As dores
físicas padecidas por Cristo na sua Paixão podem ser representadas em
crucifixos, quadros e mesmo filmes. Entretanto, só faremos uma vaga ideias da
dores que sofreu na sua alma, ainda maiores que o sofrimento físico, à custa de
muita meditação. E disto que o Venerável Cardeal Newman (1801-1890) trata neste
sermão, pregado em 1849.
Cada uma das passagens da vida de Nosso Senhor
possui uma profundidade imensa e proporciona matéria inesgotável de meditação.
Tudo o que lhe diz respeito é infinito; e o que à primeira vista divisamos não
é mais que a superfície do que começa na eternidade e na eternidade acaba.
Seria, pois, temerário, para quem não é santo nem doutor, querer comentar os
seus atos e as suas palavras a não ser por via da meditação. Mas a meditação e
a oração mental são tão necessárias aos que desejam alimentar em si a fé e o
amor verdadeiros, que nos será sem dúvida permitido, caros irmãos, deter aqui a
nossa atenção, e, tomando por guia os santos que nos precederam nesta reflexão,
discorrer sobre temas que na verdade mais convidam à adoração do que ao exame.
Certos tempos do ano convidam-nos a estudar
detidamente, e o mais perto possível, as passagens mais sagradas da história
evangélica. E o da Semana Santa em particular. Prefiro correr o risco de
tratá-la de modo insuficiente ou convencional a furtar-me à sugestão deste
tempo sagrado. Vou hoje, portanto, voltar as vossas atenções, segundo o piedoso
costume da Igreja, para um tema que faria recuar muitos pregadores – mas que
convém particularmente a estes dias, e no qual sem dúvida muitos jamais
pensaram: os sofrimentos padecidos pelo Senhor na sua alma sem mancha.
Bem sabeis, caros irmãos, que o Senhor, sendo Deus,
era também perfeito homem; que tinha portanto não somente um corpo, mas uma
alma igual à nossa, embora isenta de toda a mancha. Não se encarnou num corpo
sem alma – Deus seja louvado! –, pois isso não teria sido tornar-se homem. Como
teria santificado a nossa natureza, se não a tivesse assumido de verdade? O
homem destituído de alma estaria no mesmo nível dos animais selvagens; mas o
Senhor vinha salvar uma raça capaz de obedecer-lhe e glorificá-lo, dotada de
imortalidade, embora tivesse perdido o acesso à eterna bem-aventurança.
O homem foi criado à semelhança de Deus e essa
semelhança encontra-se na alma; quando, pois, o seu Criador, por uma
condescendência inexprimível, quis revestir-se da natureza humana, tomou uma
alma a fim de tomar um corpo; para unir-se a um corpo de homem, tomou primeiro
uma alma. Tomou os dois ao mesmo tempo, mas nessa ordem: primeiro a alma e
depois o corpo. Criou Ele próprio a alma que tomou; mas o corpo, tomou-o da
sagrada carne da sua Mãe, a Virgem.
Tornou-se, portanto, perfeito homem, com corpo e
alma. E assim como tomou um corpo de carne e nervos sujeito ao sofrimento e à
morte, tomou uma alma sensível não só aos sofrimentos físicos, mas capaz de
experimentar as dores e tristezas peculiares aos homens. A sua missão
expiatória não foi apenas sofrida no seu corpo; também o foi – pensemos nisto!
– na sua alma, na sua alma de homem.
Nos dias solenes que se vão seguir, seremos
especialmente chamados, caros irmãos, a considerar os sofrimentos corporais de
Cristo, a sua prisão, as suas idas e vindas de um lugar a outro; os golpes que
recebeu, as feridas, a flagelação; os espinhos, a cruz, os cravos... Todas
essas coisas estão resumidas para nós no crucifixo, todas a um só tempo se
acham representadas na carne sagrada que pende diante dos nossos olhos: a
meditação torna-se fácil. Não acontece o mesmo com os sofrimentos da alma do
Senhor. Não poderão ser pintados aos nossos olhos, não poderão ser devidamente
sondados, pois excedem os sentidos e o pensamento ao mesmo tempo; e, contudo,
precederam os seus sofrimentos corporais. A agonia – sofrimento da alma e não
do corpo – foi o primeiro ato do seu terrível sacrifício: Minha alma está
triste até a morte (1), disse Ele. Sim, se Ele sofreu no seu corpo, na
realidade sofreu na sua alma, pois o corpo não faz mais que transmitir o
sofrimento à verdadeira sede e recipiente da angústia.
(1) Mt 26, 38.
Vem muito a propósito insistir neste ponto. Quero
dizer que não era o corpo que sofria, mas a alma no corpo; era a alma, e não o
corpo, a sede dos sofrimentos do Verbo Eterno. Considerai que não pode haver
dor real, mesmo quando há aparência de sofrimento, se não existe nenhuma
sensibilidade interna, nenhum espírito que possa sediá-la. A árvore, por
exemplo, é dotada de vida, tem órgãos e cresce; pode ser ferida e maltratada,
secar e morrer; mas não pode sofrer, pois não tem espírito nem princípio
sensível. Ao contrário, a dor será possível onde for encontrado esse princípio
imaterial, e será tanto maior quanto mais perfeito o princípio. Se não
tivéssemos espírito, seríamos tão insensíveis quanto as árvores; se não
tivéssemos alma, sofreríamos apenas como os animais; mas, sendo homens,
sentimos a dor de um modo mais vivo, como convém aos seres dotados de alma.
Os seres vivos são, pois, mais ou menos sensíveis
de acordo com o espírito que se encontra neles; os animais são-no muito menos
que o homem, porque não podem pensar o que sentem: não têm nenhuma
inteligência, nenhuma consciência direta dos seus sofrimentos. O que nos torna
a dor tão intolerável é que não podemos desviar dela o pensamento enquanto a
estamos sentindo. Lá a temos, bem diante de nós, reinando sobre o nosso
espírito, atraindo o nosso pensamento como um ímã. Tudo o que dela nos distrai
tem por efeito aliviá-la e acalmá-la: é por isso que os nossos amigos se
esforçam por distrair-nos quando sofremos, pois a distração é justamente uma
espécie de alívio. Às vezes, conseguem-no, se a dor é leve, e nós deixamos de
certo modo de sentir a dor que ainda sofremos. Pela mesma razão, acontece que,
freqüentemente, ao fazermos algum esforço violento, nos machucamos, sem ganhar
consciência da dor, comprovada no entanto pelas cicatrizes. Nas brigas e nas
batalhas, geralmente não é a dor que faz com os que entram em luta percebam que
foram feridos, mas a perda de sangue.
Vou mostrar-vos agora, meus irmãos, como pretendo
aplicar estas reflexões aos sofrimentos do Senhor. Antes, porém, farei uma
outra observação. É a seguinte: não há dor que seja por si mesma intolerável;
só se torna intolerável pela sua duração. Às vezes, a gente exclama que não
agüenta mais um minuto, e o paciente procura deter a mão do cirurgião que
persiste em fazê-lo sofrer: parece-lhe que já suportou tudo o que podia, como
se fosse a continuidade da dor, e não a sua intensidade, que a tornasse
intolerável. Que significa isto, senão que a lembrança da dor experimentada nos
momentos anteriores age sobre a dor que se segue e, de certo modo, a aviva? Se
pudéssemos sofrer isoladamente o terceiro, o quarto ou o vigésimo momento da
dor, e esquecer a série dos que os precederam, a dor desse momento não seria
mais intensa que a primeira e seria tão suportável quanto aquela; o que a torna
insuportável é ser a vigésima e nela se concentrarem todas as outras: a
primeiro, a segunda, a terceira, até a décima nona. Cada novo momento de dor
cresce, cresce sem cessar, pelo peso dos anteriores. Daqui resulta, repito, que
os bichos pareçam geralmente quase insensíveis à dor: é que não estão dotados
de reflexão nem de consciência. Não sabem que existem; não olham para diante
nem para trás; o instante que passa é tudo para eles: passeiam à superfície da
terra, vendo isto ou aquilo, experimentando prazer ou sofrimento, mas tomam as
coisas como vêm e as deixam ir do mesmo modo, tal como o homem faz nos sonhos.
Têm memória, mas não a dos homens inteligentes, pois não estabelecem relações
entre as coisas, são incapazes de coordenar as sensações particulares que vão
experimentando; nada, além dessas sensações, tem para eles realidade ou
substância: um certo número de expressões sucessivas, eis tudo o que sentem. E
é por isso que não sentem a dor, como várias outras coisas, senão de forma
mitigada, a despeito de manifestá-la externamente. É o fato de perceber
intelectualmente a dor como um todo que se difunde através de momentos
sucessivos que dá a essa dor a sua força e a sua particular acuidade. E só a
alma, de que o animal está privado, é capaz de tal compreensão.
Aplicai agora isto aos sofrimentos do Senhor.
Estais lembrados de que lhe ofereceram vinho com mirra no momento de o
crucificarem? Não o quis beber; e por quê? Porque essa bebida lhe teria
entorpecido o espírito, e Ele havia decidido experimentar a dor em toda a
plenitude. Isto revela, meus irmãos, o caráter dos seus sofrimentos: Jesus
tê-los-ia voluntariamente evitado, se tal tivesse sido a vontade de seu Pai: Se
é possível – dissera – afasta de mim este cálice (2). Mas não sendo isso
possível, perguntou serenamente ao Apóstolo que o queria subtrair ao suplício:
Não hei de beber o cálice que o Pai me deu? Já que devia sofrer, entregava-se
ao sofrimento, e não viera para sofrer o menos possível; não se desviou da dor,
antes lhe fez frente: desafiou-a, se posso dizer, a fim de que ela deixasse
cabalmente a sua marca nEle, em cada instante.
(2) Mt 26, 39.
E assim como os homens, superiores aos animais,
estão mais sujeitos à dor por causa do espírito que neles reside e que dá
substância a essa dor, assim Nosso Senhor experimentou a dor no seu corpo com
uma consciência – e portanto, com uma vivacidade, uma intensidade e uma unidade
de percepção – que nenhum de nós pode sequer vislumbrar, de tal modo tinha Ele
a alma plenamente em seu poder, completamente livre de qualquer distração,
inteiramente ligada à dor, absolutamente entregue e submetida ao sofrimento.
Pode-se assim dizer que o Senhor sofreu integralmente a sua Paixão, em todos os
instantes.
Lembrai-vos de que o nosso bem-amado Senhor,
inteiramente homem, se distinguia de nós por um aspecto: havia nEle um poder
mais alto que a sua alma, um poder que governava a sua alma, pois era Deus. A
alma dos outros homens está submetida aos desejos, aos sentimentos, aos impulsos,
às paixões, às perturbações que lhe são próprias, ao passo que a alma do Senhor
não estava submetida senão à sua divina pessoa. Nada chegava à sua alma por
efeito súbito do acaso; jamais Ele foi encontrado desprevenido; nada o atingiu
sem que Ele o tivesse querido. O seu espírito jamais se afligiu, temeu, desejou
ou se alegrou, sem que Ele tivesse antes querido afligir-se, temer, desejar ou
alegrar-se. Quando sofremos, é porque os agentes exteriores e as emoções
incoercíveis do nosso espírito nos forçam a tal. Sofremos involuntariamente a
disciplina da dor; sofremo-la mais ou menos vivamente, segundo as
circunstâncias; a nossa paciência é posta à prova em menor ou maior grau, e
fazemos o possível para aliviar ou extinguir a dor. Somos incapazes de prever
em que medida ela se abaterá sobre nós, nem por quanto tempo a poderemos
suportar; quando passou, não sabemos dizer ao certo por que sofríamos, nem o
que sofríamos, nem por que não suportamos melhor o nosso fardo.
Deu-se o contrário com Nosso Senhor. A sua divina
pessoa não estava sujeita, não podia estar sujeita e exposta à influência das
suas afeições e sentimentos, a não ser quando o quisesse. Repito que, quando
Ele queria temer, temia; irritava-se quando queria irritar-se; afligia-se
quando queria afligir-se. Não estava exposto à emoção, mas expunha-se
voluntariamente à influência que o devia comover. Por isso, quando resolveu
sofrer as dores da sua Paixão expiatória, fez tudo o que fez segundo a
expressão do Sábio: instanter, com diligência; aplicando nisso todo o seu
poder. Não o fez pela metade; não procurou, como nós, desviar da dor o seu
espírito. Como poderia fazê-lo, Ele que viera para sofrer, Ele que não podia
sofrer senão por sua própria vontade? Jamais falou, retirando depois as suas
palavras; jamais agiu, negando em seguida os seus atos; mas simplesmente falou
e agiu. E disse: “Eu venho fazer a vossa vontade, ó meu Deus; não quisestes
sacrifício nem oferenda, mas formastes-me um corpo”. Tomou um corpo para poder
sofrer; fez-se homem para poder sofrer como os homens; e quando chegou a sua
hora – a hora de Satanás e das trevas –, a hora em que o pecado devia derramar
sobre Ele toda a sua malícia, ofereceu-se a si próprio, inteiro, em holocausto,
em total oblação.
E assim como, estendido sobre a cruz, ofereceu o
seu corpo todo, foi também todo o seu espírito, toda a sua lucidez, toda a sua
sensibilidade, que Ele apresentou aos seus algozes: não uma aceitação virtual
ou uma submissão a contragosto, mas uma intenção presente e absoluta. A sua paixão
foi um ato: a sua energia vital atingiu o auge quando jazia desfalecido e
agonizante. E se morreu, foi por um ato da sua vontade: inclinou a cabeça não
apenas em sinal de resignação, mas de comando: Pai, nas tuas mãos entrego o meu
espírito (3). Pronunciou essas palavras e entregou a sua alma sem, no entanto,
a perder.
(3) Lc 23, 46.
Vedes, meus caros irmãos, que mesmo que Nosso
Senhor tivesse sofrido apenas no seu corpo, e mesmo que tivesse sofrido menos
que os outros homens, teria no entanto sofrido infinitamente mais, já que a dor
deve ser medida pela consciência que se tem dela. Era Deus que sofria; Deus
sofria na sua natureza humana, e os sofrimentos pertenciam a Deus: foram
bebidos, sorvidos até a última gota, porque era Deus que os bebia. Não se
contentou com provar o cálice, mas bebeu – sem atenuá-lo com remédios, como
fazem os homens – a taça toda da angústia. E o que acabo de dizer servirá de
resposta a uma objeção que vou agora formular porque ela existe, talvez em
estado latente, no espírito de alguns, fazendo-os ignorar a parte que a alma de
Nosso Senhor tomou na sua misericordiosa expiação.
Quando começou a sua agonia, o Senhor disse: Minha
alma está triste até a morte. Perguntar-me-eis talvez, caros irmãos, se Ele não
dispunha de certas consolações particulares, impossíveis em outro, que lhe
aliviavam ou amorteciam a penúria da alma, fazendo-o portanto sofrer menos
intensamente que um homem comum. Possuía, por exemplo, o sentimento de
inocência num grau que nenhum outro poderia possuir: assim o atestaram os seus
próprios perseguidores, o próprio Apóstolo que o traíra, os próprios soldados
que o executaram: Condenei o sangue inocente (4), disse Judas; Estou puro do
sangue deste justo (5), declarou Pilatos; Na verdade, esse homem era justo (6),
exclamou o centurião. Se esses homens, pecadores que eram, lhe atestaram a
inocência, quanto mais não haveria de proclamá-la o seu próprio coração! Ora,
se nós mesmos, por mais pecadores que sejamos, sabemos bem que do sentimento da
nossa inocência ou culpa depende a nossa força de resistência à hostilidade e à
calúnia, quanto mais, em Nosso Senhor, o sentimento da sua santidade não devia
compensar os seus sofrimentos e aniquilar a ignomínia a que o submetiam! Além
do mais (direis ainda), Ele sabia que os seus sofrimentos eram breves e que
seriam coroados de alegria, ao passo que a incerteza do futuro é o elemento
mais cruel da angústia humana: não poderia conhecer a ansiedade, pois não havia
incerteza para Ele; nem o abandono ou o desespero, pois jamais foi abandonado.
E isso nos é confirmado por São Paulo, que diz expressamente: diante da alegria
que lhe era prometida, Nosso Senhor “desprezou a vergonha” (7).
(4)
Mt 27, 3.
(5)
Mt 27, 24.
(6)
Lc 23, 47.
(7)
Cfr. Hebr 12, 2.
Sem dúvida, Ele deu provas em todos os seus atos de
uma maravilhosa calma e sangue-frio. Considerai os seus conselhos aos
Apóstolos: Vigiai e orai para não cairdes em tentação; o espírito está pronto,
mas a carne é fraca; ou o que disse a Judas: Amigo, a que vieste? Com um beijo
entregas o Filho do Homem?; ou a Pedro: Todos aqueles que usarem de espada
perecerão pela espada; ou as suas palavras ao homem que lhe bateu na face: Se
falei mal, mostra-me em quê; se falei bem, por que me bates? (8); ou o que disse
à sua Mãe: Mulher, eis o teu filho (9).
(8) Jo 18, 23.
(9) Jo 19, 26.
Tudo isso é verdade, e merece ser frisado, mas está
perfeitamente de acordo com o que acabo de dizer, ou melhor, ilustra-o.
Afirmá-lo, meus irmãos, equivale a constatar que o Senhor (para empregar uma
expressão humana) foi sempre Ele mesmo. O seu espírito era nEle o seu próprio
centro; jamais perdeu, em grau ínfimo que fosse, o seu celeste e perfeito
equilíbrio. O que Nosso Senhor sofreu, sofreu-o porque se expôs a si próprio ao
sofrimento – deliberada e serenamente. Assim como dissera ao leproso: Quero; sê
limpo (10); e ao paralítico: São-te perdoados os teus pecados; e ao centurião:
Eu vou curá-lo (11); e referindo-se a Lázaro: Eu vou despertá-lo do seu sono
(12) – assim também disse: “Agora vou começar a sofrer”, e deu início à sua
Paixão. A sua tranqüilidade não é senão a prova do inteiro domínio que tinha
sobre a sua alma. Tirou no momento oportuno os ferrolhos e as cadeias, abriu as
comportas, e as torrentes invadiram-lhe o coração com todo o ímpeto. Eis o que
São Marcos nos diz dEle, segundo escutou da própria boca de São Pedro, uma das
três testemunhas da oração no horto: Foram, diz São Marcos, a um lugar chamado
Getsêmani: e ele disse aos seus discípulos: Sentai-vos aqui enquanto eu rezo.
Levou consigo Tiago, Pedro e João, e começou a ser invadido pelo pavor e pelo
abatimento (13). Bem vedes como é deliberadamente que age: vai a um certo
lugar, dá uma ordem precisa, retira à sua alma o sustentáculo da divindade – e
logo se abatem sobre Ele o pavor, a angústia, o abandono. Entra em agonia moral
por um ato tão definido como se se tratasse de qualquer sofrimento físico, o
fogo ou a roda.
(10) Mt 8, 3.
(11) Mt 8, 7.
(12) Jo 11, 11.
(13) Mc 14, 32-33.
Vedes, pois, meus caros irmãos, como é fora de
propósito dizer que o Senhor poderia ter sido sustentado nas suas provações
pelo sentimento da sua inocência e pela previsão do seu triunfo, pois as suas
provações consistiram justamente na retirada desse sentimento e dessa previsão,
como de qualquer outro motivo de consolo. O mesmo ato de vontade que entregava
a sua alma a uma angústia, entregava-a ao mesmo tempo a todas as angústias. Não
foi uma luta entre impulsos e idéias contrárias, vindas de fora, mas o efeito
de uma resolução interior. Assim como os homens que se controlam podem
concentrar-se como lhes aprouver num tema ou noutro, assim o Senhor recusou
deliberadamente qualquer conforto, e transbordou de dor. Naquele instante, não
pensava no futuro: pensava apenas no fardo que lhe pesava na alma e que viera
justamente carregar sobre os ombros.
Mas qual será, meus irmãos, esse fardo que Nosso
Senhor teve de carregar quando abriu assim a sua alma à torrente do sofrimento?
Era um fardo que conhecemos bem – ai de nós! –, e que nos é bastante familiar,
mas que representava um tormento inexprimível para Ele. Teve de carregar um
peso que encaramos com tanto à-vontade, tão facilmente, tão naturalmente, que
nos custa imaginá-lo como um grande suplício. Mas, para Ele, tinha o odor da
morte, o odor envenenado da morte. Teve, meus caros irmãos, de carregar o peso
do pecado: teve de carregar os nossos pecados, os pecados do mundo inteiro.
O pecado parece-nos leve, fazemos pouco caso dele,
e não compreendemos por que o Criador o tem em tão grande conta: não
conseguimos acreditar que mereça ser castigado; e, quando já aqui no mundo
recebe o seu castigo, arranjamos para isso uma explicação qualquer, e desviamos
o pensamento. Mas considerai o que o pecado é em si mesmo: é uma rebelião
contra Deus; é o gesto do traidor que procura destronar o seu soberano e
eliminá-lo; é um ato que, para usar uma expressão bem forte, chegaria a
aniquilar o próprio Senhor do mundo, se Ele pudesse ser aniquilado. O pecado é
o inimigo mortal do Altíssimo, de modo que o pecado e Deus não podem permanecer
juntos; e, assim como o Altíssimo expulsa o pecado da sua presença e o lança
nas trevas exteriores, assim, se Deus pudesse ser menos que Deus, seria o
pecado que teria o poder de torná-lo menos Deus.
E notai, caros irmãos, que, quando o Amor
todo-poderoso entrou, pela sua encarnação, no mundo criado e se submeteu às
suas leis, logo esse adversário do bem e da verdade, aproveitando a ocasião,
lançou-se sobre aquela carne divina, agarrou-se a ela e a fez morrer. A inveja
dos fariseus, a traição de Judas e a insensatez do povo não eram mais que o
instrumento ou a expressão do ódio que o pecado sentia pela Eterna Pureza,
desde que, na sua infinita misericórdia pelos homens, Deus se pusera ao seu
alcance. O pecado não lhe podia atingir a Majestade divina, mas podia
assaltá-lo, como Ele próprio o consentiu, por intermédio da humanidade que
assumira. E o desfecho, a morte do Deus encarnado, ensina, meus irmãos, o que é
o pecado em si mesmo, e qual o fardo que ia cair, num dado momento e com todo o
peso, sobre a natureza humana de Deus, quando Ele permitiu que essa natureza
fosse invadida pelo pavor e pela agonia.
Nessa hora tão terrível, portanto, o Salvador do
mundo pôs-se de joelhos, recusando as defesas da sua divindade, afastando os
anjos solícitos, prontos a responder por miríades ao seu apelo; abriu os braços
e descobriu o peito para se expor, na sua inocência, ao assalto do inimigo – um
inimigo cujo hálito era uma peste e cujo abraço era uma agonia. Lá estava o
Senhor de joelhos, imóvel e silencioso, enquanto o demônio impuro lhe envolvia
o espírito numa veste banhada naquilo que o crime humano tem de mais hediondo e
mais atroz. Enquanto invadia a sua consciência, o demônio penetrava-lhe em
todos os seus sentidos, em todos os poros do seu espírito, estendendo sobre Ele
a sua lepra moral, até fazê-lo sentir-se quase transformado naquilo que jamais
poderia ser, naquilo em que o seu inimigo teria querido transformá-lo.
Qual não foi o seu pavor quando, ao contemplar-se,
o Senhor já não mais se reconheceu: quando se sentiu igual a um impuro e
detestável pecador, na sua percepção aguda desse amontoado de corrupções que
lhe choviam sobre a cabeça e escorriam até a extremidade das suas vestes! Qual
não foi o seu espanto quando viu que os seus olhos, as suas mãos, os seus pés,
os seus lábios, eram como membros de um homem mau, e não mais os de um Deus!
Seriam do Cordeiro imaculado essas mãos, outrora inocentes, rubras agora de milhões
de atos bárbaros e sanguinários? Seriam do Cordeiro esses lábios que não mais
pronunciavam orações e louvores, manchados como estavam pelos perjúrios,
blasfêmias e doutrinas diabólicas? Seriam do Cordeiro esses olhos profanados
pelas visões malignas e pelo fascínio dos ídolos, pelos quais os homens
abandonaram o seu adorável Criador? Aos seus ouvidos ressoa o tumulto das
festas e das guerras; o seu coração está gelado pela avareza, crueldade e
ingratidão; a sua própria memória está carregada de todos os pecados cometidos
depois da Queda em todas as regiões do mundo: o orgulho dos antigos gigantes, a
luxúria das cinco cidades, o endurecimento do Egito, a ambição de Babel, a
ingratidão e o desprezo de Israel. Quem não conhece a tortura de uma idéia fixa,
que volta sem cessar, por mais que a queiramos repelir, e que, não podendo
desfazer-nos, nos obsidia? Ou a de um pensamento sufocante e odioso, que de
modo nenhum nos pertence, mas que nos foi imposto de fora para dentro? Ou a de
um fatal conhecimento, adquirido ou não por nossa culpa, mas do qual daríamos
tudo para sermos imediatamente libertados?
Eis os inimigos que, aos milhões, se comprimem em
torno de vós, ó Senhor!, que sobre vós se abatem em nuvens mais numerosas que
as dos gafanhotos, das moscas e das rãs enviadas contra o Faraó. Estão aí todos
os pecados. Os pecados dos vivos, dos mortos e daqueles que ainda não nasceram.
Dos condenados e dos eleitos. Do vosso povo e dos povos estrangeiros. Dos
pecadores e dos santos. E dos vossos bem-amados – dos vossos santos, dos vossos
escolhidos, dos vossos três apóstolos Pedro, Tiago e João –, que também estão
presentes, porém não para vos consolar, mas para vos acabrunhar, “lançando o pó
contra os céus”, como os amigos de Jó, amontoando maldições sobre a vossa
cabeça.
Estão todos aí, menos uma criatura. Uma só não está
aí; uma só. Porque Ela, que nunca teve parte no pecado – Maria, a tua Mãe –,
era a única que vos podia consolar; é por isso que está ausente. Virá para
junto de vós quando estiverdes na cruz; mas, no jardim das Oliveiras,
permanecerá afastada. Foi a vossa companheira e a vossa confidente; trocou
convosco pensamentos e reflexões ao longo de trinta anos: mas o seu ouvido
virginal não poderia captar, nem o seu coração imaculado conhecer o que se
oferece agora à vossa vista. Esse fardo, só Deus mesmo o pode carregar. Às
vezes, mostrastes a alguns dos vossos santos, em imagem, o que representava um
único pecado, tal como aparece à luz da vossa Face (e era a imagem de um pecado
venial, não de um mortal); e eles nos disseram que esse espetáculo quase os ia
matando, que os teria de fato morto, se não tivesse sido desviado logo do seu
olhar. A Mãe de Deus, apesar de toda a sua santidade, ou antes, por causa dela,
não teria podido suportar a vista de um só desses inumeráveis prepostos de
Satanás que vos cercam agora.
Na verdade, tudo isso é a longa história de um
mundo, e só Deus é que pode carregar o seu peso. Esperanças desfeitas, votos
quebrados, luzes extintas, advertências desprezadas, ocasiões perdidas;
inocentes enganados, jovens endurecidos, penitentes que caem de novo, justos
abatidos, velhos sem rumo; sofismas da incredulidade, cegueira das paixões,
obstinação do orgulho, tirania do hábito, verme roedor do remorso, febre do
mundanismo, angústia da vergonha, amargor das decepções, agonia do desespero –
tais são as cenas cruéis, dilacerantes, revoltantes, detestáveis,
enlouquecedoras, que, todas juntas, se oferecem ao Senhor na oração do horto.
As vítimas voluntárias da rebelião – faces transtornadas, lábios convulsos e
frontes sombrias – estão sobre Ele, estão nEle. Ocupam o lugar daquela paz
inefável que não cessou de habitar-lhe a alma desde a sua concepção. Estão
sobre Ele, e parecem quase suas. Ele invoca o seu Pai como se fosse o
criminoso, e não a vítima. A sua agonia toma a aparência da culpabilidade e da
compunção. Faz penitência; confessa-se. Faz um ato de contrição de um modo
infinitamente mais real, infinitamente mais eficaz que todos os santos e todos
os penitentes juntos. Porque Ele é para nós todos a única vítima, o único
holocausto expiatório, o verdadeiro penitente – sem ser no entanto o verdadeiro
pecador.
Levanta-se dolorosamente; volta-se para contemplar
o traidor e o seu bando, que deslizam furtivamente na sombra profunda. Olha e
vê o sangue nas suas vestes, o sangue nas pegadas dos seus pés. De onde vêm
essas primícias da paixão do Cordeiro? As varas dos soldados ainda não lhe
tocaram as espáduas; nem os cravos do carrasco, as suas mãos e pés. Meus
irmãos, Ele derramou o seu sangue antes da hora. Sim, Ele espalhou o seu
sangue. Foi a sua alma agonizante que partiu o invólucro da carne para fazer
brotar esse sangue...
A sua paixão começou dentro dEle próprio. Esse
coração supliciado, sede de ternura e amor, pôs-se a palpitar, a bater com uma
veemência que excede a natureza. As fontes do grande abismo romperam-se (14);
os rios de sangue chocaram-se com tanto ímpeto e furor, que atravessaram as
veias, brotaram pelos poros e formaram um orvalho espesso por toda a superfície
do corpo. Pois as gotas deslizaram, grossas e pesadas, inundando o chão.
(14) Gn 7,11.
Minha alma está triste até a morte... Já se disse,
a respeito da epidemia que atualmente nos aflige (15), que ela começa pela
morte, evidenciando, assim, que não conhece fases nem crises, que toda a
esperança está perdida quando ela se declara, e que o que aparece como evolução
não é senão agonia mortal e processo de dissolução. Assim, num sentido muito
mais elevado, a nossa vítima expiatória começou por essa paixão de dor. E se
não morreu, foi porque a sua vontade todo-poderosa impediu o seu coração de
quebrar-se e a sua alma de separar-se do corpo antes que tivesse sofrido na
cruz. Porque o Senhor ainda não esgotara o cálice da dor, de que a sua fraqueza
natural queria de início desviar-se. A prisão, as acusações, as bofetadas, a
paixão, o julgamento, as zombarias, as idas e vindas de um lugar para outro, a
flagelação, a coroa de espinhos, a lenta subida ao Calvário e a crucifixão –
tudo isso ainda estaria por vir. Seria preciso que passassem lentamente uma
noite e um dia, hora por hora, antes que chegasse o fim, e a crucifixão fosse
consumada.
(15) A cólera (N. do E.).
Depois, quando chegou o momento fixado veio e Ele
consentiu, a sua paixão terminou com a sua alma, como com ela havia começado.
Não morreu de esgotamento corporal nem de dor corporal; seu Coração supliciado
partiu-se, e Ele entregou o espírito ao seu Pai.
Ó Coração de
Jesus, ó Todo Amor, eu vos ofereço estas humildes súplicas por mim mesmo e por
todos que se unem a mim em espírito para vos adorar. Ó santíssimo Coração de
Jesus, proponho-me renovar e oferecer-vos estes atos de adoração e estas
orações por mim mesmo, miserável pecador que sou, e por todos os que estão
associados a mim na vossa adoração. Proponho-me renová-la em todos os
instantes, até o meu último alento. Eu vos encomendo, ó meu Jesus, a Santa
Igreja, vossa amada Esposa e nossa verdadeira Mãe, as almas que praticam a
justiça, todos os pobres pecadores; os aflitos, os moribundos e todo o gênero humano.
Não permitais que o vosso sangue tenha sido derramado por eles em vão. E
dignai-vos enfim aplicar os méritos desse sangue para o consolo das almas do
Purgatório, especialmente daquelas que, no correr de sua vida, vos adoraram com
devoção.
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Fonte: Site Newman Reader
Disponível
em: Quadrante
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