segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Sobre a crise na Igreja, apostasia do clero e o Concílio Vaticano II


"A situação atual da inaudita crise da Igreja é comparável com aquela geral no século IV, onde o arianismo contaminou a esmagadora maioria do episcopado e foi reinante na vida da Igreja. Devemos procurar ver esta situação atual, por um lado, com realismo e, por outro, com o espírito sobrenatural, com um profundo amor para com a Igreja, que é nossa mãe, e que está sofrendo a paixão de Cristo por meio dessa tremenda e geral confusão doutrinal, litúrgica e pastoral.

Devemos renovar a nossa Fé de que a Igreja está nas mãos seguras de Cristo e que Ele sempre intervirá para renová-la nos momentos em que a barca da Igreja parece naufragar, como é o caso óbvio em nossos dias.

Quanto à atitude diante do Concílio Vaticano II, devemos evitar os dois extremos: uma rejeição completa (como o fazem os sedevacantistas e uma parte da FSSPX) ou uma “infalibilização” de tudo o que o Concílio falou.

O Concílio Vaticano II foi uma legítima assembleia presidida pelos Papas e devemos manter para com este concílio uma atitude de respeito. Contudo, isso não significa que não podemos exprimir dúvidas bem argumentadas e respeitosas propostas de melhoria, apoiando-se na Tradição integral da Igreja e no Magistério constante.

Pronunciamentos doutrinais tradicionais e constantes do Magistério durante um plurissecular período têm a precedência e constituem um critério de verificação acerca da exatidão de pronunciamentos magisteriais posteriores. Os pronunciamentos novos do Magistério devem, em si, ser mais exatos e mais claros, nunca, porém, ambíguos e aparentemente contrastantes com anteriores pronunciamentos constantes magisteriais.

Aqueles pronunciamentos do Vaticano II que são ambíguos devem ser lidos e interpretados segundo os pronunciamentos da inteira Tradição e do Magistério constante da Igreja.

Na dúvida, os pronunciamentos do Magistério constante (os concílios anteriores e os documentos de Papas, cujo conteúdo demonstrava ser uma tradição segura e repetida durante séculos no mesmo sentido) prevalecem sobre aqueles pronunciamentos objetivamente ambíguos ou novos do Concílio Vaticano II, os quais, objetivamente, dificilmente concordam com específicos pronunciamentos do Magistério anterior e constante (por exemplo, o dever do Estado de venerar publicamente Cristo, Rei de todas as sociedades humanas; o verdadeiro sentido da colegialidade episcopal frente ao primado petrino e ao governo universal da Igreja; a nocividade de todas as religiões não-católicas e o perigo que elas constituem para a salvação eternas das almas).

O Vaticano II deve ser visto e aceito tal como ele quis ser e como realmente foi: um concílio primeiramente pastoral, isto é, um concílio que não teve a intenção de propor doutrinas novas ou propô-las numa forma definitiva. Na maioria dos seus pronunciamentos, o Concílio confirmou a doutrina tradicional e constante da Igreja.

Alguns dos novos pronunciamentos do Vaticano II (por exemplo, colegialidade, liberdade religiosa, diálogo ecuménico e inter-religioso, atitude para com o mundo) não são definitivos e por eles, aparentemente ou em realidade, não concordarem com os pronunciamentos tradicionais e constantes do Magistério, devem ser ainda completados com explicações mais exatas e com suplementos mais precisos de caráter doutrinal. Uma aplicação cega do princípio da “hermenêutica da continuidade” também não ajuda, pois se criam com isso interpretações forçadas, que não convencem e que não ajudam para chegar ao conhecimento mais claro das verdades imutáveis da Fé Católica e da sua aplicação concreta.

Houve casos na história onde expressões não definitivas de alguns concílios foram, mais tarde, graças a um debate teológico sereno, precisadas ou tacitamente corrigidas (por exemplo, os pronunciamentos do Concílio de Florença acerca da matéria do sacramento da ordenação, isto é, que a matéria fosse a entrega dos instrumentos, mas a tradição mais segura e constante dizia que era suficiente a imposição das mãos do bispo, o que Pio XII em 1947 confirmou). Se depois do concílio de Florença os teólogos tivessem aplicado cegamente o princípio da “hermenêutica da continuidade” a este pronunciamento específico do concílio de Florença (um pronunciamento objetivamente errôneo), defendendo a tese que a entrega dos instrumentos como matéria do sacramento da ordem fosse uma expressão do Magistério constante da Igreja, provavelmente não se teria chegado ao consenso geral dos teólogos sobre a verdade que diz que somente a imposição das mãos do bispo constituiria propriamente a matéria do sacramento da ordem.

Deve-se criar na Igreja um clima sereno de discussão doutrinal acerca daqueles pronunciamentos do Vaticano II que são ambíguos ou que criaram interpretações errôneas. Não há nada de escandaloso nisso, pelo contrário, será uma contribuiçao para guardar e explicar na maneira mais segura e integral o depósito da Fé imutável da Igreja.

Não se deve destacar demais um determinado concílio, absolutizando-o ou equiparando-o de fato, à Palavra de Deus oral (Tradição Sagrada) ou escrita (Sagrada Escritura). O Vaticano II mesmo disse, justamente (cf. Dei Verbum, 10), que o Magistério (Papas, Concílios, magistério ordinário e universal) não estão acima da Palavra de Deus, mas sob ela, submisso a ela, e somente ministro dela (da Palavra de Deus oral = Sagrada Tradição e da Palavra de Deus escrita = Sagrada Escritura).

Do ponto de vista objetivo, os pronunciamentos do Magistério (Papas e concílios) de caráter definitivo têm mais valor e mais peso frente aos pronunciamentos de caráter pastoral, os quais são, por natureza, mutáveis e temporários, dependentes de circunstâncias históricas ou respondendo às situações pastorais de um determinado tempo, como é o caso da maior parte dos pronunciamentos do Vaticano II.

O próprio contributo valioso e original do Concílio Vaticano II consiste no chamado universal de todos os membros da Igreja à santidade (cap. 5 da Lumen gentium), na doutrina sobre o papel central de Nossa Senhora na vida da Igreja (cap. 8 da Lumen gentium), na importância dos fiéis leigos em conservarem, defenderem e promoverem a Fé Católica e que eles devem evangelizar e santificar as realidades temporárias segundo o perene sentido da Igreja (cap. 4 da Lumen gentium), no primado da adoração de Deus na vida da Igreja e na celebração da liturgia (Sacrosanctum Concilium, nn. 2; 5-10). O resto se podia até um certo ponto considerar secundário, temporário e talvez no futuro mesmo esquecível, como foi o caso com os pronunciamentos não definitivos, pastorais e disciplinais de diversos concílios ecumênicos no passado.

Os quatro assuntos seguintes: Nossa Senhora, santificação da vida pessoal, defesa da Fé com a santificação do mundo segundo o espírito perene da Igreja e o primado da adoração de Deus são os tópicos mais urgentes a serem vividos e aplicados hoje em dia. Nisso, o Vaticano II tem um papel profético, o que, infelizmente, não está ainda realizado de modo satisfatório. Em vez de viver e de aplicar estes quatro aspectos, uma considerável parte da “nomenklatura” teológica e administrativa na vida da Igreja, há meio século, promoveu e está ainda promovendo assuntos doutrinários, pastorais e litúrgicos ambíguos, deturpando, assim, a intenção originária do Concílio ou abusando dos seus pronunciamentos doutrinários menos claros ou ambíguos a fim de criar uma outra Igreja de tipo relativista ou protestante. Estamos vivenciando o auge desse desenvolvimento em nossos dias.

O problema da atual crise da Igreja consiste, em parte, no fato de que se infalibizaram aqueles pronunciamentos do Vaticano II que são objetivamente ambíguos, ou aqueles poucos pronunciamentos dificilmente concordantes com a tradição magisterial constante da Igreja. Dessa forma, impediu-se um sadio debate e uma necessária correção, implícita ou tácita, dando, ao mesmo tempo, o incentivo para criar afirmações teológicas contrastantes com a tradição perene (por exemplo, no que diz respeito à nova teoria de um assim chamado duplo sujeito ordinário supremo do governo da Igreja, ou seja, o Papa sozinho e todo o colégio episcopal junto com o Papa; ou a doutrina da assim chamada neutralidade do Estado frente ao culto público que ele deve prestar ao Deus verdadeiro, que é Jesus Cristo, Rei também de cada sociedade humana e política; a relativização da verdade que a Igreja Católica é o único caminho da salvação querido e ordenado por Deus).

Devemos nos libertar das algemas da absolutização e da infalibilização total do Vaticano II e pedir que haja um clima de debate sereno e respeitoso, por amor sincero à Igreja e à sua Fé imutável.

Uma indicação positiva nesse sentido podemos ver no fato de que, em 2 de agosto 2012, o Papa Bento XVI escreveu um prefácio ao volume relativo ao Concílio Vaticano II na edição da sua Opera omnia. Neste prefácio, Bento XVI exprime suas reservas quanto a um conteúdo específico dos documentos Gaudium et spes e Nostra aetate. Do teor dessas palavras de Bento XVI se vê que alguns defeitos pontuais em algumas passagens do Vaticano II não são remediáveis pela “hermenêutica da continuidade”.

Uma Fraternidade Sacerdotal de São Pio X canônica e plenamente integrada na vida da Igreja poderia também dar um válido contributo nesse debate, como também o desejou o Arcebispo Marcel Lefebvre. A presença plenamente canônica da FSSPX na vida da Igreja de hoje poderia também ajudar a criar um tal clima geral de um debate construtivo na Igreja, para que aquilo que foi crido sempre, em toda a parte e por todos os católicos durante dois mil anos, seja crido mais clara e de modo mais seguro também em nossos dias, realizando, assim, a verdadeira intenção pastoral dos Padres do Concílio Vaticano II.

A autêntica intenção pastoral visa a salvação eterna das almas, a qual se dá somente pelo anúncio de toda a vontade Divina (cf. At 20, 7). Uma ambiguidade na doutrina da fé e na sua aplicação concreta (na liturgia e na pastoral) ameaçaria a salvação eterna das almas e seria, por conseguinte, anti-pastoral, já que o anúncio da clareza e da integridade da Fé Católica e da sua fiel aplicação concreta é vontade explícita de Deus. Somente a obediência perfeita a esta vontade de Deus que, por Cristo, o Verbo Encarnado, e pelos Apóstolos nos revelou a verdadeira Fé, a Fé interpretada e praticada constantemente no mesmo sentido pelo Magistério da Igreja, traz a salvação das almas."


+ Dom Athanasius Schneider,
Bispo auxiliar da arquidiocese de Maria Santíssima em Astana, Cazaquistão

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