Muito
comumente não prestamos a devida atenção naquilo que rezamos de maneira quase
mecânica na liturgia e na vida, de modo que não sabemos, muitas vezes, o que
afirmamos quando dizemos certas coisas. O presente artigo quer ser uma ajuda
para tomarmos consciência do que afirmamos e do que não afirmamos ao dizer
“creio na Igreja”, partindo das ocorrências bíblicas até chegarmos à fórmula de
fé do Credo que rezamos.
A Igreja – povo
de Deus peregrino no tempo – não nasce de uma convergência de interesses
humanos ou do impulso de algum coração generoso, mas é dom do alto, fruto da
iniciativa divina. Pensada desde sempre no desígnio do Pai, ela foi preparada
por ele na história da aliança com Israel, para que, completados os tempos,
fosse instituída graças à missão do Filho e à efusão do Espírito Santo (FORTE,
2012, p. 16).
Ocorrências bíblicas
O termo grego “εκκλησία”,
do qual deriva o termo latino “ecclesia”, donde provém “igreja”,
traduz sempre a expressão hebraica “kahal”, usada no AT para designar
Israel, desde que ele se torna o “povo de Deus”, por meio da Aliança do Sinai.
No célebre texto de Dt 23,1-9, essa expressão vem sempre acompanhada do
determinativo “do Senhor” e é traduzida como “igreja” ou “assembleia do Senhor”
(PIÉ-NINOT, 1998, p. 27).
No NT, a
frequência do termo “igreja” se torna progressiva. Nos evangelhos sinóticos só
o encontramos em Mt 16,18 (“Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha
Igreja”) e 18,17 (“Se ele não vos der ouvidos, dize-o à Igreja. Se nem mesmo à
Igreja ele ouvir, seja tratado como se fosse um pagão ou um publicano”).
Contudo, aparece outras 144 vezes no restante do NT, das quais 28 estão nos
Atos dos Apóstolos, onde é usado tanto para designar as comunidades locais (cf.
At 15,41) como para designar um âmbito mais amplo (cf. At 5,11; 9,31). Não
podemos esquecer aqui as descrições que os Atos dos Apóstolos fazem da Igreja
nascente em At 2,42-47 e At 4,32-35.
Quando Paulo
procura caracterizar o fundamento e a forma dessa comunhão de fé que é a
Igreja, ele fala de “estar em Cristo” (1Cor 3,1; Gl 3,28; 2Cor 5,17) ou ser
“corpo de Cristo” (Ef 1,22s; 4,7-16; 5,21-33; Cl 1,18; 2,19), sem abandonar
expressões que correspondam ao “povo de Deus” (Rm 9,7s.25s; Gl 6,16), dentre as
quais utiliza “Igreja de Deus” (1Cor 15,9; Gl 1,13; 1Cor 10,32; 11,22; 14),
numa linha de continuidade com o “povo de Deus” do AT. Para Paulo, falar da
Igreja significa necessariamente falar do Espírito de Cristo e seus efeitos;
por isso, para ele, a Igreja é também templo do Espírito Santo (Rm 8,9s; 1Cor
2,10s; 3,16s; 6,19; 12,1; 2Cor 3; Ef 2,19s) no qual se cumprem as promessas do
AT (2Cor 6,16).
Outra imagem da
Igreja é a “casa de Deus” edificada sobre o fundamento dos apóstolos, típica
das cartas pastorais (1Tm, 2Tm e Tt). A casa de Deus é a Igreja tanto local
como universal (SCHNEIDER, 2002, p. 66-68).
O Concílio
Vaticano II retoma todas essas imagens bíblicas para elaborar sua eclesiologia
de comunhão, de cunho sacramental, que tem como ponto de partida e de chegada a
Santíssima Trindade. Por isso ele fala de povo de Deus, corpo de Cristo, templo
do Espírito e, como tal, sacramento universal de salvação. Não é sem razão que
abre a sua constituição dogmática sobre a Igreja com a expressão “Cristo é a
luz dos povos”, demonstrando a dependência da Igreja em relação a Cristo, como
a Lua em relação ao Sol.
A mesma palavra
igreja, podemos entendê-la segundo duas etimologias possíveis. A Igreja é tanto
a convocação quanto a congregação ou reunião dos fiéis; quer dizer, a Igreja
pode considerar-se ora como a que chama, convoca todas as pessoas e as congrega
em vista da sua salvação, ora como a congregação dessas mesmas pessoas que
chegaram à fé. Ao mesmo tempo, podemos conceber a Igreja como o lugar, a casa
que reúne e abriga o povo fiel, ou esse mesmo povo reunido na casa. Os dois
sentidos são correlativos e complementares (DE LUBAC, 1970, p. 180-181).
A Igreja no Credo
A presença da
Igreja na profissão de fé remonta ao Credo Batismal Romano, de finais do século
II, seguindo imediatamente a profissão de fé no Pai, no Filho e no Espírito
Santo. É de lá que o toma o Símbolo dos Apóstolos. Essa ampliação da confissão
estritamente trinitária ocorre, em todos os credos primitivos, dentro do artigo
sobre o Espírito Santo, apesar de não aparecer nem nas fórmulas embrionárias do
NT nem nos textos dos padres apostólicos (URÍBARRI, 2013, p. 117).
Igreja: lugar da profissão de
fé
Porém, a forma
específica “creio no Espírito Santo, na santa Igreja católica”, encontramo-la
na tradição apostólica de santo Hipólito de Roma, na qual se propõe um credo
interrogativo que formula a terceira pergunta nestes termos: “Crês ‘em’ (είς)
o Espírito Santo, ‘em’ (εν) ‘a’ santa Igreja e a ressurreição da
carne?”
Como percebemos,
a formulação de santo Hipólito utiliza duas preposições distintas, em grego.
Utiliza “είς” para o Espírito Santo e “εν” para a Igreja.
Esta última expressa um sentido claramente locativo. A tradução mais correta
seria: “Crês no Espírito Santo dentro da Igreja?” (URÍBARRI, 2013, p. 118).
Essa distinção quer pôr em relevo que a Igreja não é Deus, ou seja, que o ato
de fé, de entrega absoluta, de abandono radical da própria existência, só pode
ser feito a Deus. Nós não cremos, nem podemos crer em nada além de Deus Pai,
Filho e Espírito Santo (URÍBARRI, 2013, p. 120). São Bruno de Würzburg
(1005-1045), bispo na Alemanha durante a Idade Média, expressa isso de maneira
exata: “Creio dentro da santa Igreja, mas não creio nela porque não é Deus, mas
convocação e congregação dos cristãos e casa de Deus”.[1]
Igreja: realidade de fé
Ao explicar essa
distinção, o Catecismo Romano (1,10,20) precisava: “existem realidades
que não são Deus, mas que só se compreendem ‘com os olhos da fé’”. E a Igreja é
uma delas, visto que não podemos separá-la do Espírito Santo, de quem recebe o
seu qualificativo, a santidade, e que nela opera suas outras obras: a comunhão
dos santos e a remissão dos pecados. E o Catecismo da Igreja Católica
(n. 770) explicita: “A Igreja está na história, mas ao mesmo tempo a
transcende. É unicamente ‘com os olhos da fé’ que se pode enxergar, na sua
realidade visível, ao mesmo tempo uma realidade espiritual, portadora de vida
divina”.
Como explica o
padre Henri de Lubac: “A Igreja é aqui não tanto um artigo de fé particular,
mas o lugar onde – todos eles – são pronunciados, o lugar no qual encontramos
não só o seu enunciado, mas também a realidade enunciada por eles” (DE LUBAC,
1970, p. 215-216). Ou são Rufino de Aquileia: “Assim, pois, os que até então
aprenderam a crer em um só Deus, no mistério da Trindade, devem crer ainda o
seguinte: que existe uma só Igreja santa, na qual há uma só fé e um só batismo,
e na qual se crê em um só Deus Pai, e um só Senhor Jesus Cristo, seu Filho, e
um só Espírito Santo” (DE LUBAC, 1970, p. 217).
Santo Alberto
Magno afirma que “o Espírito Santo é dado e enviado para santificar a criatura,
e essa santidade, que pode faltar nos indivíduos, não falta nunca na Igreja […]
Há que se entender que este artigo designa a obra do Espírito Santo. Este não é
considerado já somente em si mesmo, como no artigo anterior, mas agora eu creio
nele segundo sua obra própria, que consiste em santificar a Igreja por meio dos
sacramentos, das virtudes e dos dons etc.” (DE LUBAC, 1970, p. 220).
Contudo, não
basta que percebamos que o lugar da Igreja na profissão de fé depende do
Espírito Santo e que seja ele quem introduz a Igreja no coração trinitário do
mistério cristão. Precisamos entender que o Espírito Santo é em si mesmo
comunhão, comunhão do Pai e do Filho. Essa definição se projeta sobre a Igreja,
de modo que a comunhão – que define o Deus trinitário desde sua essência –
define também a essência do ser eclesial, como dom do mesmo Espírito.
Portanto, a
definição do Espírito como comunhão tem fundamental sentido eclesiológico: “Ser
cristão significa ser comunhão e, com ela, entrar na forma essencial do Espírito
Santo. Isso, contudo, só pode ocorrer graças ao Espírito Santo, que é força de
comunicação, seu mediador e possibilitador” (COMISIÓN FE Y CONSTITUCIÓN, 1994,
p. 43). Por isso, o Documento de Aparecida afirma: “Não pode existir
vida cristã fora da comunidade” (n. 278).
Igreja: sujeito da fé
Estamos falando
de fé. Dizemos: “Creio em Deus”. Porém, essa fé, em sua plenitude, onde se
encontra? Essa fórmula, onde se acha realizada em sua perfeição? Evidentemente,
não é em mim, em meu ser individual. Não se encontra em nenhum dos meus irmãos.
E seria farisaísmo odioso, em nome da ideia que eu formei – demasiado
facilmente – da fé, exigi-la a algum deles. Quem é, pois, esse “eu” que pode
afirmar sempre com segurança humilde, porém plena: “Eu creio em Deus, eu creio
em Jesus Cristo”? Quem é esse ser que, com o impulso da sua fé, sem queda, sem
ilusão enganosa, sem reservas, une-se a Cristo como a esposa se une ao seu
esposo? Quem é, precisamente, essa Esposa que o Verbo de Deus escolheu para si
e à qual se uniu, encarnando-se em carne mortal, e que ele “adquiriu para si
por seu sangue”? Esse eu que crê em Jesus Cristo não pode ser outro senão a
Igreja de Jesus Cristo. Não uma ideia criada por nós, que estaria por cima de
nós, num céu irreal. Mas a comunidade mesma dos fiéis, criada pelo poder da
Palavra, animada pelo Espírito de Cristo e na qual cada um de nós é
participante, ainda que não contribua para formá-la (DE LUBAC, 1970, p.
193-194).
Assim, cada um
de nós encontra-se simultaneamente “chamado à humildade” – ao reconhecimento de
que sua fé individual é sempre débil, raquítica e deficiente com respeito à fé
da Igreja – e livre dessa estreiteza, ao saber que, apesar de tudo, participa
da realidade plena dessa fé.
Aqui surge o que
Henri de Lubac chamou “o círculo perfeito do Credo”: a fé que confessamos é una
em razão da unidade do seu objeto, um só Deus; mas também em razão da unidade
do sujeito: a Igreja. Se a fé trinitária é comunhão, crer trinitariamente
significará necessariamente crer a caminho da plena comunhão (URÍBARRI, 2013,
p. 122-123).
Karl Barth
afirma que “para Jesus Cristo não há primeiro crentes e depois, formada por
eles, a Igreja. Primeiro existe a Igreja. Depois, por ela e nela, os crentes. E
por Igreja não se deve entender unicamente a reunião interior e invisível de
quem Deus, em Jesus Cristo, chama seus, mas também a reunião exterior e visível
de quem, no tempo, escutou e confessou o que ouviu. A fé de que é objeto Jesus
Cristo é a fé da comunidade. Um homem, por si só, sem seu semelhante, não seria
um homem; da mesma maneira, um cristão por si só, separado da comunhão dos
santos, não seria um cristão. Precisamente como membro do corpo inteiro é que
ele se acha em relação com a cabeça que o governa” (DE LUBAC, 1970, p. 187).
Igreja: instrumento da
salvação
Um costume
africano, testemunhado por santo Agostinho de Hipona – no século V –, utiliza a
preposição “per” (por meio de) antes do termo Igreja e o desloca para depois da
“remissão dos pecados” e da “ressurreição da carne”, matizando assim uma função
mediadora da Igreja na salvação da humanidade, expressa por essas duas obras do
Espírito que seriam realizadas “por meio da Igreja”.
São Rufino de
Aquileia afirma: “É preciso confessar a Igreja verdadeiramente santa, a Igreja
por meio da qual se dá a santificação aos mortais”. E Henri de Lubac comenta:
“Este ‘por meio da qual’ (per) indica a passagem […] da santidade do
Espírito aos homens através da realidade da Igreja, segundo o que a considera
como instrumento do Espírito santificador entre os homens e a contempla em seus
membros santificados” (DE LUBAC, 1970, p. 230).
As marcas da Igreja
Esta é a única
Igreja de Cristo que no símbolo confessamos “una, santa, católica e
apostólica”. Esses quatro atributos, inseparavelmente ligados entre si, indicam
traços essenciais da Igreja e da sua missão. A Igreja não os tem de si mesma; é
Cristo que, pelo Espírito Santo, dá à sua Igreja o ser una, santa, católica e
apostólica, e é também ele que a convida a realizar cada uma dessas qualidades
(CIC 811).
A Igreja é UNA
por sua fonte, a Trindade; por seu fundador, Jesus Cristo; por sua alma, o
Espírito Santo. E essa unidade existe na diversidade de dons e carismas, de
povos e culturas, de funções e modos de vida e de legítimas tradições próprias,
mantida pelos vínculos da profissão da mesma fé apostólica, celebração do mesmo
culto (sacramentos) e pela sucessão apostólica (cf. CIC 815). Essa Igreja una
subsiste na (“subsistit in”) Igreja católica (LG 8), sem a possibilidade de ser
perdida (cf. CIC 820). Rupturas (heresia, apostasia e cisma) acontecem graças
aos pecados das pessoas que a compõem.
A Igreja é SANTA
porque Cristo, o santo, a santificou, entregando-se por ela para torná-la sua
esposa “sem ruga e sem mancha, resplandecente de beleza” (Ef 5,25-27). É o povo
santo de Deus. Santo porque é de Deus. Sua santidade não é sua, mas dom do
Espírito, que é sua alma e a santifica. Na terra, ela está ornada de verdadeira
santidade, porém ainda imperfeita. É santa mesmo congregando pecadores já
alcançados pela salvação de Cristo, mas ainda em via de santificação. Por isso,
santa e sempre necessitada de conversão.
“A Igreja é
CATÓLICA, ou seja, “universal, conforme a totalidade”, porque nela está o
“Cristo todo”, cabeça e corpo, e porque foi enviada por Cristo à totalidade do
gênero humano (Mt 28,19), para convocá-lo e congregá-lo num só povo de Deus” e
de Cristo recebe a plenitude dos meios da salvação (AG 6). A Igreja é católica
em cada Igreja particular, pois “é nelas e a partir delas que existe a Igreja
católica una e única” (LG 23). Estas são católicas pela comunhão com uma delas:
a Igreja de Roma.
A Igreja é
APOSTÓLICA enquanto continua sendo construída sobre o fundamento dos apóstolos
(Ef 2,20; At 21,14); enquanto conserva e transmite os ensinamentos ouvidos dos
apóstolos (2Tm 1,13-14); enquanto continua a ser ensinada, santificada e
governada pelo colégio apostólico em união com o sucessor de Pedro.
“Só a fé pode
reconhecer que a Igreja tem essas propriedades da sua fonte divina” (CIC 812).
Por fim,
recorrendo ao testemunho dos santos padres, podemos afirmar: ela é a que
confessa a Trindade. Ela é a que louva e dá graças. Ela é a que espera e
aguarda a volta do seu Senhor (são Gregório). Ela é a que dele dá testemunho
com uma fé sem desfalecimento, frutificando no mundo inteiro (santo Irineu).
Ela é a que, adiantando-se na fé, ora e trabalha, buscando em tudo o
cumprimento da vontade divina (LG 17.25). Ela é quem o Espírito de Cristo
congrega e unifica. Ela é quem o Espírito Santo ilumina e guia por meio de sua
longa peregrinação pela terra (Isaac da Estrela). Ela é a que, enquanto a visão
face a face, fiel na provação e na obscuridade, resistindo a todo obstáculo,
conserva zelosamente o depósito recebido (santo Irineu). A Igreja é para cada
um de nós o arquétipo do perfeito sim, e por isso pedimos: “Não olheis os
nossos pecados, mas a fé que anima a vossa Igreja” (DE LUBAC, 1970, p. 196).
Bibliografia
Comisión Fe y
Constitución. Confesar la fe común: una explicación ecuménica de la fe
apostólica según es confesada en el Credo niceno-constantinopolitano.
Salamanca: Universidad Pontificia, 1994.
de Lubac, Henri.
La fe cristiana. Madrid: FAX, 1970.
Forte, Bruno. Eis
o mistério da fé. Prior Velho: Paulinas, 2012.
Pié-Ninot,
Salvador. Introdução à eclesiologia, São Paulo: Loyola, 1998.
Schneider,
Theodor (Org.). Manual de dogmática. Petrópolis: Vozes, 2002. v. II.
UríbaRRI, Gabino
(Ed.). El corazón de la fe: breve explicación del credo. Santander:
Salterrae, 2013.
Jean Poul Hansen
Padre da Diocese da Campanha (MG). Estudou Teologia no Instituto
Teológico Interdiocesano São José, em Pouso Alegre (MG). É membro da equipe de
redação da Revista ECOando e atualmente faz o curso de mestrado em Teologia
Dogmática na Pontifícia Universidade de Salamanca, na Espanha. E-mail:
hpj76@hotmail.com
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Fonte: Vida Pastoral
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