"Em Utretch, Holanda, igreja gótica foi transformada em cervejaria belga. Foto: divulgação/Belgian Beer Café Olivier" |
"Mansões que viram cafés, fábricas que se
transformam em espaços de eventos. Cada vez mais, espaços obsoletos ganham
novos usos e aos poucos reconfiguram cidades inteiras. Na Holanda, esse
conceito ganhou novas proporções: com a queda do número de pessoas religiosas
no país, igrejas católicas e protestantes têm se reconfigurado para abrigar
novos estabelecimentos, de cafés a cervejarias."
"É o caso da livraria Selexyz
Dominicanen, na cidade de Maastricht, que funciona dentro de uma igreja
dominicana do século 13. O projeto, realizado pelo escritório Merkx + Girod,
mantém a arquitetura gótica ao mesmo tempo em que trouxe elementos
contemporâneos para compor a livraria. Um café também funciona no local em que
ficava o altar — que traz uma mesa em formato de cruz, para aprofundar o
diálogo entre os dois tipos de arquitetura."
"Livraria Selexyz Dominicanen, em Maastricht, Holanda. Foto: divulgação" |
"Outro exemplo é Mesquita de Fatih, em
Amsterdã. A igreja que em séculos anteriores era da congregação jesuíta foi
desativada em 1971. Dez anos depois, foi comprada e reformada pela Fundação
Islâmica Fatih, que preservou a maior parte da arquitetura original. As
mudanças mais significativas são relacionadas à própria religião muçulmana: as
cruzes foram substituídas por meias-luas, e o culto é feito virado para a
porta, em vez de para o altar."
Uma igreja fechada por semana
A mudança de usos pode causar estranhamento
para quem entende as igrejas como espaços sagrados, mas peculiaridades da
história e da cultura da Holanda ajudam a compreender essa dinâmica. Quem
explica é Adriano Godoy, doutorando em antropologia social pela Unicamp e
pesquisador visitante da Utrecht University, na Holanda.
“A Holanda era domínio do império espanhol e
católico, e a sua independência se dá justamente pela religião, com a reforma
protestante e o calvinismo que inspiram a revolta iconoclasta”, explica.
“Assim, as igrejas mais antigas — as grandes catedrais — foram inicialmente
construídas como católicas e, depois da independência, passaram a ser usadas
pelos protestantes que as transformaram dentro das suas regras”."
"Oude Kerk, mais antiga igreja de Amsterdã, construída em 1213, atualmente funciona como museu. Foto: Alex Mark" |
"A partir do século 16, os católicos
tiveram o direito de crença garantido, mas foram proibidos de construir novas
igrejas. Com as antigas igrejas usadas pelos protestantes, eles passaram a ter
cultos em igrejas escondidas — as chamadas schuilkerk. A permissão só foi
concedida novamente no século 19 — quando ouve uma explosão de novas igrejas
católicas.
“Logo depois, no século 20, a Holanda começa a
presenciar uma grande queda no número de pessoas religiosas. As primeiras a
fechar as portas para cerimônias religiosas são justamente as do século 19″,
analisa. “Elas não despertam o mesmo interesse público [das catedrais góticas]
e acabam fechando por falta de verba. O número é quase inacreditável: a média
em 2018 foi de uma igreja fechada por semana no país“."
"Um dos usos mais comuns atribuídos às “ex-igrejas” são museus de arte moderna e contemporênea, como na Oude Kerk. Foto: Hijme Stoffels" |
"Em números: 50% da população holandesa
se dizia sem religião, segundo pesquisa de 2015 da Statistics Netherlands. O
Brasil, em comparação, tem apenas 8% da população que se declara sem religião,
de acordo com o IBGE.
E pode?
Godoy explica que o entendimento do espaço de
culto varia de acordo com a religião. Enquanto os católicos veem a igreja como
um espaço consagrado, os protestantes a entendem como um local de encontros.
“Se entre brasileiros católicos isso soa herético e errado, justamente por essa
tradição religiosa forte, é diferente para os holandeses protestantes que veem
com mais naturalidade”, aponta.
No entanto, as igrejas não são vendidas sem um
rito. A desconsagração é uma prática comum entre os católicos holandeses, e
consiste, basicamente, em uma missa de despedida. E, apesar do número minguante
de católicos, isso não acontece sem dor para a comunidade. “Os vínculos das
pessoas com a igreja envolvem muitas lembranças e afetos, como se fosse uma
casa na qual se morou a vida inteira. O valor comunitário para as famílias do
bairro é inquestionável”, acrescenta Godoy."
"Rito de desconsagração em igreja Sint Jacobuskerk, em Utrech. Foto: Daan Beekers/Religious Matters" |
"Por isso, a cerimônia acaba não sendo
uma simples missa. Na Igreja de Sint Jacobuskerk, em Utrech, a comunidade
adicionou ao rito uma procissão simbólica em direção ao novo local de culto:
uma igreja protestante, que vai dividir o espaço entre as duas religiões."
"Procissão saída da Sint Jacobuskerk, em direção à Protestant Bethel Church, que vai abrigar os ritos da comunidade. Foto: Daan Beekers/Religious Matters" |
“Ao meu ver a religião é uma coisa viva, em
constante transformação, e assim também são os prédios, as arquiteturas, que
vão se adequando ao tempo e a história. Penso que em um país com uma queda da
religião como categoria definidora de hábitos comuns, da vida em comunidade,
seria lógico que os prédios perdessem o seu uso original“, frisa o pesquisador.
“Esses novos usos refletem o nosso tempo, como
é pensado o uso da cidade, e é interessante perceber como nessa dinâmica as
atividades comerciais ocuparam o espaço das religiosas. A escolha de manter
parte das suas características arquitetônicas gera uma nova dinâmica na
cidade“."
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