Já
faz um tempo que o horror aconteceu. Traumatizante, inacreditável,
devastador. Já faz uma semana e é tão absurdo e chocante que é como se nem
tivesse acontecido – parece uma lenda bizarra, de extremo mau gosto, uma
história de terror doentia, inserida em lugares e épocas escuras e bárbaras. Já
faz uma semana que um menino de 2 anos, indefeso e frágil, foi assassinado a
sangue frio, em pleno colo da mãe, num espaço público, à luz do dia.
O
horror indizível que aconteceu já faz uma semana não foi na Síria torturada
pelo Estado Islâmico. Não foi na Nigéria martirizada pelo Boko Haram, nem no
Afeganistão açoitado pelos Talibãs, nem na Somália destripada pelo Al-Shabaab.
O crime estarrecedor aconteceu no Ocidente democrático do século XXI.
O
pequeno Vitor, com sua fome de menino de 2 anos, estava sendo amamentado nos
braços da mãe, Sônia, quando um passante fez um carinho em seu rosto infantil.
Mas eis que, de repente, o afago comovente daquele estranho de mochila e boné
se transformou por absurdo em um terror abominável, em forma de lâmina que
penetrou afiada e assassina no pescoço da criança, rasgando de modo covarde,
brutal, inimaginável, a vida de um menino de 2 anos, a sangue frio, em pleno
colo da mãe, num espaço público, à luz do dia.
Nem
é preciso dizer, é claro, que este escândalo histórico sacudiu imediatamente
todos os cantos do Brasil, começando pela indignada população da cidade-palco
da cena tétrica, a catarinense Imbituba, que se levantou e saiu às ruas em
choque, mas vestida de verde e amarelo, empunhando faixas e brados que exigiam
com veemência a paz, a vida, a defesa dos direitos das crianças e das mães! Não
houve dia, desde então, sem que todos os jornais e telejornais do país inteiro
dedicassem ampla cobertura ao fato absurdo, impossível de se acreditar, e sem
que todas as cidades do Brasil se unissem num abraço único, em protesto
retumbante diante da violência inconcebível e inaceitável, em solidariedade
para com Sônia, em memória do pequeno Vitor, em reflexão profunda sobre o que
teria levado uma nação democrática a se tornar cenário, em pleno século XXI, de
um ato de tamanha selvageria.
Todos
os brasileiros, sem nenhuma exceção que não fosse a do próprio monstro
homicida, se manifestaram num misto de choque, incredulidade, trauma,
indignação, vontade irrefreável de fazer o que quer que fosse preciso para que
tamanha bestialidade jamais pudesse voltar a repetir-se nem sequer remotamente.
Da presidência da República ao governo de Santa Catarina, da prefeitura de
Imbituba a todas as seções da Ordem dos Advogados do Brasil, do senado federal
à última câmara de vereadores do mais longínquo rincão da pátria, ninguém se
furtou a chorar em público pelo destino brutal imposto a Vitor em pleno colo da
mãe. Missas e rosários foram rezados por todas as dioceses, por todas as
paróquias, em intenção fervorosa da alma de Vitor, em súplica ardente pela
serenidade da mãe e do pai, em heroico pedido de conversão do coração do
assassino. Flores, coroas e velas acesas foram acumuladas nas calçadas da
rodoviária de Imbituba, elevadas espontaneamente a santuário e memorial de uma
vida extirpada pelo mais estarrecedor dos atos terroristas que poderiam
esfaquear um país civilizado em qualquer tempo de sua história. A foto das
sandálias infantis do pequeno Vitor, esquecidas na calçada da rodoviária de
Imbituba na tarde horrenda do seu assassinato, entraram para o álbum imortal
das mais dolorosas imagens históricas do nosso país.
Era
30 de dezembro de 2015. Era meio-dia. O Brasil parou assim que a vida de Vitor
foi parada. As celebrações de fim de ano ficaram todas em segundo plano. O
horror da história de Vitor, interrompida abruptamente, foi tão descomunal que
era quase impossível acreditar que tal história fosse verdadeira.
Acontece
que, de fato, essa história não é verdadeira.
Não
toda ela. Só uma pequena parte é verdadeira – o resto é todo falso. E as partes
falsa e verdadeira não são as únicas duas em que essa história se divide. Ela
se divide também numa parte óbvia e numa parte absurda. A parte óbvia é a parte
verdadeira, enquanto a parte absurda é a parte falsa, seria de supor-se – mas
esta suposição está errada. A parte absurda é que é a verdadeira. A parte óbvia
é que é a falsa.
A parte dessa história que vai do Parágrafo 1 até o
Parágrafo 4 é absurda – mas verdadeira. A parte da história que vai do
Parágrafo 5 ao Parágrafo 7 deveria ser a mais óbvia das continuações dessa
absurda história verdadeira – mas é falsa. Escandalosamente falsa.
Imoral da história. Quase ninguém
chorou por Vitor. Quase ninguém se chocou mais que momentaneamente com a morte
absurda de Vitor. Quase ninguém foi a público, declarando-se violentado como
brasileiro por causa do assassinato estrondoso de Vitor, para exigir um basta.
Vitor Pinto,
afinal, era um menino indefeso de 2 anos – mas era índio.
Vitor Pinto estava
sendo amamentado pela mãe quando foi selvagemente degolado em seu colo – mas
era um índio.
Vitor Pinto foi
assassinado à luz do meio-dia em plena estação rodoviária – mas era só um
índio.
Vitor Pinto
tinha chegado de uma viagem longa para acompanhar a mãe que vinha tentar vender
seu artesanato no litoral – mas não era nada mais do que um índio.
Um desses índios
que estamos acostumados a reduzir indistintamente a sujos, fedidos, vagabundos,
imprestáveis, arrematando com a etiqueta do “são todos iguais”. Um desses
índios que tentam vender seu artesanato nas rodoviárias do Brasil, mas que
estamos acostumados a escorraçar porque atrapalham o público e prejudicam a
paisagem. Um desses índios que, com séculos de atraso, as teorias jurídicas do
Ocidente admitiram que até são gente, mas que hoje preferimos confundir com
meras personificações ambulantes de ideologias questionáveis (como se eles
próprios fossem os arquitetos dessas ideologias). Um desses índios que têm o
desplante de nos esfregar na cara que ainda vivemos numa colônia remota do
século XVI.
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Aleteia
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