Uma das
discussões mais recorrentes que tenho, tanto no meu trabalho quanto nas
relações pessoais, é a respeito da questão da alma. De fato,
estou cercado de “espiritualistas” e “materialistas” que insistem em me
bombardear, a todo momento, com verdadeiras “catequeses” a respeito de suas
posições filosóficas (seria talvez mais preciso dizer “religiosas”) e
insistindo para que eu tome uma posição: entre corpo e alma,
de que lado eu fico?
Sobre
a “dominação mítica e as fábulas religiosas cruéis”
Este é mais
um daqueles falsos dilemas em que somos, atualmente, apresentados nos debates e
nas conversas, sejam as presenciais, sejam as virtuais, em redes sociais e
similares. Tenho muitos amigos materialistas, ou assim declarados, que querem
me convencer de que os “espiritualistas” estão errados, e que simplesmente não
existe e nem pode existir algo como uma “alminha” que pilota o corpo humano, um
“espírito” que habita em nós misteriosamente e que precede, sobrevive ou mesmo
independe do corpo, e que a ele se junta acidentalmente em determinado tempo.
Este mito “metafísico” é, dizem eles, a sobrevivência de velhos conceitos
supersticiosos que precisam ser destruídos pela ciência e pela racionalidade
contemporâneas. O corpo seria tudo: “toda física e toda metafísica, todo o
sagrado e todo o profano, toda consciência e toda inconsciência”, como um
deles me afirmou, categoricamente. Todo o resto, toda a metafísica que defende
a existência desse “fantasma esotérico” (como ele chamava a alma humana) seria
simplesmente o recurso moralista daqueles que “odeiam o
corpo, odeiam a liberdade humana”. Assim, liberdade seria simplesmente a
possibilidade de dizer sim a qualquer libido, a qualquer
desejo, a qualquer inclinação corporal que não implique a destruição do corpo.
O mais seria mera “dominação mítica, fábulas religiosas cruéis”. “Que nos deram
vocês, os espiritualistas”, disse-me este meu amigo, “senão a repressão injusta
e detestável dos prazeres corporais, em nome das suas fraquezas metafísicas?
Vocês não admitem o culto do corpo, porque amam a repressão e a morte. Que
fiquem com a morte, vocês que amam o martírio. Deixem a vida para nós, que
somos fortes o suficiente para viver sem as ilusões religiosas dos fracos.
Renunciaremos a este dualismo medieval entre corpo e alma,
quando assumirmos a realidade exclusiva do corpo e do sim a
todas as suas exigências!”
Espiritualistas
Que adiantaria
explicar ao meu interlocutor que não sou nenhum “espiritualista”, no sentido
dualista que ele estava colocando? A sua “fé” materialista não admitiria
nenhuma contestação. Ele chegou a me dizer: “Você duvida que o corpo é tudo?
Experimenta passar fome, mendigar e dormir ao relento e adoecer. Você verá como
mudarão seus pensamentos. Porque nossas convicções todas são apenas estados
mentais, que refletem as necessidades de nosso corpo. E nossos medos e desejos
são os medos e desejos de nosso corpo.” Ele só não me explicou como chegou a
descobrir isto sem ter experimentado pessoalmente (como eu
sei que ele não experimentou) nenhum desses sofrimentos.
Mas os
verdadeiros “espiritualistas”, aqueles que adotam a dualidade entre “corpo e
alma”, não estão ausentes de nossas conversas no cafezinho. Tanto aqueles que
se dizem cristãos e desprezam “as coisas deste mundo”, que seria o “mundo de
Satanás”, em prol de uma salvação etérea e estritamente “espiritual”, que não
envolverá o nosso corpo, mas apenas nossa alma enviada
a um “paraíso” de anjinhos e harpas, quanto aos “espíritas” das mais diversas
matizes, que acreditam que nós somos apenas “alminhas” presas num corpo
“grosseiro” para fins de aperfeiçoamento e “evolução espiritual”; a alma e o
corpo seriam, então, para estes, dois entes completamente
estranhos entre si, e mais: para eles somente à alma pertence
verdadeiramente a natureza humana.
O corpo
não é mera extensão e a alma não é mero pensamento
imaterial
Em determinado
momento da conversa, eu tomei a palavra e disse: “Não posso concordar com a
proposição de que o corpo é mera extensão, e a
alma, mero pensamento imaterial. Esta, aliás, não é uma ideia
medieval, mas o exato centro da filosofia cartesiana, que é
moderna.” Como notei que eles estavam atentos, prossegui: “Eu entendo e defendo
que o corpo é uma coisa individualizada pela matéria. De fato, um
boneco de pano é um corpo, e uma pessoa humana também é um corpo.O
que nos torna, a nós humanos, qualitativamente diferentes de qualquer outro
amontoado de matéria é a nossa forma, amigo. Um corpo é uma
coisa individual com uma forma, portanto, de
fato, um corpo é uma unidade, e não possui nada fora de
si mesmo; portanto, de fato não há fantasminhas humanos no
sentido que vocês, materialistas, combatem. Mas os seres corporais não são
uma simplicidade, como sua fala materialista parece reduzir – O
corpo é uma unidade de forma e matéria.
Mas ser uno é diferente de
ser simples.”
“Como assim?”
Perguntou-me o materialista.
“Fácil”,
respondi. “Pense num carro. Convenientemente, há um automóvel que se chama
'Uno'; e, embora de fato ele seja “uno', ele não é simples:
é composto de várias peças, partes, que, juntadas numa determinada ordem,
constituem-no como carro. Esta ordem é o que chamo de forma.”
“Um corpo”,
prossegui, “é, já em si mesmo, um composto uno, individual e indivisível de matéria e forma;
a forma lhe dá inteligibilidade, a matéria lhe dá alteridade
ou individualidade. Matéria e forma compõem o corpo, e não
existem fora dos corpos que compõem, e portanto você, no seu materialismo
grosseiro, está certo em dizer que não há nada além do corpo com individualidade na
realidade. Os números matemáticos, por exemplo, não têm matéria, mas existem.
Existem, portanto, apenas nas mentes. Se não houvesse
ninguém para pensá-los, eles não existiriam. Isto não significam que sejam
irreais, mas não têm individualidade: se eu e você pensamos ao
mesmo tempo no número dois, ele existe simultaneamente na
minha mente e na sua; mas um ser corporal só existe em um
lugar, e portanto a sua realidade é seu corpo!”
“O problema”,
prossegui, “é que a forma de um corpo não é sua matéria,
já que todos os corpos têm matéria; a forma especifica o corpo na sua inteligibilidade.
Uma pedra não é uma formiga, e esta não é
um ser humano. Um prato de almoço não é
um vaso sanitário, como imagino que você já teve oportunidade de
descobrir (espero que sim...). O que diferencia os dois não é a porcelana,
que é a matéria que os compõem, mas a forma que
têm...”
A alma é
a própria forma do corpo
“Os seres
vivos", prossegui, “têm, ademais, algo em sua forma que
os diferencia dos seres inertes, e isto consiste na sua capacidade de
serem causa do próprio movimento. A isto se chama alma:
uma forma corporal capaz de ser causa do próprio movimento. Nada esotérico,
nada metafísico, nada religioso. O meu amigo 'espiritualista” está errado,
creio. A alma não é, como ele diz e você nega, um algo no
corpo. Ela é a própria forma do corpo, sem a qual o corpo vivo
nem seria corpo."
Continuei: “Dá
para pensar isto até no plano estritamente empírico: se um corpo não
causa seu próprio movimento, sua forma é inerte.
Se causa, sua forma é ativa, e se chama alma.
Ser corpo dotado de forma ativa, ou alma, é
o que compartilhamos com todos os seres vivos – é a nossa
natureza comum com eles”.
À forma corporal
que, além de ser causa do próprio movimento,
é ainda capaz de reflexão filosófica, moral e religiosa, chamamos de espírito.
“Há algo, no
entanto, que especifica a forma humana, frente às outras formas
do gênero animal. Se de fato compartilhamos com os animais uma forma capaz de
ser causa do nosso movimento, e portanto a nossa forma pode
ser chamada, como a dos animais e vegetais, de alma, nós não
compartilhamos com eles a nossa capacidade de reflexão, seja
filosófica, seja religiosa, seja moral. Eu nunca discuti filosofia ou religião
com nenhum animal que não fosse humano! À forma corporal
que, além de ser causa do próprio movimento, é ainda capaz de
reflexão filosófica, moral e religiosa, chamamos de espírito. Mas
ele não existe na realidade que se apresenta a nós senão como forma de
alguma coisa, de um ser humano real e concreto,
e portanto não me peça para concordar com todos esses 'espiritualistas' e
'espíritas' que negam o valor da matéria e consideram o 'espírito'
humano como um ser em si mesmo. Ele não é! Se ele subsiste ou não à morte, é
algo que não está em discussão aqui.
Mas se o
espírito humano fosse um ser completo em si mesmo, seria inteligível
defender a existência, por exemplo, de 'almas femininas em corpos masculinos',
e a necessidade de mutilação do corpo, neste caso, para
supostamente adaptar o corpo, que seria inferior, à alma,
como ente superior à matéria e perfeito em si mesmo, o que soaria como um absurdo
filosófico a qualquer pensador que parta de onde partimos. Ora, se a
alma é simplesmente a forma do corpo, então não há nenhuma coerência em
nem sequer pleitear a eventual existência de uma alma que
tivesse em si mesmo uma forma diversa daquela do corpo que
ela constitui. Quaisquer eventuais desajustes de identidade, aí,
estariam no plano psicológico ou emocional, e
não no plano do ser".
A essa altura,
ambos os debatedores entreolharam-se, e concordaram em dizer-me simplesmente: “você
complica demais as coisas!” E foram discutir em outro lugar.
Paulo Vasconcelos Jacobina
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ZENIT
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