A liturgia deste domingo nos
confronta com o ensinamento de Jesus sobre o amor fraterno, supremo mandamento
da vida cristã. Trata-se do ponto fulcral da prática cristã. As leituras
apresentam dois aspectos principais: o que é amar e a quem se dirige nosso
amor? As duas perguntas fundem-se numa só compreensão: quem ama descobre logo a
quem amar.
Quantas vezes nós escutamos que
a palavra “católico” significa “universal”? Várias. A Igreja de Cristo nasceu
selada pela universalidade. Ela não devia estar restringida aos judeus. “Ide
por todo o mundo” – disse Jesus. Ninguém nasce cristão, é feito cristão no
sacramento do batismo. Quando somos gerados para essa vida nova em Cristo,
recebemos imediatamente essa nota característica: universalidade. Nesse
sentido, o coração do católico abraça a todos, a começar pelos católicos. Não
se pode viver um amor universal desvinculado do amor às pessoas com as quais
convivemos. Fico impressionado com algumas atitudes, por exemplo, em relação ao
ecumenismo: somos muito tolerantes com os irmãos chamados evangélicos e pouco
tolerantes com irmãos católicos caso tenham outra maneira de ver as coisas. Que
tenhamos por certo: é totalmente lícito pertencer a distintas manifestações da
catolicidade, a esse ou àquele movimento, a essa ou àquela pastoral, a essa ou
àquela organização. Também é lícito e maravilhoso que entre os católicos haja
várias opções temporais: esse ou aquele partido político, essa ou outra equipe
de futebol, essa ou aquela filosofia. A catolicidade admite a unidade formada
pela variedade. Unidade na fé, nos sacramentos, na moral, na obediência ao Papa
e aos bispos em comunhão com ele; variedade em todas as outras coisas.
Não estou fugindo da passagem
do evangelho de hoje ao fazer essas afirmações tão amigas da liberdade. O
samaritano, a diferença do sacerdote e do levita, “fez o bem sem olhar a quem”,
simplesmente moveu-se de compaixão e começou a agir pelo bem daquele pobre
homem que tinha caído na mão de malfeitores. O samaritano era um homem de
coração e deixava que a compaixão o movesse a ajudar o próximo. Aprendamos
desse homem: tenhamos um coração compassivo, a começar pelos nossos irmãos.
Peçamos a Deus a graça de não ficarmos insensíveis diante das misérias da
humanidade, das vicissitudes dos nossos irmãos, da pobreza, da falta de
educação, da falta de vida espiritual. O bom samaritano, estando de viagem,
soube atrasar os seus próprios projetos para realizar uma obra de misericórdia;
não só viu as feridas daquele pobre homem, mas dedicou-lhe tempo e pôs-se a
curá-las; não só o levou a uma hospedaria, mas até pagou as despesas.
Jesus nos quer ensinar uma
caridade que não é simplesmente uma espécie de filantropia, já que brota de um
coração compadecido que faz ver quais são as verdadeiras necessidades dos
nossos irmãos, ou seja, nos faz compreender os outros. Às vezes, o coração
compassivo, movido pela caridade, nos dirá que em lugar de dar alguma moeda a
um mendigo, o escutemos com carinho; outras vezes, a caridade que vem de Deus e
que habita nossos corações nos dirá que não é só dar atenção e dizer que vai
rezar por essa pessoa, mas também ajudá-la economicamente; outras ainda, o amor
compassivo nos mandará fazer ambas as coisas. Quando estamos atentos ao que
amor pede de nós em cada momento, não nos perguntaremos por uma suposta
obrigação de caridade, mas a grande questão será a necessidade do outro. A
pergunta não é “estou obrigado ou não a fazer isso?”, mas “o que essa pessoa necessita
nesse momento?”. Na primeira pergunta está o nosso “eu”, na segunda está o “tu”
dos outros. A caridade vai ao encontro, não é egoísta. A caridade alarga as
nossas perspectivas e nos faz ter uma mentalidade universal. Por outro lado,
uma visão “católica” das coisas nos oferece uma percepção aprimorada das
distintas situações e nos faz ser mais eficazes à hora de ajudar os outros.
Comentário dos textos bíblicos
Leituras: Dt 30,10-14; Cl 1,15-20; Lc 10,25-37
O evangelho, em (Lc 10, 25-37), apresenta Jesus a falar com um doutor
da lei sobre o primeiro mandamento: o amor a Deus e ao próximo. O doutor
interroga o Mestre, não por desejo de aprender, mas “para O experimentar.” “E
quem é o meu próximo?”
Em resposta, Jesus conta a história do samaritano que socorre o homem
caído nas mãos dos ladrões e deixado meio morto ao lado da estrada. Este é o
meu próximo: um homem, um homem qualquer, alguém que necessita de mim. O Senhor
não introduz nenhuma especificação de raça, amizade ou parentesco. O nosso
próximo é qualquer pessoa que esteja perto de nós e necessite de ajuda. Nada se
diz do seu país, nem da sua cultura, nem da sua condição social: um homem
qualquer
No caminho da nossa vida, encontraremos pessoas feridas, despojadas de
tudo e meio mortas, da alma e do corpo. A preocupação por ajudar os outros, se
estamos unidos ao Senhor, tirar-nos-á do nosso caminho rotineiro, de todo o
egoísmo, e dilatará o nosso coração preservando-nos da mesquinhez.
Encontraremos pessoas cobertas de dor pela falta de compreensão e de carinho,
ou necessitadas dos meios materiais mais indispensáveis; feridas por terem
sofrido humilhações que vão contra a dignidade humana; despojadas, talvez, dos
direitos mais fundamentais: situações de misérias que bradam aos céus. O
cristão nunca pode passar ao largo, como fizeram alguns personagens da
parábola.
Também encontraremos diariamente esse homem que foi deixado meio morto
porque não lhe ensinaram as verdades mais elementares da fé, ou porque lhes
arrancaram essas verdades mediante o mau exemplo ou através de grandes meios
modernos de comunicação, postos a serviço do mal. Não podemos esquecer, em
momento algum, que o bem supremo do homem é a fé, superior a todos os bens
materiais e humanos.
Nesta passagem do Evangelho encontramos outro ensinamento fundamental:
a Lei de Deus não é algo negativo, “não fazer”, mais algo claramente positivo,
é amor; a santidade, a que todos os batizados estão chamados, não consiste
tanto em não pecar, mas em amar, em fazer coisas positivas, em dar frutos de
amor de Deus. Quando o Senhor nos descreve o Juízo Final realça esse aspecto
positivo da Lei de Deus (Mt 25, 31-46). O prêmio da vida eterna será concedido
aos que fizeram o bem. Nesta parábola do bom samaritano, Santo Agostinho
identifica o Senhor com o bom samaritano, e o homem assaltado pelos ladrões com
Adão, origem e figura de toda a humanidade caída. Levado por essa compaixão e
misericórdia, desce à terra para curar as chagas do homem, fazendo-as suas
próprias (Is 53, 4; Mt 8, 17; 1Pd 2, 14; 1 Jo 3, 5).
Essa mesma compaixão e amor de Jesus Cristo temos de sentir nós, os
Cristãos, que devemos ser discípulos Seus, para não passar nunca do lado oposto
perante as necessidade alheias. Uma concretização do amor ao próximo
encontramos nas Obras de Misericórdia, que se chamam assim porque não são
devidas por justiça. São quatorze: sete espirituais e sete corporais. As
espirituais abarcam: ensinar a quem não sabe, dar bom conselho a quem dele
tenha necessidade, corrigir a quem erra, perdoar as injúrias, consolar o
triste, sofrer com paciência as adversidades e as fraquezas do próximo, e rogar
a Deus pelos vivos e pelos mortos. As corporais são: visitar os doentes, dar de
comer ao faminto, dar de beber ao que tem sede, redimir o cativo, vestir o nu,
dar pousada ao peregrino, e enterrar os mortos.
O amor ao próximo é muito concreto. “Com razão se pode dizer que é o
próprio Cristo quem nos pobres levanta a voz para despertar a caridade dos seus
discípulos” (GS, 88).
O samaritano não tem uma compaixão puramente teórica, ineficaz. Antes
de mais nada aproximou-se, que é o que devemos começar por fazer perante a
necessidade do próximo.
Nem sempre se tratará de atos heróicos, difíceis; freqüentemente,
serão coisas simples, muitas vezes pequenas, “pois essa caridade não deve ser
procurada unicamente nos acontecimentos importantes, mas, sobretudo, na vida
corrente” (GS, 38)
Jesus conclui o ensinamento com uma palavra cordial, dirigida ao
doutor: “Vai e faze tu o mesmo”. Sê o próximo inteligente, ativo e compassivo
com todo aquele que precisar de ti. Pois, como ensina São Tomás, “quando é
amado o homem, é amado Deus já que o homem é imagem de Deus”. Quem ama de
verdade Deus ama também os seus iguais, porque verá neles os seus irmãos,
filhos do mesmo Pai, redimidos pelo mesmo sangue de Nossa Senhor Jesus Cristo:
“Temos este mandamento de Deus: que o que ame a Deus ame também o seu irmão” (1
Jo 4, 21). Há, porém, um perigo! Se amamos o homem pelo homem, sem referência a
Deus, este amor converte-se em obstáculo que impede o cumprimento do primeiro
preceito; e então deixa também de ser verdadeiro amor ao próximo. Mas o amor ao
próximo por Deus é prova patente de que amamos a Deus: “se alguém diz: amo a
Deus, mas despreza o seu irmão, é um mentiroso” (1 Jo 4, 20).
PARA REFLETIR
A Palavra de Deus proposta neste Domingo é surpreendente. Tudo começa
com uma pergunta que, apesar de mal intencionada, é válida, necessária, sempre
urgente; pergunta que brota do mais profundo da nossa angústia: “Que devo fazer
para receber a vida? Como devo viver para viver de verdade, para que minha vida
valha a pena e não seja uma paixão inútil?” Apesar de um mundo que procura nos
distrair dessa pergunta, não há como sufocá-la, como fazer de conta que ela não
perturba nosso coração! Pelo amor de Deus, responda o mundo tão animado e cheio
de distrações: onde está a felicidade duradoura? Onde está a vida, a realização
da existência? Que caminho seguir, para ser feliz de verdade?
Jesus indica o caminho: “O que está escrito na Torah? Como lês?” –
Aqui, há algo importantíssimo. Jesus está falando com um escriba judeu; por isso,
manda-o à Lei de Moisés. Uma coisa ele quer deixar clara: a vida não está no
homem, mas na vontade de Deus! O homem somente será feliz, somente encontrará a
vida se procurar lealmente a vontade de Deus. Por isso, no Salmo 118, o
Salmista pede, de modo comovente: “Sou apenas peregrino sobre a terra; de mim
não oculteis vossos preceitos!” Perder de vista o projeto de Deus para nós, é
perder de vista a própria vida, o sentido da existência! Não esqueçamos, para
não sermos enganados: fechados para a vontade do Senhor, não encontraremos a
realização verdadeira! E este é o drama do mundo atual, que se julga maior de
idade e, portanto, independente de Deus. Na verdade, é um mundo ateu, porque é
um mundo auto-suficiente, que só confia de verdade na sua filosofia, na sua
tecnologia, na sua racionalidade pagã e na sua moral fechada para o Infinito!
Ao invés, Jesus nos força a abrir o coração para o Alto, para o
Altíssimo; convida-nos a respirar fundo o ar novo e puro, que brota das narinas
de Deus e dá novo alento ao ser humano cansado e envelhecido pelo pecado!
“Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração e com toda a tua alma, com
toda a tua força e com toda a tua inteligência”. Esta abertura para Deus dilata
e realiza o coração humano, que foi criado para dar e receber amor, amor na
relação com Deus, que desemboca, generoso, no amor em relação aos outros:
“Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. – “Faze isto e viverás!” Os filósofos
ateus dos séculos XIX e XX – de Feuerbach a Sartre – gostavam de insistir que
Deus escraviza o homem, desumaniza a humanidade, impedindo-a de ser ela
própria, de ser feliz. É mentira! É um triste mal-entendido! A verdadeira
abertura para Deus nos faz crescer, nos faz superar nossos estreitos limites,
nos lança de verdade em relação a Deus e nos compromete com os outros! Os
mandamentos de Deus realizam o mais profundo anseio do nosso coração, que é a
vida: “Converte-te ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração e com toda a tua
alma! Na verdade, o mandamento que hoje te dou não é difícil demais, nem está
fora do teu alcance!” O próprio Deus – acreditem – nos deu o desejo e a
capacidade de amar ao nos criar à sua imagem!
Jesus insiste ainda em algo muito importante: nossa relação com Deus,
se é verdadeira, deve abrir-nos aos irmãos: “Quem é o meu próximo?” – A
resposta de Jesus é clara: nosso próximo são aqueles que a vida fez próximos de
nós. Nosso próximo são os próximos! Ou os amamos de verdade, ou não há próximo
para amar. O próximo viraria uma idéia abstrata e sem valor algum. Não
esqueçamos: o próximo tem rosto, tem cheiro, tem problemas e, às vezes, nos
incomoda, nos atrapalha, nos desafia, nos causa raiva e contradição. É a este
próximo, concreto como uma rocha, que eu devo amar! Mas, atenção: um judeu deve
amar o próximo como a si mesmo: é isto que está escrito na Lei. Um cristão,
não! Ele deve amar o próximo como Jesus: até dar a vida: “Amai-vos como eu vos
amei. Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, façais vós também!” (Jo
13,34.15).
Recordemos que o próprio Senhor nos deu o exemplo; ele mesmo se fez
próximo de nós: sendo Deus se fez homem, veio viver a nossa aventura, partilhar
a nossa sorte, para nos dar a sua vida: “Cristo é a imagem do Deus invisível…
porque Deus quis habitar nele com toda a sua plenitude”. Ele não viu nossa
miséria de longe, não nos amou à distância: desceu e veio viver a nossa vida,
fazendo-se Deus-conosco! Por isso, ele é o verdadeiro Bom Samaritano, o
verdadeiro modelo daquele que “se faz próximo” do próximo: viu-nos à margem do
caminho da vida; viu-nos roubados e despojados de nossa dignidade de imagem de
Deus; viu-nos totalmente perdidos… Ele se compadeceu de nós, desceu à nossa
miséria, fez-se homem, para nos curar e elevar. Nele, se revela a plenitude do
amor a Deus e aos outros: “Deus quis por ele reconciliar consigo todos os seres
que estão na terra e no céu, realizando a paz pelo sangue da sua cruz”. Então,
somente em Cristo, encontramos a vida verdadeira e a realização pela qual tanto
almejamos. Só ele nos reconcilia com Deus e no abre uns para os outros,
aproximando-nos no seu amor!
Quando os cristãos não conseguem viver isso, quando não conseguem
deixar que essa realidade maravilhosa transpareça, é porque estão sendo
infiéis, estão sendo uma caricatura de discípulos do Senhor Jesus. Que responsabilidade
a nossa! Saiamos daqui, hoje, com essa pergunta: quem são os meus próximos? Que
tenho feito com eles? Pensemos em Jesus que veio ser próximo, e ainda se faz
próximo hoje, em cada Eucaristia. Pensemos nele: “Vai, tu também, e faze o
mesmo!” Amém.
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