artigo 6º, que pode ser consultado aqui. Nos termos, portanto, dessa Concordata, promulgada pelo Decreto 7.107/2010, somente a Igreja, representada pelo Bispo local, poderia fazer o juízo prudencial perante o Estado quanto à eventual violação da sacralidade do símbolo religioso, e o crime do art. 208 do CP não se aplica quando o próprio Bispo competente declarou que, se atendidas determinadas condições, não haveria violação da sacralidade do objeto.

Não conheço a decisão do Bispo nem as condições que ele impôs à escola de Samba. Mas o § 892 do Catecismo estabelece o critério: devemos nos “ater com religioso obséquio do espírito” ao discernimento episcopal do magistério, em matéria de fé e moral. É claro que, mais uma vez, o juízo prudencial do bispo, no particular, não legitima qualquer abuso do autorizatário. E a nossa lealdade à Igreja nos ensina que devemos levar ao conhecimento do Bispo qualquer abuso posterior aos justos limites da sua aquiescência. Não se pode, porém, de antemão, presumir que a sua autorização foi abusiva, ou que será abusada. Apelar ao Estado para substitua o juízo prudencial do ordinário diocesano do lugar pelo juízo do agente estatal, em razão da nossa discordância laical quanto ao próprio mérito da decisão episcopal, parece implicar uma desvalorização da autoridade eclesial em matéria de fé e moral, uma desconsideração à Concordata e uma indevida valorização do Estado frente ao Magistério eclesial, desaconselhada, aliás, na 1ª Carta de São Paulo aos Coríntios, capítulo 6, 1-11.

Por isto tudo, se houver de fato a aprovação episcopal, e se forem obedecidos os parâmetros afixados pelas autoridades eclesiais competentes, o meu dever de filho da Igreja me levará a acreditar que isto não somente não ofenderá a nossa fé ou a nossa moral, como será, com a graça de Deus, um instrumento interessante de evangelização e recuperação da santa alegria no carnaval.


Paulo Vasconcelos Jacobina 
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ZENIT

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