Na Solenidade da Imaculada Conceição somos
convidados a equacionar o tipo de resposta que damos aos desafios de Deus. Ao
propor-nos o exemplo de Maria de Nazaré, a liturgia convida-nos a acolher, com
um coração aberto e disponível, os planos de Deus para nós e para o mundo.
A Maria, Deus propõe que aceite ser a mãe de
um “filho” especial… Desse “filho” diz-se, em primeiro lugar, que Ele se
chamará “Jesus”. O nome significa “Deus salva”. Além disso, esse “filho” é
apresentado pelo anjo como o “Filho do Altíssimo”, que herdará “o trono de seu
pai David” e cujo reinado “não terá fim”. As palavras do anjo levam-nos a 2 Sm
7 e à promessa feita por Deus ao rei David através das palavras do profeta
Nathan. Esse “filho” é descrito nos mesmos termos em que a teologia de Israel
descrevia o “messias” libertador. O que é proposto a Maria é, pois, que ela
aceite ser a mãe desse “messias” que Israel esperava, o libertador enviado por
Deus ao seu Povo para lhe oferecer a vida e a salvação definitivas.
A resposta de Maria começa com uma objeção que
sempre faz parte dos relatos de vocação do Antigo Testamento (cf. Ex 3,11;
6,30; Is 6,5; Jer 1,6). É uma reação natural de um “chamado”, assustado com a
perspectiva do compromisso com algo que o ultrapassa; mas é, sobretudo, uma
forma de mostrar a grandeza e o poder de Deus que, apesar da fragilidade e das
limitações dos “chamados”, faz deles instrumentos da sua salvação no meio dos
homens e do mundo.
Diante da “objeção”, o anjo garante a Maria
que o Espírito Santo virá sobre ela e a cobrirá com a sua sombra. Este Espírito
é o mesmo que foi derramado sobre os juízes (Oteniel – cf. Jz 3,10; Gedeão –
cf. Jz 6,34; Jefté – cf. Jz 11,29; Sansão – cf. Jz 14,6), sobre os reis (Saul –
cf. 1 Sm 11,6; David – cf. 1 Sm 16,13), sobre os profetas (cf. Maria, a
profetisa irmã de Aarão – cf. Ex 15,20; os anciãos de Israel – cf. Nm 11,25-26;
Ezequiel – cf. Ez 2,1; 3,12; o Trito-Isaías – cf. Is 61,1), a fim de que eles
pudessem ser uma presença eficaz da salvação de Deus no meio do mundo. A
“sombra” ou “nuvem” leva-nos também à “coluna de nuvem” (cf. Ex 13,21) que
acompanhava a caminhada do Povo de Deus em marcha pelo deserto, indicando o
caminho para a Terra Prometida da liberdade e da vida nova. A questão é a
seguinte: apesar da fragilidade de Maria, Deus vai, através dela, fazer-Se
presente no mundo para oferecer a salvação a todos os homens.
O relato termina com a resposta final de
Maria: “eis a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra”.
Afirmar-se como “serva” significa, mais do que humildade, reconhecer que se é
um eleito de Deus e aceitar essa eleição, com tudo o que ela implica – pois, no
Antigo Testamento, ser “servo do Senhor” é um título de glória, reservado
àqueles que Deus escolheu, que Ele reservou para o seu serviço e que Ele enviou
ao mundo com uma missão (essa designação aparece, por exemplo, no
Deutero-Isaías – cf. Is 42,1; 49,3; 50,10; 52,13; 53,2.11 – em referência à
figura enigmática do “servo de Jahwéh”). Desta forma, Maria reconhece que Deus
a escolheu, aceita com disponibilidade essa escolha e manifesta a sua
disposição de cumprir, com fidelidade, o projeto de Deus.
O testemunho de Maria é um testemunho
questionante, que nos interpela fortemente… Que atitude assumimos diante dos
projetos de Deus: acolhemo-los sem reservas, com amor e disponibilidade, numa
atitude de entrega total a Deus, ou assumimos uma atitude egoísta de defesa
intransigente dos nossos projetos pessoais e dos nossos interesses egoístas?
É possível alguém entregar-se tão cegamente a
Deus, sem reservas, sem medir os prós e os contras? Como é que se chega a esta
confiança incondicional em Deus e nos seus projetos? Naturalmente, não se
chega a esta confiança cega em Deus e nos seus planos sem uma vida de diálogo,
de comunhão, de intimidade com Deus. Maria de Nazaré foi, certamente, uma
mulher para quem Deus ocupava o primeiro lugar e era a prioridade fundamental.
Maria de Nazaré foi, certamente, uma pessoa de oração e de fé, que fez a
experiência do encontro com Deus e aprendeu a confiar totalmente n’Ele.
COMENTÁRIOS
DOS TEXTOS BÍBLICOS
Textos: Gn 3,9-15.20; Ef 1,3-6.11-12; Lc 1,26-38
A primeira leitura mostra (recorrendo à
história mítica de Adão e Eva) o que acontece quando rejeitamos as propostas de
Deus e preferimos caminhos de egoísmo, de orgulho e de auto-suficiência… Viver
à margem de Deus leva, inevitavelmente, a trilhar caminhos de sofrimento, de
destruição, de infelicidade e de morte.
O texto de Gn 3,10-11 alerta sobre a
inviabilidade atual do propósito divino de habitar com a criação, pois o casal
humano, em decorrência do pecado, se esconde de Deus. E como o ser humano é o
responsável pela criação, então, esta, em sua totalidade, fica afastada de
Deus. Por isso, para a fé de Israel, a presença divina na criação somente
poderá ser eficaz quando o ser humano parar de se esconder de Deus, isto é,
quando a humanidade ouvir a voz daquele que a interpela: “Onde estás?” (Gn
3,9). A escuta da voz de Deus possibilitará ao ser humano o arrependimento,
que, no sentido bíblico, significa “retorno” à aliança ou à “colaboração”
(trabalhar junto) com Deus.
O pecado, muito mais que uma revolta contra
Deus, é um aviltamento da natureza do ser humano. O chamado de Deus procura
reconduzir a humanidade – e, com esta, a criação inteira – à sua própria
dignidade. Assim, o arrependimento (ou a colaboração) do ser humano significa a
criação retornando ao seu verdadeiro propósito.
Quando cada ser humano se arrepender, então,
manifestar-se-á toda a beneficência da criação. E quanto mais se retarda o
arrependimento do ser humano, mais demora a presença divina na criação. Assim
sendo, a plena manifestação da criação em sua beneficência depende da decisão
humana. O mundo vindouro não significa apenas a vinda de Jesus, mas é também o
retorno do ser humano para Deus. É o retorno do Criador (cf. Is 52,8) e da
criatura.
A segunda leitura garante-nos que Deus tem um
projeto de vida plena, verdadeira e total para cada homem e para cada mulher –
um projeto que desde sempre esteve na mente do próprio Deus. Esse projeto,
apresentado aos homens através de Jesus Cristo, exige de cada um de nós uma
resposta decidida, total e sem subterfúgios.
Esse texto bíblico consiste num hino
cristológico (a Cristo) com forte teor batismal. Seu tema principal é a obra de
Deus por meio de Cristo. As consequências dessa obra no ser humano são a
filiação divina, o perdão dos pecados, o tornar-se membro do Corpo de Cristo e
a ação santificadora do Espírito Santo. Todos esses temas fazem parte de uma
catequese batismal. Portanto, o hino também esclarece o sentido do batismo para
nós.
À luz desse texto, fica esclarecido que, antes
de tudo, a eleição (vocação à filiação divina) não é algo acidental. A
encarnação não aconteceu para resolver o problema do pecado humano. Quer dizer,
a encarnação não foi determinada pelo ser humano, não é consequência de suas
ações. A eleição que recebemos para nos tornar filhos de Deus faz parte do
propósito divino desde toda a eternidade. A eleição do ser humano em Cristo é
anterior à criação. Deus tomou a iniciativa de nos tornar filhos no Filho.
Por isso, desde toda a eternidade, cada ser
humano é chamado a ser “sem mancha” (imaculado, v. 4). Esse termo (ámomos), no
Antigo Testamento, designava o cordeiro do sacrifício (cf. Lv 1,3.10) e muitas
vezes é traduzido em português por “sem defeito” ou “irrepreensível”, mas
literalmente significa “sem mancha” ou “imaculado”. No Novo Testamento, o mesmo
termo se refere à vida daquele que se une a Cristo.
É fato que o ser humano sempre pecou, apesar
de ter recebido um chamado, desde toda a eternidade, para ser santo e
imaculado. E já que “todos pecaram” (Rm 3,23; 5,12), a graça da encarnação (a
vida inteira de Jesus) se tornou redenção, libertação da tirania do pecado que
escraviza o ser humano.
Como a graça é anterior ao pecado, pois é
anterior à criação (v. 4), a eleição significa que somos atingidos pela graça
desde o primeiro momento de nossa existência. Disso decorre que a vivência do
batismo é a adesão consciente e livre à graça da eleição eterna que se opõe ao
pecado e realiza em nós aquilo a que fomos chamados: ser santos e imaculados
diante de Deus.
O Evangelho apresenta a resposta de Maria ao
plano de Deus. Ao contrário de Adão e Eva, Maria rejeitou o orgulho, o egoísmo
e a auto-suficiência e preferiu conformar a sua vida, de forma total e radical,
com os planos de Deus. Do seu “sim” total, resultou salvação e vida plena para
ela e para o mundo.
O texto apresenta-nos um modelo de colaboração
no propósito de Deus para a salvação humana. O texto enfatiza dois aspectos
principais: a presença eficaz de Deus, que realiza o seu propósito, e a
colaboração humana, que diz “sim”. Em Maria, vemos esses dois aspectos se
realizarem. A atitude dela se torna, para nós, um paradigma a ser seguido.
O texto é bem estruturado e nos apresenta a
realização das promessas feitas ao povo de Israel no passado. Todo o discurso
está permeado de alusões às profecias messiânicas do Antigo Testamento (cf. Is
7,14; 49,6; 2Sm 7,12-14). Com isso se quer conectar o cumprimento das promessas
salvíficas ao menino cujo nascimento constitui o início de sua efetivação.
Alguns termos são de extrema importância e nos
ajudam a compreender melhor o sentido profundo desse texto:
A saudação contém duas expressões importantes:
“cheia de graça”, uma alusão à alegria messiânica que ora se inicia, e “o
Senhor está contigo”. Esta última expressão não é dita a pessoas em
circunstâncias normais, ainda que possa haver exceções (cf. Rt 2,4), mas se
refere ao povo de Deus em sua totalidade ou a alguma pessoa que Deus tenha
convocado para realizar um trabalho árduo. A presença eficaz de Deus dirige a
pessoa à finalidade proposta por ele.
A expressão “cobrir com sua sombra” faz alusão
à nuvem que cobria o tabernáculo no deserto, representando a glória de Deus que
ali habitava (cf. Ex 40,34). A mesma expressão é utilizada no texto da
transfiguração (cf. Lc 9,34), porque era símbolo da presença de Deus. O
tabernáculo no deserto era chamado de Tenda do Encontro (cf. Ex 27,21), pois
ali Deus se encontrava com o ser humano por meio da representação da nuvem.
Dessa forma, quando o texto, ao se referir a Maria, utiliza a expressão “cobrir
com sua sombra”, identifica-a com a Tenda do Encontro, significando que, no
útero dela, Deus e o ser humano se encontram no Menino que vai nascer.
Ante à vontade de Deus, Maria deu a resposta:
aceitou. Ela proclama-se “serva do Senhor”, frase usual no ambiente oriental
quando um subalterno se dirige ao seu superior com o propósito de aceitar seus
desígnios. Essa disposição para a obediência é uma manifestação de confiança
(fé) na Palavra de Deus.
PARA REFLETIR
Conta-se que o Beato escocês João Duns Scoto
(1266-1308), estando diante duma imagem de Nossa senhora, rezou da seguinte
maneira: dignare me laudare te, Virgo sacrata: Virgem Santa, fazei com que eu
fale bem de vós! Em seguida, o franciscano fez as seguintes perguntas:
– A Deus lhe convinha que a sua Mãe nascesse
sem a mancha do pecado original?
Sim. A Deus lhe convinha que a sua Mãe
nascesse sem nenhuma mancha, pois é mais honroso para ele.
– Deus podia fazer que a sua Mãe nascesse sem
o pecado original?
Sim. Deus pode tudo e, portanto, podia fazer
com que a sua Mãe fosse imaculada, sem mancha.
– Aquilo que é conveniente a Deus, ele o faz
ou não?
Se Deus vê que uma coisa é conveniente, que é
melhor, ele a realiza.
– Logo, já que para Deus era melhor que a sua
Mãe fosse imaculada e podia fazer que assim o fosse, ele – de fato – a fez
imaculada. Decuit, potuit, fecit! Convinha e Deus podia, Deus o fez!
No tempo do Advento, caminhando para o Natal,
somos convidados a olhar para Maria, a IMACULADA, e reconhecer nela o modelo de
como acolher Jesus, que está chegando.
Dizer que Maria é Imaculada, significa que
ela, desde o primeiro instante de sua existência- no momento de sua concepção-,
foi isenta do pecado original. Ensina o Concílio Vaticano II: “A Mãe de Jesus,
dando à luz do mundo a própria Vida que tudo renova… foi adornada por Deus com
dons dignos de uma tão grande missão… enriquecida desde o primeiro instante da
sua conceição, com os esplendores de uma santidade singular” (LG 56). A
saudação do Arcanjo Gabriel: “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está
contigo!” (Lc 1,28), constitui o mais válido testemunho da conceição imaculada
de Maria, pois não seria “cheia de graça”, em sentido pleno, se o pecado a
tivesse manchado, ainda que fosse por um instante apenas.
A Igreja reza e ensina: “Ó Deus, que
preparastes uma digna habitação para o vosso Filho, pela Imaculada Conceição da
Virgem Maria, preservando-a de todo o pecado em previsão dos méritos de
Cristo…”.
Deus preparou Aquela que seria a Mãe do seu
Filho com todo o seu Amor infinito.
Disse o Papa João Paulo II: “Na Virgem
puríssima, resplandecente, fixamos os nossos olhos, como a Estrela que nos guia
pelo céu escuro das expectativas e incertezas humanas, especialmente neste dia
em que, sobre o fundo da liturgia do Advento, brilha esta solenidade anual da
tua Imaculada Conceição e te contemplamos na eterna economia divina como Porta
aberta através da qual deve vir o Redentor do mundo” (Alocução, 8 -12-1982).
A festa da Imaculada nos toca profundamente se
a compreendemos à luz das palavras de São Paulo: “Deus nos escolheu, em Cristo,
antes da fundação do mundo, para que sejamos santos e irrepreensíveis sob o seu
olhar, no amor” (Ef 1,4).
Todos, portanto, somos chamados a ser santos e
irrepreensíveis; é o nosso mais verdadeiro destino; é o projeto de Deus para
nós.
Maria é o modelo de santidade para todos nós!
Nós não nascemos imaculados como Maria nasceu, por singular privilégio de Deus;
o mal, pelo contrário, está em todas as nossas fibras e nas mais variadas
formas. Estamos cheios de rugas: ruga é nossa preguiça, ruga a soberba, ruga a
sensualidade desordenada que torna o espírito tão refratário à visita de Deus.
Eliminar estas rugas e purificar-nos é trabalho de toda a existência: trabalho
difícil e extenuante, mas indispensável, já que nada de impuro pode comparecer
diante de Deus.
Maria está diante de nós, como um auxílio
poderoso, neste trabalho de purificação e de recuperação da imagem de Deus.
Maria é modelo de santidade.
Sem dúvida, foi o Espírito Santo quem ensinou,
em todas as épocas, que é mais fácil chegar ao Coração do Senhor por meio de
Maria. Por isso, temos de fazer o propósito de buscar sempre um trato muito
íntimo com a Virgem, de caminhar por esse atalho para chegarmos antes a Cristo:
“conservai zelosamente esse terno e confiado amor à virgem. Não o deixeis
esfriar nunca… Sedes fiéis aos exercícios de piedade mariana tradicionais na
Igreja: a oração do Angelus, o mês de Maria e, de modo muito especial, o
Rosário”, anima-nos o Papa João Paulo II.
Se cumprirmos o nosso propósito de recorrer
com mais frequência à Virgem, desde o dia de hoje, verificaremos que “Nossa
Senhora é descanso para os que trabalham, consolo dos que choram, remédio para
os enfermos, porto para os que encontram no meio da tempestade, perdão para os
pecadores, doce alívio dos tristes, socorro para os que rezam” (São João
Damasceno).
Ao pensar na Imaculada Conceição, eu também
gosto de pensar na pureza de vida que o Senhor pede que tenhamos e que pode
resumir-se naquela bem-aventurança que diz “bem-aventurados os puros de coração
porque verão a Deus”. Quando falamos de pureza de coração não nos referimos
somente à castidade, mas àquela disposição interior que nos deixa livres para
acolher o olhar penetrante de Deus nas nossas vidas e para que também nós, com
uma felicidade antecipada, possamos ver – agora na fé e depois na visão – o Pai
e o Filho e o Espírito Santo. A pureza do coração nos faz sensíveis às coisas
do alto; um coração sujo, ao contrário, não percebe as coisas de Deus.
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