A comemoração do Batismo de Nosso Senhor Jesus
Cristo encerra com chave de ouro o Tempo do Natal. Grande festa para os
católicos, porque é neste Batismo, como veremos, que está incluído o nosso e,
portanto, o início da participação de cada um na vida sobrenatural, na vida de
Deus. Adão fechou a seus descendentes as portas do Paraíso Celeste, mas Nosso
Senhor Jesus Cristo, com a Encarnação, abriu-as outra vez, tornando possível
aos homens, graças a seu divino auxílio e proteção, gozar do convívio com Ele,
com o Pai e o Espírito Santo, com os Anjos e os Bem-aventurados por toda a
eternidade. Tendo comentado em outras ocasiões1 os aspectos teológicos do Batismo
do Senhor, analisemos agora este admirável mistério por uma perspectiva
diversa, útil para nosso progresso espiritual.
COMENTÁRIOS DOS TEXTOS
BÍBLICOS
Leituras: Isaías 42, 1-4.6-7; Atos 10,34-38; Mateus
3,13-17
Naquele tempo, 13 Jesus
veio da Galileia para o rio Jordão, a fim de Se encontrar com João e ser
batizado por ele.
Qual teria sido a intenção de Nosso Senhor
Jesus Cristo ao escolher o rio Jordão para seu Batismo? Não haveria outro melhor
do que este? O Jordão, que se nos afigura como um rio mítico, é na verdade
pequeno em comparação com os caudalosos cursos fluviais da América. Entretanto,
mais uma vez, apesar da aparência de normalidade, algo de grandioso acontece
no plano da fé. Tratava-se de um rio emblemático na história de Israel,
revestido de um enorme simbolismo teológico e criado por Deus com vistas ao
Batismo de Nosso Senhor. Quando os judeus saíram da escravidão do Egito e
entraram na Terra Prometida, onde viveriam em liberdade, Josué abriu as águas
do Jordão para que o povo eleito o atravessasse (cf. Js 3, 15-17). O Jordão
representava a linha divisória entre a terra do tormento, da penitência, da
dor, e a terra onde corria leite e mel. Assim, o Batismo de Nosso Senhor abre
ao povo eleito do Novo Testamento, os chamados a pertencer à Igreja, a
possibilidade de deixarem para trás a escravidão do pecado e de serem introduzidos
no Reino de Deus,4 onde corre o leite e o mel das consolações, das alegrias
espirituais.
14 Mas João protestou,
dizendo:
“Eu preciso ser batizado
por Ti, e Tu vens a mim?”
São João preparava os caminhos do Senhor na
mais completa submissão a Ele. Certamente tinha o discernimento dos espíritos
e estava tomado pelo Espírito Santo, que lhe revelara quem era Jesus (cf. Jo 1,
33). Por isso, quando ele O vê aproximar-Se a fim de receber o batismo de
penitência de suas mãos, em seguida reconhece n’Ele o Messias. Era para sua
chegada que o Precursor preparava as pessoas com o batismo, pelo que, sem
hesitação alguma, O aponta aos outros: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o
pecado do mundo” (Jo 1, 29). Aquele era o Redentor, Aquele era Deus, pois
existia antes dele (cf. Jo 1, 15), embora fosse seis meses mais velho.
Nessas circunstâncias, criava-se nele um
choque psicológico, psicoteológico e, inclusive, vocacional: como haveria ele
de batizar quem não precisava de Batismo? Perfeita atitude daquele que possuía
uma fé em grau heroico, conforme o testemunho de sua ímpar santidade dado por
Nosso Senhor: “entre os nascidos de mulher não há maior que João” (Lc 7, 28).
Ele foi o maior homem que a História conhecera até aquele momento, excluído, é
claro, o próprio Jesus Cristo, o Homem-Deus. Por este motivo, manifesta sua fé
declarando ser ele quem devia ser batizado pelo Messias, e se sente
constrangido diante da possibilidade de batizá-Lo.
São os paradoxos com que se depara, não raras
vezes, quem é chamado a uma grande missão e se sente inferior a ela. São João
preferia não batizar seu Deus, nessa hora, e ser batizado por Ele. Não podia
compreender um ato de subordinação d’Aquele cujos caminhos vinha aplainando,
mas Jesus o tranquiliza.
15a Jesus, porém, respondeu-lhe:
“Por enquanto deixa como está, porque nós devemos cumprir toda a justiça!”
Se bem que Nosso Senhor não negasse que São
João deveria ser batizado por Ele, ainda que não houvesse pecado, deu a razão
suprema pela qual desejou o Batismo. A justiça a que Ele se referia na resposta
ao Precursor consistia no seguinte: era preciso cumprir a Lei e as profecias. A
divina Justiça exigia uma reparação por nossos pecados. Por isso, tendo Se
encarnado, quis Ele, a Inocência, como primogênito do gênero humano, assumir
sobre Si os crimes e misérias de toda a humanidade e entrar no Jordão a fim de
submergi-los nas águas. Assim, tirava esse pesado fardo de nossas costas e
destruía a “maldição que se fundava na transgressão da Lei”.5
5b E João concordou.
Expressa a suprema vontade do Divino Mestre,
João concorda e, fiel à ordem recebida, obedece, ignorando todas as aparências.
Não se preocupa com a desproporção entre a estreiteza e simplicidade do rio
Jordão e a grandeza de Nosso Senhor Jesus Cristo, que mereceria ser acolhido
com mais dignidade, transportado quiçá numa sede gestatória. Ele só considera o
que a fé lhe mostra: que ali está o Messias prometido, o Salvador de Israel, o
Redentor do gênero humano, que ali está o Filho de Deus feito Homem (cf. Jo 1, 34).
16 Depois de ser
batizado, Jesus saiu logo da água. Então o Céu se abriu e Jesus viu o Espírito
de Deus, descendo como pomba e vindo pousar sobre Ele.
Ao mesmo tempo que a vida de Nosso Senhor
transcorre no apagamento, há situações de marcante esplendor, formando um
belíssimo contraste. Porque se, de um lado, Ele nasce numa pobre Gruta, por
outro, do Oriente vêm os Reis Magos para visitá-Lo, trazendo ricos presentes.
Algo parecido ocorre no episódio contemplado hoje. Jesus, após um curto diálogo
com o Precursor, entra no Jordão, é batizado como os outros e sai das águas. É
então que se dá um acontecimento grandioso: o Céu se abriu, significando que o
acesso à bem-aventurança, antes fechado à humanidade decaída em virtude do
pecado de Adão, fora aberto pelo poder e pela Redenção de Cristo. Ademais, era
apropriado, como afirma São Tomás, que o Céu se tivesse aberto quando o Filho
de Deus recebeu o Batismo, para indicar “que o caminho do Céu está aberto para
os batizados”.6
Também era conveniente que se visse o Espírito
Santo, porque sendo a Redenção obra da Santíssima Trindade, devia tornar-se
patente, em certo momento, que as três Pessoas Divinas estavam unidas para
conceder o perdão dos pecados e franquear o Céu aos homens.7 E apareceu sob a
forma de pomba porque era preciso um elemento concreto que exprimisse
inequivocamente a descida do Espírito Santo sobre Nosso Senhor e sobre todos
os batizados.8 Estava o Filho, manifestou-Se o Espírito Santo e se ouviu a voz
do Pai.
17 E do Céu veio uma voz
que dizia: “Este é o meu Filho amado, no qual Eu pus o meu agrado”.
A conclusão da cena nos abre os olhos para um
dos ensinamentos mais importantes desta Liturgia. Ao constituir o universo,
Deus teve como modelo Nosso Senhor Jesus Cristo, a Segunda Pessoa da
Santíssima Trindade Encarnada, em quem está representado, numa síntese
perfeitíssima, o conjunto das criaturas. Ele é, no dizer de São Paulo, “o primogênito
de toda a criação. N’Ele foram criadas todas as coisas nos Céus e na Terra, as
criaturas visíveis e as invisíveis. Tronos, Dominações, Principados,
Potestades: tudo foi criado por Ele e para Ele” (Col 1, 15-16). Ele é, pois, a
causa efetiva e exemplar de tudo quanto foi feito.
Desde toda a eternidade, Deus concebeu a criação
― os minerais, os astros, a vegetação, os animais, segundo as suas espécies, os
homens, na sua variedade de inteligência e temperamento, os Anjos, na sua
incalculável diversidade ― com o projeto, por assim dizer, de engendrar filhos
para Si. No entanto, que meio encontrou Ele para fazer com que simples criaturas
contingentes transpusessem o abismo que separa a natureza divina das demais
naturezas, o infinito do finito, e participassem de sua natureza, adquirindo a
filiação divina? Isso se fez possível com a maravilha sobrenatural da graça ―
sexto plano da criação ―, pela qual as criaturas racionais participam da
própria vida de Deus e se tornam seus filhos. Uma só “gota” de graça vale mais
do que todo o universo, já que ― explica São Tomás9 ― pertence ela à ordem
divina, infinitamente superior a qualquer natureza criada. Ora, o supremo
arquétipo desta filiação divina autêntica é Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho
por excelência, inimaginável, insuperável, conforme o Pai revela na teofania
posterior ao Batismo: “Este é o meu Filho amado, no qual Eu pus o meu agrado”.
Tanto amou Deus esta filiação realizada por
Jesus com a maior perfeição, que colocou bem junto a Ele sua Mãe Virginal, com
quem o Espírito Santo gera sobrenaturalmente uma multidão inumerável de filhos,
que Deus “predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que
este seja o primogênito entre uma multidão de irmãos” (Rm 8, 29). São as águas
do Batismo que nos elevam da condição de simples criatura, amaldiçoada pelo pecado,
para fazer parte da família divina.
O Batismo de Jesus, que a Igreja comemora
neste dia, abre as portas para a instituição do Batismo sacramental, pelo qual
se reproduzem os filhos adotivos de Deus através do Filho Unigênito “muito
amado”, conforme comenta São Tomás: “Para que algo seja aquecido, deve sê-lo
pelo fogo, pois só se obtém a participação em algo através daquilo que tem a
mesma natureza; assim também a adoção filial deve ser feita por meio do Filho,
que o é por natureza”.10
PARA REFLETIR
Toda a pregação de Nosso Senhor Jesus Cristo e
da Igreja tem como núcleo o convite para sermos filhos de Deus pelo Batismo.
Este é um dos maiores milagres que é possível fazer. Se alguém transformasse um
pedregulho em colibri, faria um milagre muito menor do que o operado no
Batismo. Entre a pedra e o colibri há certa proporção, pois ambos pertencem à
natureza material. Mas, tornar uma criatura humana partícipe da natureza
divina é um salto infinito, que Nosso Senhor nos concede com o Batismo.
Poder-se-ia objetar que Filho, de fato, é só
Jesus Cristo, o Unigênito de Deus, e que nós somos apenas filhos por adoção, filiação
cujo alcance não passaria de uma mera formalidade jurídica, um título
honorífico desprovido de valor intrínseco. Não obstante, a Escritura afirma com
clareza que essa filiação adotiva é muito mais substanciosa do que a adoção
concebida em termos humanos.
Um dos maiores empenhos de Nosso Senhor
durante sua permanência entre os homens foi o de vincar em nosso interior a
convicção de que somos autênticos filhos de Deus. Por isso, ao encontrar-se com
Jesus, Nicodemos ouve de seus divinos lábios: “Em verdade, em verdade te digo:
quem não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus” (Jo 3, 3). Nascer de
novo significa ter Deus como Pai, verdadeiramente… É um outro nascimento!
Quando nos ensina a oração perfeita, diz o Mestre: “Pai Nosso” (Mt 6, 9); e,
depois da Ressurreição, prepara seus discípulos para a Ascensão, anunciando:
“Subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus” (Jo 20, 17). Demonstra
com estas palavras que somos irmãos d’Ele, filhos do mesmo Pai. Esta fundamental
doutrina é ainda frisada por São João, no prólogo de seu Evangelho: “a todos
aqueles que O receberam, aos que creem no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem
filhos de Deus” (Jo 1, 12); e na sua Primeira Epístola: “Considerai com que
amor nos amou o Pai, para que sejamos chamados filhos de Deus. E nós o somos
de fato” (I Jo 3, 1). O Apóstolo não é menos incisivo ao insistir com os gálatas:
“já não és escravo, mas filho. E se és filho, então também herdeiro por Deus”
(Gal 4, 7); ou, com os romanos: “somos filhos de Deus. E, se filhos, também
herdeiros, herdeiros de Deus, co-herdeiros de Cristo” (Rm 8, 16-17).
Refutando os erros de certos teólogos heterodoxos
que defendiam ser o Batismo apenas uma capa, uma cobertura posta por cima da
nossa corrupção, o Concílio de Trento definiu que os batizados “se tornaram
inocentes, imaculados, puros, sem mancha, filhos diletos de Deus”;11 e explica
que, pela justificação, o pecador passa “do estado no qual o homem nasce filho
do primeiro Adão, ao estado de graça e ‘de adoção dos filhos de Deus’ (Rm 8,
15)”.12
Sim, filiação real, porque por meio deste
Sacramento Deus enxerta em nós sua própria vida. Não, portanto, à maneira de um
reboco extrínseco a uma parede e que de si não a modifica interiormente, mas
como se alguém, por milagre, injetasse ouro nessa mesma parede, a ponto de
quase não mais se ver areia ou reboco, mas tão só o precioso metal. Esta figura
é ainda inadequada e pobre para exprimir o que se opera na alma quando lhe é
infundida uma qualidade sobrenatural que a torna deiforme, ou seja, semelhante
a Deus em sua própria divindade. E com a graça santificante a alma recebe, por
ação divina, as virtudes ― fé, esperança, caridade, prudência, justiça,
fortaleza, temperança ― e os dons do Espírito Santo ― sabedoria, entendimento,
ciência, conselho, piedade, fortaleza, temor ―, pelos quais passa a agir como
Deus.
Neste mundo, quantas vezes as pessoas anseiam
por conseguir uma vaga num colégio, num emprego, num clube, ou em outros
lugares que as possam prestigiar. Ora, no Céu temos reservada uma vaga eterna,
um trono extraordinário, uma coroa de glória, a partir do momento em que as
águas batismais nos caem sobre a cabeça, constituindo-nos herdeiros de Deus e
garantindo-nos o convívio com Ele na felicidade sem fim.
E o grande problema de nossos dias é ter sido
esquecida esta verdade. Vivemos numa civilização ― se assim a podemos chamar ―
feita de pecado, especialmente a impureza, a revolta contra Deus e o
igualitarismo. Nela, a humanidade ignora o que há de principal na existência: o
chamado para essa filiação divina. Quanto precisaríamos crescer na devoção ao
nosso Batismo pessoal, ao Batismo dos outros com quem nos relacionamos! Que
veneração deveríamos conservar pela pia batismal onde fomos batizados! Como
teríamos de celebrar com fervor o dia do nosso Batismo, considerando-o muito
mais importante do que o próprio dia do nascimento, porque nele nascemos para
a vida sobrenatural, nascemos para o Céu! Eis a maravilha que nos lembra a
festa do Batismo de Nosso Senhor Jesus Cristo.
____________________
1) Sobre o tema ver também: CLÁ DIAS, EP, João
Scognamiglio. O Batismo do Senhor. In: Arautos do Evangelho. São Paulo. N.13
(Jan., 2003); p.6-11; No Batismo, Ele lavou nossas misérias. In: Arautos do
Evangelho. São Paulo. N.133 (Jan., 2013); p.10-17; Comentário ao Evangelho da
Festa do Batismo do Senhor – Anos B e C, nos Volumes III e V desta coleção,
respectivamente.
2) Cf. SÃO BERNARDO. Sermones de Tiempo. En la
Vigilia de Navidad. Sermón I, n.4. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 1953, v.I,
p.231.
3) SÃO JOÃO DE ÁVILA. Sermones de Tiempo, 5.
Epifanía, I. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 1953, v.II, p.125.
4) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica.
III, q.39, a.4.
5) SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilía XII, n.1. In:
Obras. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo (1-45). 2.ed. Madrid: BAC,
2007, v.I, p.222.
6) SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., a.5.
7) Cf. Idem, a.8.
8) Cf. Idem, a.6, ad 2-3.
9) Cf. Idem, I-II, q.112, a.1.
10) SÃO TOMÁS DE AQUINO. Super Epistolam
Sancti Pauli Apostoli ad Ephesios lectura. C.I, lect.1.
11) Dz 1515.
12) Dz 1524.
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