No Vaticano, o Sínodo
dos Bispos realiza sua 3ª assembleia extraordinária, tendo como tema
os atuais desafios da família, que interpelam a ação da Igreja. De 5 a 19 de
outubro, os 253 participantes, convocados pelo papa Francisco, relatam sobre os
desafios familiares de maior relevância nos âmbitos das 114 Conferências
Episcopais representadas; participantes de vários organismos da Igreja falam da
sua percepção das questões atinentes à família; delegados de outras Igrejas
cristãs também presentes.
Além deles,
vários casais dos 5 Continentes falam das experiências vividas no casamento e
na vida familiar; 38 observadores não-bispos acompanham o desenvolvimento dos
trabalhos e 16 especialistas oferecem sua ajuda nas diversas áreas de estudos e
ação profissional interessadas nas temáticas familiares. O Papa assiste a tudo,
ouve, observa e, no final, recebe indicações da assembleia para as decisões que
achar oportunas.
Francisco quis
que esta assembleia extraordinária examinasse de maneira mais específica os
desafios atuais da família. Hoje há uma percepção compartilhada de que o
casamento e a família atravessam uma crise sem precedentes, não apenas nos
povos de cultura ocidental, mas também em regiões, onde ainda havia, até
recentemente, uma forte cultura favorável à família, como na América Latina e
na África.
A crise
manifesta-se no elevado número de divórcios e casamentos desfeitos e de casais
que convivem sem nenhuma formalização do casamento, nem civil, nem religiosa;
impressiona a quantidade dos que rejeitam toda forma de união, vivendo como
“singles”. E isso é comum a países da Europa, América e Ásia. Na África, a
tendência é a mesma. Além disso, a natalidade caiu de modo significativo na
maioria dos países; nota-se também uma perda de espaço e de relevância
social crescente da família.
São notáveis os
dramas e as dificuldades enfrentadas pelas famílias nas áreas de guerra e
conflitos, de discriminação cultural e religiosa. Um fluxo migratório constante
da África, América Latina e Ásia leva as vítimas da pobreza e da violência a
tentarem vida melhor em países mais prósperos; nesses casos, as famílias
geralmente são dilaceradas e se sujeitam a toda sorte de precariedades e
incertezas. Drama muito especial vivem famílias de grupos étnicos e religiosos
minoritários da Síria e do Iraque, tendo que abandonar tudo e fugir para
não serem vítimas do grupo fanático que lhes impõe abraçar à força uma fé, que
não é a sua, ou morrer. Há também países pobres submetidos a enormes pressões
de organizações internacionais para adotarem políticas drásticas de redução da
natalidade e de mudança de sua cultura familiar. Há, enfim, um vergonhoso
tráfico de pessoas para a exploração sexual, submetidas a regimes degradantes
de escravidão.
Também nos
países livres e pluralistas, famílias são submetidas a pressões desagregadoras pela
sociedade de consumo, o mercado de trabalho, as condições econômicas e sociais
sufocantes, que não lhes deixam espaço nem energia para o cultivo da vida
familiar minimamente satisfatória. Como pode zelar bem de si uma das muitas
famílias das periferias metropolitanas, se os pais precisam sair muito cedo
para chegar em tempo no lugar de trabalho e, à noite, chegam em casa mortos de
cansados, mal havendo tempo e disposição para trocar algumas palavras ou dar
atenção aos filhos? Nessas condições, qual esperança têm os jovens para
sonharem com um casamento e uma família feliz?
Não são poucos
os dramas e as pressões vividas pelas famílias! Em vários países, entre os
quais o Brasil, boa parte das crianças não nasce em famílias constituídas; suas
mães, com frequência bem jovens e sem nenhuma segurança social e econômica,
vivem a maternidade de maneira heroica e merecem todo respeito e admiração.
Porém, essa não é, certamente, a condição ideal para que uma criança venha ao
mundo e tenha garantias de um futuro bom.
A preocupação da
Igreja com a família, com frequência, é vista como interesse confessional e a
partir de questões pontuais: se o divórcio é permitido, se o aborto é
aceitável, se os contraceptivos podem ser usados, se os filhos nascidos fora do
casamento podem ser batizados, se há casamento entre pessoas do mesmo sexo...
Todas essas questões, de fato, merecem a atenção da Igreja. Mas a questão da
família é mais profunda e profunda: o Sínodo convocado pela Papa Francisco
expressa as suas perplexidades sobre a realidade familiar, enquanto tal. Como
será essa família no futuro e quais serão as suas atribuições? Ela ainda será
capaz de desempenhar as suas funções em relação à pessoa, à comunidade humana e
à própria comunidade religiosa?
A Igreja procura
ir ao encontro dos desafios vividos pela família hodierna, socorrendo,
amparando, encorajando; a partir de suas convicções de fé em Deus, ela convida
as pessoas a conformarem a vida com o Evangelho do reino de Deus. Mas a questão
não interessa apenas à Igreja e à religião. De fato, à família está relacionado
intimamente o bem da vida social, cultural, econômica e política. A família
interessa ao bem da pessoa e da sociedade inteira.
Coloca-se,
portanto, a pergunta sobre a atenção que a família recebe da política e dos
governantes? Ela não pode ser abandonada a si mesma, ou ao âmbito da vida
privada. Por certo, ela está nesse âmbito e representa um espaço fundamental de
privacidade e liberdade, não devendo o Estado interferir nela indevidamente. Ao
mesmo tempo, porém, o Estado deveria proteger a família e dar-lhe condições
para o bom desempenho do seu papel. Se o fizer, sairá ganhando a sociedade e os
próprio Estado. Deixando a família no abandono, o Estado e a sociedade colherão
muitos problemas.
Cardeal
Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo (SP)
Arcebispo de São Paulo (SP)
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Artigo publicado
no jornal "O Estado de S.Paulo", em 11 de outubro de 2014
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