O 1º Domingo da Quaresma nos apresenta todos
os anos o mistério do jejum de Jesus no deserto, seguido das tentações (cf. Mt
4, 1-11). É a primeira vez que o demônio intervém na vida de Jesus, e faz isto
abertamente. Põe à prova Nosso Senhor; talvez queira averiguar se chegou a hora
do Messias.
A narrativa das tentações que Jesus sofreu
mostra que Jesus “foi experimentado em tudo” (Hb 4, 15), comprovando também a
veracidade da Encarnação do Verbo de Deus.
Diz Santo Agostinho que, na sua passagem por
este mundo nossa vida não pode escapar à prova da tentação, dado que nosso
progresso se realiza pela prova. De fato, ninguém se conhece a si mesmo sem ser
experimentado, e não pode ser coroado sem ter vencido, e não pode vencer, se
não tiver combatido e não pode lutar se não encontrou o inimigo e as tentações.
Por isso, a existência do ser humano nesta
terra é uma batalha contínua contra o mal. É esta luta contra o pecado, a
exemplo de Cristo, que devemos intensificar nesta Quaresma; luta que constitui
uma tarefa para a vida toda.
O demônio promete sempre mais do que pode dar.
A felicidade está muito longe das suas mãos. Toda a tentação é sempre um engano
miserável! Mas, para nos experimentar, o demônio conta com as nossas ambições.
E a pior delas é desejar a todo o custo a glória pessoal; a ânsia de nos
procurarmos sistematicamente a nós mesmos nas coisas que fazemos e projetamos.
Muitas vezes, o pior dos ídolos é o nosso próprio eu. Temos que vigiar, em luta
constante, porque dentro de nós permanece a tendência de desejar a glória
humana, apesar de termos dito ao Senhor que não queremos outra glória que não a
dEle. Jesus também se dirige a nós quando diz: “Adorarás o Senhor teu Deus e só
a Ele servirás”. E é isto o que nós desejamos e pedimos: servir a Deus
alicerçados na vocação a que Ele nos chamou.
O Senhor está sempre ao nosso lado, em cada
tentação, e nos diz afetuosamente: “Confiai: Eu venci o mundo” (Jo16, 33). E
com o salmista podemos dizer: “O Senhor é a minha luz e a minha salvação; a
quem temerei?” (Sl 26, 1).
“Procuremos fugir das ocasiões de pecado, por
pequenas que sejam, pois aquele que ama o perigo nele perecerá” (Eclo 3, 27).
Como Jesus nos ensinou na oração do Pai Nosso: “Não nos deixeis cair em
tentação”; é necessário repetir muitas vezes e com confiança essa oração!
Na Quaresma somos todos chamados ao deserto,
para um confronto conosco mesmos, com Deus e com o próximo e os bens materiais.
Somos chamados a despojar-nos de nós mesmos para nos revestir de Deus. Somos
chamados a acolher a palavra do Profeta Joel: “… rasgai o coração, e não as
vestes; e voltai para o Senhor, vosso Deus…” ( Jl 2, 13 ).
Vale a pena fazer nossa, a oração da coleta do
1° Domingo da Quaresma: “Concedei-nos, ó Deus onipotente, que, ao longo desta Quaresma,
possamos progredir no conhecimento de Jesus Cristo e corresponder a seu amor
por uma vida santa .”
Comentário
dos textos bíblicos
Leituras: Gn 2,7-9; 3,1-7; Rm 5,12-19; Mt 4,1-11
Caríssimos irmãos e irmãs, na última
quarta-feira, com o rito da imposição das cinzas iniciamos o itinerário
penitencial da quaresma. As cinzas nos lembram a fragilidade de cada homem e,
ao mesmo tempo, nos orientam a olhar para o Cristo que, com a sua morte e
ressurreição, resgatou o homem da escravidão do pecado e do erro. A quaresma é
um caminho de quarenta dias que nos levará ao Tríduo Pascal, onde celebraremos
a memória da paixão, morte e ressurreição do Senhor.
Com efeito, quarenta é o número simbólico com
que o Antigo e o Novo Testamento representam os momentos salientes da
experiência da fé do Povo de Deus. Trata-se de um número que exprime o tempo da
expectativa, da purificação, do regresso ao Senhor e da consciência de que Deus
é fiel às suas promessas. Este número não representa um tempo cronológico
exato, cadenciado pela soma dos dias. Mas, indica uma perseverança paciente, uma
prova longa, um período suficiente para ver as obras de Deus. É o tempo das
decisões maduras e sábias.
O número quarenta aparece antes de tudo na
história de Noé que, devido ao dilúvio, permanece quarenta dias e quarenta
noites na arca, juntamente com a sua família e com os animais que Deus lhe
tinha dito que levasse consigo. E espera outros quarenta dias, depois do
dilúvio, antes de tocar na terra firme (cf. Gn 7,4.12; 8,6). Também por
quarenta dias e por quarenta noites, em jejum, Moisés permanece no monte Sinai,
na presença do Senhor para receber a Lei (cf. Ex 24,18).
E ainda quarenta são os anos de viagem do povo
judeu da terra do Egito para a Terra prometida, tempo propício para
experimentar a fidelidade de Deus. O profeta Elias emprega quarenta dias para
chegar ao Horeb, o monte onde se encontra com Deus (cf. 1Rs 19,8). Quarenta são
os dias durante os quais os cidadãos de Nínive fazem penitência para obter o
perdão de Deus (cf. Gn 3,4). Quarenta são também os anos dos reinos de Saul
(cf. At 13,21), de Davi (cf. 2Sm 5,4-5) e de Salomão (cf. 1Rs 11,41), os três
primeiros reis de Israel. O livro dos Atos dos Apóstolos nos diz que Jesus,
depois da sua ressurreição, durante 40 dias, apareceu aos discípulos (cf. At
1,3). E antes de começar a vida pública, Jesus retira-se no deserto por
quarenta dias, sem comer nem beber (cf. Mt 4,2), alimenta-se da Palavra de
Deus, que utiliza como arma para derrotar o diabo. As tentações de Jesus evocam
as que o povo judeu enfrentou no deserto, mas que não soube vencer.
Com este recorrente número quarenta é descrito
um contexto espiritual que permanece atual e válido, e a Igreja, precisamente
mediante os dias do período quaresmal, tenciona conservar o seu valor
perdurável e fazer com que a sua eficácia esteja presente. A liturgia cristã da
Quaresma tem a finalidade de favorecer um caminho de renovação espiritual, à
luz desta longa experiência bíblica e, sobretudo, para aprender a imitar Jesus,
que nos quarenta dias transcorridos no deserto, ensinou a vencer a tentação tendo
como base a Palavra de Deus.
Neste tempo quaresmal, somos chamados a
enfrentar o mal e a lutar contra os seus efeitos. A este propósito ressoa para
nós o exemplo do próprio Cristo que a Liturgia da Palavra nos convida a meditar
neste primeiro domingo da quaresma, ao nos propor a página evangélica que nos
fala das tentações de Jesus no deserto (cf. Mt 4,1-11).
Com este relato evangélico temos o exemplo que
Jesus deixa para nós, na tentativa de vencer o mal, o maligno. A cena das
tentações antecede a vida pública de Jesus, segue-se imediatamente ao seu
batismo (cf. Mt 3,13-17). Com isto, podemos observar que após receber o batismo
e o Espírito Santo, será possível afrontar e vencer a tentação e o mal.
O texto nos diz que as tentações ocorreram no
deserto: “O Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo.”
(Mt 4,1). O deserto, de acordo com o imaginário judaico, é o lugar onde os
israelitas experimentaram, por diversas vezes, a tentação do abandono do
Senhor; embora seja, também, o lugar do encontro com Deus e o lugar onde o povo
fez a experiência da sua fragilidade e pequenez e aprendeu a confiar na bondade
e no amor de Deus.
O deserto é ainda o lugar do silêncio, da
pobreza, da solidão, onde o homem permanece desprovido de uma ajuda material,
sendo ameaçado pela morte, pois onde não há água também não há vida, e onde o
homem sente mais intensa a tentação. Jesus vai ao deserto, e ali padece a
tentação de deixar o caminho indicado pelo Pai para seguir uma outra direção,
mais cômoda e de poder.
A perícope evangélica apresentada por São
Mateus ressalta as opções de Jesus em três momentos. Inicialmente, o tentador
sugere a Jesus que transforme as pedras em pão (v.3). O pão é um alimento
essencial à vida, no entanto, Jesus responde: “Não só de pão vive o homem, mas
de toda palavra que sai da boca de Deus” (v. 4). A resposta de Jesus está em
conformidade com Dt 8,3 e sugere que o seu alimento, isto é, a sua prioridade é
o cumprimento da vontade do Pai.
A segunda tentação apresentada pelo evangelho
nos fala da soberba da vida (v.5-7), e o tentador usa uma passagem bíblica (cf.
Sl 91,11s), mas novamente o Senhor Jesus respondeu com uma outra passagem da
Sagrada Escritura (cf. Dt 6,16), afirmando que seria errado abusar de Seus
próprios poderes: “Não tentarás o Senhor teu Deus!” (v. 7).
Na terceira tentação Satanás diz a Jesus: “Eu
te darei tudo isso, se te ajoelhares diante de mim, para me adorar” (Mt 4,9).
Todo prazer, toda honra, satanás quer dar ao homem, desde que entregue a ele a
sua alma, perdendo para sempre a comunhão com Deus. É a forma mais radical da
tentação. Todo pecado tem algo disso em si: querer possuir uma felicidade, que
não se responsabilize nem diante dos outros, nem diante de Deus. Jesus nos mostra o único caminho: “Vai-te,
Satanás… Adorarás somente ao Senhor teu Deus!” (Mt 4,10).
As três tentações apresentadas não são mais do
que três faces de uma única tentação: a tentação de prescindir de Deus, de
escolher um caminho que difere do projeto de Deus. Ao longo da sua vida, diante
das diversas provocações que os adversários lhe lançam, Jesus vai confirmar
esta sua total fidelidade à vontade de Deus.
E neste tempo quaresmal a Igreja nos indica os
meios adequados para o combate quotidiano das sugestões do mal, são eles: a
oração, os sacramentos, a penitência, a escuta atenta da Palavra de Deus, a
vigilância e o jejum. Também este é um
ensinamento fundamental para nós: se trouxermos na mente e no coração a Palavra
de Deus, poderemos rejeitar qualquer gênero de engano do tentador.
E a quaresma é um tempo em que devemos ouvir
com mais atenção a voz de Deus, para vencer as tentações do Maligno e encontrar
a verdade do nosso ser. Um tempo para estarmos mais próximos de Deus, usando as
armas da fé.
Ao longo desta quaresma, por várias vezes
seremos exortados à conversão, que significa seguir Jesus de modo que o seu
Evangelho seja um guia de vida. Deixar que Deus nos transforme significa
reconhecer que somos criaturas que quotidianamente dependemos de Deus e do seu
amor. Por isto, devemos renovar o nosso
compromisso de direcionar os nossos passos no caminho de uma conversão concreta
e decisiva. E, para isto, invoquemos a assistência maternal de Nossa Senhora,
para que, neste caminho quaresmal, possamos obter copiosos frutos de conversão.
Assim seja.
PARA REFLETIR
Logo no início deste santo caminho para a
Páscoa, a Palavra de Deus nos desvenda dois mistérios tremendos: o mistério da
piedade e o mistério da iniquidade! Esses dois mistérios atravessam a história
humana e se interpenetram misteriosamente; dois mistérios que nos atingem e
marcam nossa vida, e esperam nossa decisão, nossa atitude, nossa escolha! Um é
mistério de vida; o outro, mistério de morte.
Comecemos pelo mistério da iniquidade: “O
pecado entrou no mundo por um só homem. Através do pecado, entrou a morte. E a
morte passou a todos os homens, porque todos pecaram”. Eis! A vida que vivemos,
a vida da humanidade é uma vida de morte, ferida por tantas contradições, por
tantas ameaças físicas, psíquicas, morais… Viver tornou-se uma luta e, se é
verdade que a vida vale a pena ser vivida, não é menos verdade que ela também
tem muito de peso, de dor, de pranto, de fardo danado. Mas, como isso foi
possível? Escutemos a primeira leitura: “O Senhor Deus formou o homem do pó da
terra, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida e o homem tornou-se um ser
vivente”. Somos obra de Deus, do seu amor gratuito: do nada ele nos tirou e
encheu-nos de vida. Mais ainda: “O Senhor Deus plantou um jardim em Éden, ao oriente,
e ali pôs o homem que havia formado”. Vede: o Senhor não somente nos tirou do
pó do nada, não somente nos encheu de vida; também nos colocou no jardim de
delícias, pensou nossa vida como vida de verdade toda banhada pela luz do
oriente. E mais: nosso Deus passeava no jardim à brisa do dia (cf. Gn 3,8),
como amigo do homem. Eis o mistério da piedade, o projeto que Deus concebeu
para nós desde o início, apresentado pela Palavra de modo poético e simbólico:
um Deus que é Deus de amor, de ternura, de carinho, de respeito pela sua
criatura, com a qual ele deseja estabelecer uma parceria; um homem chamado a
ser plenamente homem: feliz na comunhão com Deus, feliz em ter no seu Deus sua
plenitude e sua vida; homem plenamente homem nos limites de homem. O homem é
homem, não é Deus! Somente o Senhor Deus é o Senhor do Bem e do Mal. Por isso
as duas árvores no Éden: a do conhecimento do Bem e do Mal (isto é, o poder de
decidir por si mesmo o que é bem ou mal, certo ou errado) e a árvore da Vida
(da vida plena, da vida divina). Se o homem confiasse em Deus, se cumprisse seu
preceito, se reconhecesse seus limites, um dia comeria do fruto da árvore da
Vida…
Mas, o homem foi seduzido; é seduzido inda
agora: deseja ser seu próprio Deus, sem nenhum limite, sem nenhuma abertura à
graça! Somente sua vontade lhe importa, somente sua medida! Hoje, como no
princípio, ele pensa que é a medida de todas as coisas! Eis aqui o seu pecado!
O Diabo o seduz: primeiro distorce o preceito de Deus (“É verdade que Deus vos
disse: ‘Não comereis de nenhuma das árvores do jardim’?”), semeando no coração
do homem a desconfiança e o sentimento de inferioridade; depois, mente
descaradamente:“Não! Vós não morrereis! Vossos olhos se abrirão e sereis como
Deus, conhecendo o bem e o mal!” Ser como Deus, decidindo de modo autônomo o
que é certo e o que é errado; decidindo que a libertinagem é um bem, que as
aventuras com embriões humanos, que o aborto, que a infidelidade feita de
preservativos, são um bem… Decidindo loucamente que levar a sério a religião e
a Palavra de Deus é um mal… Ser como Deus… Eis nosso sonho, nossa loucura,
nossa mais triste ilusão! Tudo tão atraente, tudo tão apto para dar
conhecimento, autonomia, felicidade… O resultado: os olhos dos dois se abriram:
estavam nus… estamos nus… somos pó e, por nós mesmos, ao pó tornaremos,
inapelavelmente!
Então, nosso destino é a morte? Não há saída
para a humanidade? O mistério da iniqüidade destruiu o mistério da piedade?
Não! De modo algum! Ao contrário: revelou-o ainda mais: “A transgressão de um
só levou a multidão humana à morte; ma foi de modo bem superior que a graça de
Deus… concedida através de Jesus Cristo, se derramou em abundância sobre todos.
Por um só homem a morte começou a reinar. Muito mais reinarão na vida, pela
mediação de um só, Jesus Cristo, os que recebem o dom gratuito e superabundante
da justiça”. Eis aqui o mistério tão grande, o mistério da piedade, o centro da
nossa fé: em Cristo revelou-se todo o amor de Deus para conosco; pela
obediência de Cristo a nossa desobediência é redimida; pela morte de Cristo na
árvore da cruz, nós temos acesso ao fruto da Vida, da Vida plena, da Vida em
abundância, da Vida que nunca haverá de se acabar! Pela obediência de Cristo,
pelo dom do seu Espírito, nós temos a vida divina, nós somos divinizados,
somos, por pura graça, aquilo que queríamos ser de modo autônomo e soberbo!
Assim, manifestou-se a justiça de Deus: em Jesus morto e ressuscitado por nós –
e só nele! – a humanidade encontra vida!
Mas, esta salvação em Jesus teve alto preço: a
encarnação do Filho de Deus e sua humilde obediência, até a morte e morte de
cruz. O Senhor desfez o nó da nossa desobediência, da nossa auto-suficiência,
da nossa prepotência, renunciando ser o senhor de sua existência humana: ele
acolheu a proposta do Pai, ele se fez obediente: à glória do pão (dos bens
materiais, dos prazeres, do conforto) ele preferiu a Palavra do Pai como único
sentido e única orientação de sua vida; à glória do sucesso (a honra, a fama, o
aplauso), ele preferiu a humildade de não tentar Deus; à glória do poder (da
força, das amizades poderosas e influentes, do prestígio político para impor e
conseguir tudo) ele preferiu o compromisso absoluto e total com o Absoluto de
Deus somente. Assim, Cristo Jesus, o Homem novo, o novo Adão (de quem o
primeiro era somente figura e sombra) abriu-nos o caminho da obediência que nos
faz retornar ao Pai!
Este é também o nosso caminho. Nossa vocação é
entrar, participar, da obediência de Cristo pela oração, a penitência e a
caridade fraterna para sermos herdeiros de sua vitória pascal! Este sagrado
tempo que estamos iniciando é tempo de combate espiritual, para que voltemos,
pelo caminho da obediência Àquele de quem nos afastamos pela covardia da
desobediência. Convertamo-nos, portanto! Deixemos a teimosia e a ilusão de
achar que nos bastamos a nós mesmos! Sinceramente, abracemos os sentimentos de
Cristo, percorramos o caminho de Cristo, convertamo-nos a Cristo!
Concluamos com as palavras da Coleta de hoje:
“Concedei-nos, ó Deus onipotente, que, ao longo desta quaresma, possamos
progredir no conhecimento de Jesus Cristo e corresponder ao seu amor por uma
vida santa”. Amém.
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