terça-feira, 18 de agosto de 2015

Primeiro embate do sínodo dos Bispos: A lei natural


O próximo Sínodo dos Bispos foi precedido por um alvoroço da mídia que lhe atribui um significado histórico maior do que o seu âmbito eclesiológico de mera assembléia consultiva da Igreja. Alguns lamentam pela guerra teológica que o Sínodo anuncia, mas a história de todos os encontros episcopais (este é o significado etimológico do termo e do seu sinônimo “concílio”) sempre foi marcada por conflitos teológicos e debates ásperos sobre erros e divisões que ameaçavam a comunidade cristã desde o seu início.

Hoje a questão da comunhão para divorciados é só mais uma vertente de uma discussão que abrange conceitos doutrinários muito mais complexos, como o da natureza humana e da lei natural. Esse debate parece refletir na esfera antropológica, as especulações trinitárias e cristológicas que abalaram a Igreja durante o Concílio de Nicéia (325) e da Calcedônia (451). Naquela época se discutia para determinar a natureza da Santíssima Trindade, que é um só Deus em três Pessoas, e para definir em Jesus Cristo a Pessoa do Verbo, que subsiste em duas naturezas, a divina e a humana. A adoção por parte do Concílio de Nicéia, do termo grego homoousios, que em latim foi traduzido como consubstantialis e, logo após com o Concílio de Calcedônia, com as palavras “da mesma natureza” da substância divina, para afirmar a perfeita igualdade entre o Verbo e o Pai, marcou uma data memorável na história do Cristianismo e encerrou uma era de perplexidade, confusão, e drama de consciência semelhante àquela em que estamos inseridos. Naqueles anos, a igreja estava dividida entre a “direita” de Santo Atanásio e a “esquerda” dos seguidores de Ário (a definição é do historiador dos Concílios Karl Joseph von HEFELE). Entre os dois polos oscilava o terceiro partido dos semi-arianos, divididos em várias facções. Ao homoousios de Nicéia, que significa “da mesma substância” foi contraposto o termo homoiousios que significa “de substância semelhante”. Não se tratava de uma mera questão de terminologia. A diferença entre essas duas palavras, aparentemente insignificante, esconde um abismo: de uma parte a identidade com Deus, e da outra, uma certa analogia ou semelhança, o que faz de Jesus Cristo um simples homem.

A melhor reconstrução histórica deste período é a do cardeal John Henry Newman, em seu livro “Os arianos do IV século”(tr. Ele. Jaca Book, Milano 1981), um estudo aprofundado, que destaca a responsabilidade do clero e a coragem do “povo” na manutenção da fé ortodoxa. O diácono Atanásio, campeão da ortodoxia, ao ser eleito bispo, foi forçado por bem cinco vezes a abandonar sua diocese para percorrer o caminho do exílio. No ano 357 o Papa Libério excomungou Atanásio e dois anos mais tarde, os Concílios de Rimini e Selêucia, que constituíam uma espécie de grande concílio ecumênico representando o Ocidente e o Oriente, abandonaram o termo “consubstancial” de Nicéia e estabeleceram um equivocado meio-termo entre Santo Atanásio e os Arianos. Foi então que São Jerônimo cunhou a frase segundo a qual  “o mundo gemeu e percebeu com espanto que tinha se tornado Ariano”.

Atanásio e os defensores da fé ortodoxa foram acusados de ficarem presos a questões de palavras e de serem encrenqueiros e intolerantes. As mesmas acusações que agora são dirigidas àqueles que dentro e fora dos debates sinodais levantam uma voz de intransigente firmeza na defesa do ensinamento perene da Igreja sobre o matrimônio cristão, como é o caso dos cinco cardeais (Burke, Brandmüller, Caffara De Paolis e Müller) os quais, depois de terem se manifestado individualmente, reuniram suas ações em defesa da família em um livro que se tornou um manifesto, “Permanecer na verdade de Cristo: o casamento e a Comunhão na Igreja Católica”, que acaba de ser publicado pelas Edições Cantagalli Siena. A mesma editora Cantagalli foi responsável pela publicação de mais um texto fundamental, “Divorciados recasados. A práxis da Igreja primitiva” do jesuíta Henri CROUZEL. 

Os comentaristas dos jornais Corriere della Sera e Repubblica rasgaram as vestes pela rixa teológica em curso. O mesmo Papa Francisco, no dia 18 de setembro, recomendou aos bispos recém-nomeados que “não desperdicem energia se opondo ou se confrontando uns aos outros”, esquecendo-se da sua responsabilidade pessoal pelo confronto, quando ele próprio decidiu confiar a tarefa de abrir os trabalhos sinodais ao Cardeal Walter Kasper. Como bem observou Sandro Magister, foi o cardeal Kasper, com a sua relação secreta de 20 de fevereiro de 2014, documentada pelo jornal Il Foglio, que deu início às hostilidades e desencadeou o debate doutrinário, tornando-se assim, para muito além de suas intenções, o porta-estandarte de um partido. A fórmula repetidamente reafirmada pelo cardeal alemão, segundo a qual o que tem que mudar não é a doutrina da indissolubilidade, mas o cuidado pastoral pelos divorciados novamente casados, tem em si a capacidade de provocar ruptura e é a expressão de um conceito teológico envenenado desde os seus fundamentos.

Para compreender melhor o pensamento de Kasper, é necessário voltar a uma de suas primeiras obras, que é talvez a principal: “O absoluto na história segundo a filosofia de Schelling”, publicada em 1965 e traduzida por Jaca Book, em 1986. Walter Kasper, de fato, pertence à escola de Tübingen, que, como ele descreve neste estudo, “começou uma renovação da teologia e de todo o catolicismo alemão ao promover o encontro entre Schelling e Hegel” (p. 53).  A metafísica é a de Friedrich Schelling (1775-1854), “gigante solitário” (p. 90), de cujo caráter gnóstico e panteísta o teólogo alemão tenta em vão libertar-se. Na sua última obra, “Philosophie der Offenbarung” (Filosofia da Revelação), de 1854, Schelling contrapõe ao Cristianismo dogmático, o cristianismo da história. “Schelling – comenta Kasper – não concebe de forma estática, metafísica e sobretemporal o relacionamento entre o natural e o sobrenatural, mas de um modo dinâmico e histórico. O essencial da revelação cristã é propriamente isso, que essa é a história”(p. 206).

Também para Kasper, o Cristianismo antes de ser doutrina é história ou praxis. Em sua obra mais famosa, “Gesù il Cristo” (Queriniana, Brescia 1974), ele desenvolve uma cristologia em chave histórica que depende da filosofia da revelação do seu mentor alemão. A concepção trinitária de Schelling é aquela dos heréticos sabelianos e modalistas, precursores do Arianismo. As três Pessoas divinas são reduzidas de três modos de “sub-existência” a uma única natureza-pessoa (modalismo), enquanto a essência da Trindade se resolve com sua sua manifestação no mundo. Cristo não é um intermediário entre Deus e o homem, mas a realização histórica da divindade no processo trinitário.

Coerente com a cristologia de Kasper é também sua eclesiologia. A Igreja é antes de tudo “pneuma”, “o sacramento do Espírito Santo”, uma definição que, para o cardeal alemão, “corrige” o estatuto jurídico de Pio XII na encíclica Mystici Corporis (“A Igreja, lugar do Espírito”, Queriniana, Brescia 1980, p. 91 ). O campo de ação do Espírito Santo não coincide, como ditado pela Tradição, com aquele da Igreja Católica Romana, mas estende-se a uma realidade ecumênica muito mais ampla, a “Igreja de Cristo”, da qual a Igreja Católica é apenas uma parte. Para Kasper, o Decreto sobre o ecumenismo do Concílio Vaticano II nos leva a reconhecer que a única igreja de Cristo não se limita à Igreja Católica, mas é dividida em igrejas e comunidades eclesiais separadas (ibid, p. 94). A Igreja Católica é “onde não há algum evangelho seletivo”, mas tudo se expande de maneira inclusiva, no tempo e no espaço (“a Igreja Católica – Essência, realidade, missão”. Queriniana, Brescia 2012, p 289). A missão da Igreja é “sair de si mesma” para recuperar uma dimensão que a torne verdadeiramente universal. Eugenio Scalfari, que se apresenta como um terceiro papa, logo após o emérito e o reinante, embora totalmente ignorante em matéria de teologia, atribui a mesmíssima concepção ao Papa Francisco, afirmando que para ele, a igreja missionária é aquela que “tem que sair de si mesma e ir para o mundo” realizando o cristianismo na história (Repubblica, 21 de setembro de 2014).

Estas teses estão refletidas na teologia moral de Kasper, segundo a qual a experiência do encontro com Cristo dissolve a lei, ou melhor, a lei é um impedimento do qual o homem deve libertar-se para encontrar a misericórdia de Cristo. Schelling em sua filosofia panteísta absorve em Deus até o mal. Kasper absorve o mal no mistério da Cruz, na qual ele vê a negação da metafísica tradicional e da lei natural que vem em seguida. “A passagem da filosofia negativa à filosofia positiva é para Schelling, ao mesmo tempo a passagem da lei ao evangelho” (“O absoluto na história”, p. 178), assim escreve o cardeal alemão, que por sua vez, vê a passagem da lei para o evangelho na primazia da praxis pastoral sobre uma doutrina abstrata.

A este respeito, o ensinamento moral do Cardeal Kasper é, pelo menos implicitamente, antinomista. O antinomismo é um termo cunhado por Lutero contra o seu adversário na esquerda, Johann Agricola (1494-1566), mas que tem suas reminiscências em heresias antigas e medievais para indicar a rejeição do Antigo Testamento e sua lei, que eram vistos como mera proibição e obrigações, em contraste com o Novo Testamento, que é a nova economia da graça e da liberdade. Em termos gerais, o Antinomismo é visto como a rejeição da lei moral e natural que tem suas raízes na rejeição da idéia da natureza. Para os “antinomistas cristãos” não existe lei porque não existe uma natureza humana objetiva e universal. A consequência é a evaporação do sentido do pecado, a negação dos absolutos morais, a revolução sexual dentro da Igreja.

A partir dessa perspectiva, é possível compreender como o Cardeal Kasper em seu recente livro: “Misericórdia. Conceito fundamental do Evangelho – Chave da vida”,  publicado em alemão em 2012 e traduzido para o italiano pela editora Queriniana em 2013, se propõe a romper com o tradicional equilíbrio entre justiça e misericórdia, fazendo desta última, contra tudo que ensina a Tradição, o principal atributo de Deus. No entanto, como observou Padre Serafino Lanzetta em uma excelente análise do seu volume, publicado pela www.chiesa.espressonline.it, “a misericórdia aperfeiçoa e cumpre a justiça, mas não a anula e sim a pressupõe, caso contrário ela não teria razão de existir”. O desaparecimento da justiça e da lei torna ininteligível o conceito de pecado e o mistério do mal, a menos que se queira reintegrá-los em uma perspectiva teosófica e gnóstica.

Encontramos esse erro no postulado Luterano da “sola misericordia.” Abolida a mediação da razão e da natureza, para Lutero o único caminho de volta para Deus é a “fé fiducial”, que tem seu preâmbulo não na razão metafísica, da qual deve ser totalmente desvinculada, mas num sentimento de profundo desespero que tem por sua vez seu próprio objeto na “misericórdia” de Deus, ao invés da verdade revelada por Ele. Este princípio, como foi demonstrado por Silvana Seidel Menchi em sua obra “Erasmus na Itália 1520-1580” (La Costa Basic Books, Turim, 1987), desenvolveu-se na literatura herética do século XVI graças à influência do Tratado de Erasmus, “De imensos misericórdia de Deus” (1524), que escancarava as portas do céu para os “homens de boa vontade” (ibid, p. 143-167). Nas seitas de origem erasmiana e luterana que compõem a extrema esquerda da Reforma Protestante refloresceram além dos erros anti-trinitários do século IV, o arianismo, modalismo, sabelianismo, com base na negação ou perversão da idéia de natureza.

O único percurso penitencial possível para se conhecer o abraço da Divina Misericórdia é a rejeição do pecado em que estamos imersos e o reconhecimento de uma lei divina que deve ser amada e observada. Esta lei está enraizada na natureza humana e está gravada no coração de cada homem “pelo dedo do Criador” (Rm 2, 14-15). Esse é o supremo critério de julgamento de cada ação e de todas as relações humanas como um todo ou na história.

O termo natureza não é algo abstrato. A natureza humana é a essência do homem, tudo aquilo que ele é antes mesmo de se tornar uma pessoa. O homem é uma pessoa, titular de direitos inalienáveis, porque ele tem uma alma. Ele tem uma alma, porque, diferente de qualquer outro ser vivo, tem uma natureza racional. Natural não é o que nasce dos instintos e desejos do homem, mas o que corresponde às regras da razão, que por sua vez tem de obedecer a uma ordem de princípios objetivos e imutáveis. A lei natural é uma lei racional e imutável, porque imutável enquanto espiritual é a natureza do homem. Todos os indivíduos que pertencem a uma mesma natureza ou espécie agirão ou deverão agir da mesma maneira, porque a lei natural está inscrita na natureza não deste ou daquele homem, mas na natureza humana considerada em si mesma, em sua permanência e estabilidade.

O Cardeal Kasper não crê na existência de uma lei natural universal e absoluta, e no Instrumentum laboris, ou seja, o documento oficial do Vaticano que prepara o Sínodo de outubro, este repúdio da lei natural transparece com evidência, mesmo quando apresentado em termos mais sociológicos do que teológicos. “O conceito de lei natural acaba por ser como tal, hoje em diferentes contextos culturais, altamente problemático, se não completamente incompreensível” (21 n.) – se diz – mesmo porque “hoje em dia, não só no Ocidente, mas cada vez mais em todas as partes da Terra, a pesquisa científica representa um sério desafio ao conceito de natureza. A evolução, a biologia e neurociência, confrontando-se com a idéia tradicional de lei natural, chegaram à conclusão de que essa não pode ser considerada ‘científica'” (n. 22). Ainda segundo o programa kasperiano, contra a lei natural é necessário contrapor o “espírito do Evangelho, que deve comunicar os valores “de um modo compreensível aos homens de hoje”. Se torna portanto necessário “dar uma ênfase muito maior sobre o papel da Palavra de Deus como um instrumento privilegiado na concepção da vida conjugal e familiar. Recomenda-se que se faça maior referência ao mundo bíblico, sua linguagem e formas narrativas. Neste sentido, destaca-se a proposta de tematizar e aprofundar o conceito de inspiração bíblica, da ‘ordem da criação’, como a possibilidade de reler de modo existencialmente mais significativo a ‘lei natural’ (…) Também se recomenda atenção para que se faça com que a juventude assuma o papel de interlocutores diretos das propostas sobre esses temas ” (30 n.).

As consequências inevitáveis dessa nova concepção de moralidade, que serão discutidas pelos participantes do Sínodo, foram tratadas por Vito Mancuso, no jornal Repubblica de 18 de Setembro. A lei natural “é um fardo pesado demais para suportar”; é necessário, portanto, apontar para “um profundo processo de renovação em matéria de ética sexual” que possa levar às seguintes e necessárias aberturas: sim à contracepção; sim ao sexo antes do casamento e sim o reconhecimento de casais homossexuais”.

De frente a esse catastrófico itinerário em direção à imoralidade, como não causaria admiração o fato de cinco cardeais publicarem um livro em defesa da moral tradicional e que outros cardeais, bispos e teólogos, também tenham se associado a esta posição? Contra quem advoga uma nova disciplina doutrinal e pastoral, — escreveu o cardeal Pell — se levanta “uma barreira intransponível”, baseada “na quase completa unanimidade sobre este ponto do qual a  história da Igreja Católica dá provas de mais de dois mil anos” (Prefácio de Juan José Pérez-Soba, Stephen Kampowski, “Além da proposta de Kasper”, Ignatius Press, San 2014, p. 7).

É de se esperar que o confronto seja livre e transparente, sem a imposição de cima para baixo de regras que distorçam ou falsifiquem o jogo. O que está em jogo não é uma simples divergência de opiniões, mas a clarificação da missão da igreja. Há que se rezar para que os bispos fiéis à Tradição não se deixem intimidar e que sejam  capazes de suportar com paciência a virulência dos ataques da mídia e as censuras eclesiais, ainda que sejam injustas e pesadas, que podem vir a ocorrer. “A melhor canção continua a ser a nossa” (p. 8), escreve ainda o Cardeal Pell e Atanásio continua a ser um modelo, em nosso tempo, para aqueles que não se retraem diante do justo combate em defesa da verdade.


Roberto de Mattei – Il Foglio
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Fratresinunum / Padre Luis Fernando

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