Na sexta-feira, enquanto Donald Trump tomava posse em
Washington, o papa Francisco concedia no Vaticano uma longa
entrevista ao EL PAÍS, em que pedia prudência ante os alarmes acionados com a
chegada do novo presidente dos Estados Unidos – “é preciso
ver o que ele faz; não podemos ser profetas de calamidades” –, embora
advertindo que, “em momentos de crise, o discernimento não funciona” e os povos
procuram “salvadores” que lhes devolvam a identidade “com muros e arames farpados”.
Durante uma hora e 15minutos, num aposento simples da Casa de
Santa Marta, onde mora, Jorge Mario Bergoglio, que nasceu em Buenos Aires há oito décadas e caminha rumo ao
quarto ano de pontificado, afirmou que “na Igreja há santos e pecadores,
decentes e corruptos”, mas que se preocupa sobretudo com “uma Igreja
anestesiada” pelo mundanismo, distante dos problemas das pessoas.
Às vezes com um típico
humor portenho, Francisco demonstra estar ciente não só do que ocorre dentro do
Vaticano, mas na fronteira sul da Espanha e nos bairros carentes de Roma. Diz
que adoraria ir à China (“quando me convidarem”) e que, embora de vez em quando
também dê seus “tropeços”, sua única revolução é a do Evangelho.
O drama dos refugiados marcou-o fortemente (“aquele homem
chorava e chorava em meu ombro, com o salva-vidas na mão, porque não tinha
conseguido salvar uma menina de quatro anos”), assim como as visitas às
mulheres escravizadas pelas máfias da prostituição na Itália. Ainda não se sabe
se será Papa até o fim da vida ou se optará pelo caminho de Bento XVI.
Admite que, às vezes, sentiu-se usado por seus compatriotas argentinos.
Pergunta. Santidade, o que
resta, depois de quase quatro anos no Vaticano, daquele padre das ruas, que
chegou de Buenos Aires a Roma com a passagem de volta no bolso?
Resposta. Que continua sendo das ruas. Porque assim posso sair na rua para
cumprimentar as pessoas nas audiências, ou quando viajo... Minha personalidade
não mudou. Não estou dizendo que me propus a isso: foi espontâneo. Não, aqui
não é preciso mudar. Mudar é artificial. Mudar aos 76 anos é se maquiar. Não
posso fazer tudo o que quero lá fora, mas a alma das ruas permanece, e vocês a
veem.
P. Nos últimos dias de pontificado, Bento XVI disse sobre seu
último período à frente da Igreja: “As águas desciam agitadas, e Deus parecia
estar dormindo”. Também sentiu essa solidão? A cúpula da Igreja estava dormindo
em relação aos novos e antigos problemas das pessoas?
R. Eu, dentro da hierarquia da Igreja, ou dos agentes pastorais da
Igreja (bispos, padres, freiras, leigos...), tenho mais medo dos anestesiados
do que dos que estão dormindo. Daqueles que se anestesiam com o mundanismo.
Então, negociam com o mundanismo. E isso me preocupa... Que... Sim, tudo está
quieto, está tranquilo, se as coisas estão bem... ordem demais. Quando se lê os Atos dos Apóstolos, as Epístolas de São Paulo, lá havia confusão, havia problemas,
as pessoas se movimentavam. Havia movimento e havia contato com as pessoas. O
anestesiado não tem contato com as pessoas. Defende-se da realidade. Está
anestesiado. E hoje em dia existem tantas maneiras para se anestesiar da vida
cotidiana, não? E, talvez, a doença mais perigosa que um pastor possa ter venha
da anestesia, e é o clericalismo. Eu aqui, e as pessoas lá. Você é o pastor dessas
pessoas! Se não cuidar dessas pessoas e deixar de cuidar dessas pessoas, feche
a porta e se aposente.
P. E há uma parte da
Igreja anestesiada?
R. Todos temos perigos. É um perigo, é uma tentação séria. É mais
fácil estar anestesiado.
P. Vive-se melhor, mais confortável.
R. Por isso, mais do que
com os que estão dormindo, essa é a anestesia que o espírito de mundanismo
proporciona. Do mundanismo espiritual. Nesse sentido, chama minha atenção que
Jesus, na Última Ceia, quando faz essa longa oração ao Pai pelos discípulos,
não pede a eles “observem o quinto mandamento, que não matem; o sétimo
mandamento, que não roubem”. Não. Tomem cuidado com o mundanismo; tomem cuidado
contra o mundo. O que anestesia é o espírito do mundo. E, então, o pastor se
torna um funcionário público. E isso é o clericalismo, que, na minha opinião, é
o pior mal que a Igreja pode ter hoje.
P. Os problemas
enfrentados por Bento XVI no final de seu pontificado e que estavam naquela
caixa branca que ele lhe entregou em Castel Gandolfo. O que havia lá dentro?
R. A normalidade da vida da Igreja: santos e pecadores, decentes e
corruptos. Estava tudo ali! Havia gente que tinha sido interrogada e está
limpa, trabalhadores... Porque aqui na Cúria há santos, viu? Há santos. Gosto de
dizer isso. Porque fala-se com facilidade da corrupção da Cúria. Há pessoas
corruptas na Cúria. Mas também muitos santos. Homens que passaram a vida
inteira servindo às pessoas de maneira anônima, atrás de uma mesa, em um
diálogo ou em um escritório para conseguir... Ou seja, dentro dela existem
santos e pecadores. Naquele dia, o que mais me impressionou foi a memória do
santo Bento. Que me disse: “Olha, aqui estão as atas, na caixa”. Um envelope
com o dobro deste tamanho: “Aqui está a sentença, de todos os personagens.” E
aqui, “fulano, tanto”. Tudo de cor! Uma memória extraordinária. E a conserva, a
conserva.
P. Ele se encontra bem de
saúde?
R. Daqui para cima, perfeito. O problema são as pernas. Caminha com
ajuda. Tem uma memória de elefante, até as nuances. Então digo uma coisa, e me
responde: “Não foi naquele ano, foi no ano tal.”
P. Quais são suas maiores
preocupações com relação à Igreja e, em geral, com a situação mundial?
R. Com relação à Igreja, eu diria que a Igreja não deixe de estar
próxima das pessoas. Que procure sempre estar perto. Uma Igreja que não é
próxima não é Igreja. É uma boa ONG. Ou uma boa organização piedosa de pessoas
boas que fazem beneficência, se reúnem para tomar chá e fazer caridade. Mas o
que identifica a Igreja é a proximidade: sermos irmãos próximos. Porque a
Igreja somos todos. Então, o problema que sempre existe na Igreja é que não
haja proximidade. E proximidade significa tocar, tocar no próximo a carne de
Cristo. É curioso: quando Cristo nos diz o protocolo com o qual seremos
julgados, que é o capítulo 25 de Mateus, é sempre tocar o próximo. “Tive fome,
estive preso, estive doente...”. Sempre a proximidade para ver a necessidade do
próximo. Que não é só a beneficência. É muito mais do que isso. Depois, com
relação ao mundo, minha preocupação é a guerra. Estamos na Terceira Guerra
Mundial em pedacinhos. E, ultimamente, já se fala de uma possível guerra
nuclear como se fosse um jogo de cartas. E isso é o que mais me preocupa. Do
mundo, preocupa-me a desproporção econômica: que um pequeno grupo da humanidade
tenha mais de 80% da riqueza, com o que isso significa na economia líquida,
onde no centro do sistema econômico está o deus dinheiro e não o homem e a
mulher, o humano! Assim, cria-se essa cultura de que tudo é descartável.
P. Santidade, com relação aos problemas do mundo que o senhor
mencionava, exatamente neste momento Donald Trump está tomando posse como
presidente dos EUA. E o mundo vive uma tensão por esse fato. Qual a sua
consideração sobre isso?
R. Veremos o que acontece. Mas me assustar ou me alegrar com o que
possa acontecer, nisso acho que podemos cair numa grande imprudência – sermos
profetas ou de calamidades ou de bem-estares que não vão acontecer, nem uma
coisa nem outra. Veremos o que ele faz e, a partir daí, avaliaremos. Sempre o
concreto. O cristianismo, ou é concreto ou não é cristianismo. É curioso: a
primeira heresia da Igreja foi logo depois da morte de Cristo. A heresia dos
gnósticos, que o apóstolo João condena. E era a religiosidade spray, como a chamo, do não
concreto. Sim, eu, sim, a espiritualidade, a lei... mas tudo spray. Não, não. Coisas concretas. E do que é concreto tiramos as
consequências. Nós perdemos muito o senso do concreto. Outro dia, um pensador
me dizia que este mundo está tão desorganizado que falta um ponto fixo. E é
justamente o concreto que nos dá pontos fixos. O que você fez, o que disse,
como age. Por isso eu, diante disso, espero e vejo.
“O perigo em tempos
de crise é buscar um salvador que nos devolva a identidade e nos defenda com
muros”
P. Não se preocupa com o
que escutou até agora?
R. Eu espero. Deus me esperou por tanto tempo, com todos os meus
pecados...
P. Para os setores mais tradicionais, qualquer mudança, mesmo que
seja apenas na linguagem, é uma traição. Para o outro extremo, nada será
suficiente. Como o senhor disse, tudo já estava escrito na essência do
Evangelho. Trata-se, então, de uma revolução da normalidade?
R. Eu procuro, não sei se
consigo, fazer o que manda o Evangelho. Isso é o que busco. Sou pecador e nem
sempre consigo isso, mas é o que procuro. É curioso: a história da Igreja não
foi levada adiante por teólogos, padres, freiras nem bispos... sim, em parte
sim, mas os verdadeiros protagonistas da história da Igreja são os santos. Ou
seja, aqueles homens e mulheres que deram a vida para que o Evangelho fosse
concreto. São eles que nos salvaram: os santos. Às vezes, pensamos nos santos
como uma freirinha que fica olhando para cima com os olhos revirados. Os santos
são os concretos do Evangelho na vida diária! E a teologia que podemos obter a
partir da vida de um santo é muito grande. Evidentemente, os teólogos, os
pastores, todos são necessários. E isso é parte da Igreja. Mas é preciso buscar
o Evangelho. E quem são os melhores portadores do Evangelho? Os santos. Você
utilizou a palavra “revolução”. Isso é revolução! Eu não sou santo. Não estou
fazendo nenhuma revolução. Estou tentando que o Evangelho siga adiante. Mas de
maneira imperfeita, porque também tenho meus tropeços às vezes.
P. Não acha que, entre
muitos católicos, possa existir algo como a síndrome do irmão do filho pródigo,
que consideram que se presta mais atenção aos que se foram do que aos que
permaneceram dentro, observando os mandamentos da Igreja? Lembro-me de que,
numa das suas viagens, um jornalista alemão lhe perguntou por que não falava
nunca da classe média, daqueles que pagam impostos...
R. Aqui há duas
perguntas. A síndrome do filho mais velho: é verdade que os que estão cômodos
numa estrutura eclesiástica que não os compromete muito ou que têm posturas que
os protegem do contato se sentirão incômodos com qualquer mudança, com qualquer
proposta do Evangelho. Gosto de pensar muito no dono do hotel aonde o
samaritano levou aquele homem que havia sido surrado pelos ladrões, roubado
pelo caminho. O dono do hotel sabia da história, que foi contada pelo
samaritano: havia passado um padre, olhou, estava atrasado para a missa e o
deixou jogado no caminho, não queria se manchar com o sangue, porque isso o
impedia de celebrar segundo a lei. Passou o advogado, o levita, e viu e disse:
“Ai, não vou me meter aqui, perderei muito tempo, amanhã no tribunal serei
testemunha e... não, não, melhor não me meter.” Parecia nascido em Buenos
Aires, e se desviou assim, que é o lema dos portenhos: “Não se meta”. E passa
outro, que não é judeu, que é um pagão, que é um pecador, considerado o pior de
todos: se comove e levanta o homem. O estupor que o dono do hotel teve é
enorme, porque viu algo incomum. Mas a novidade do Evangelho cria estupor
porque é essencialmente escandalosa. São Paulo nos fala do escândalo da cruz,
do escândalo do Filho de Deus feito homem. O escândalo bom, porque também Jesus
condena o escândalo contra as crianças. Mas a essência evangélica é escandalosa
para os parâmetros da época. Para qualquer parâmetro mundano, a essência é
escandalosa. Portanto, a síndrome do filho mais velho é, em certa medida, a
síndrome daquele que já está acomodado na Igreja, do que de alguma maneira tem
tudo claro, tudo fixo sobre o que é preciso fazer, e que não me venham predicar
coisas estranhas. Assim se explicam nossos mártires, que deram sua vida por
predicar algo que incomodava. Essa é a primeira pergunta. A segunda: eu não
quis responder ao jornalista alemão, mas em vez disso lhe disse: “Vou pensar,
você tem um pouco de razão”. Falo continuamente da classe média sem
mencioná-la. Uso uma palavra de Malègue, um romancista francês: ele fala da
“classe média da santidade”. [Joseph Malègue foi o autor de Pedras Negras: As Classes Médias da Salvação e de Augustine.] Estou falando
continuamente dos pais de família, dos avós, dos enfermeiros, das enfermeiras,
das pessoas que vivem para os demais, que criam os filhos, que trabalham... A
santidade dessas pessoas é enorme! São elas também que levam a Igreja adiante:
as pessoas que vivem de seu trabalho com dignidade, que criam seus filhos, que
enterram seus mortos, que cuidam dos avós, que não os trancam em lares de
idosos, essa é nossa santa classe média. Do ponto de vista econômico, hoje a
classe média tende a desaparecer, obviamente, cada vez mais, e pode correr o
risco de se refugiar nas cavernas ideológicas. Mas essa “classe média da
santidade”: o pai, a mãe de família, que celebram sua família, com seus pecados
e suas virtudes, o avô e a avó. A família. No centro. Essa é a “classe média da
santidade”. Malègue teve uma grande intuição nesse ponto, chegando a dizer uma
frase que pode impressionar. Num de seus romances, Augustine, quando num diálogo um
ateu lhe diz: “Mas o senhor acredita que Cristo é Deus?”, e lhe apresenta o
problema: acha que o Nazareno é Deus? “Para mim, não é um problema”, responde o
protagonista do romance. “O problema para mim seria se Deus não se fizesse
Cristo”. Essa é a “classe média da santidade”.
P. Santidade, o senhor
falava de cavernas ideológicas. A que se refere? O que lhe preocupa sobre esse
aspecto?
R. Não é que me preocupe.
Eu aponto a realidade. Estamos sempre mais cômodos no sistema ideológico que
foi elaborado, porque é abstrato.
P. Isso se exacerbou, se
potencializou nos últimos anos?
R. Sempre houve, sempre. Não diria que se exacerbou porque há muita
desilusão com isso também. Creio que havia mais no tempo anterior à Segunda
Guerra Mundial. Digo. Não pensei muito. Estou repassando um pouco... Sempre, no
restaurante da vida, nos oferecem pratos de ideologia. Sempre. Você pode se
refugiar nisso. São refúgios, que o impedem de tocar a realidade.
P. Santo Padre, durante estes anos, nas viagens, vi o senhor se
emocionar e emocionar muitos dos que escutavam suas palavras... Por exemplo, em
três ocasiões muito especiais: em Lampedusa, quando se perguntou se havíamos
chorado com as mulheres que perdem seus filhos no mar; na Sardenha, quando
falou sobre o desemprego e as vítimas do sistema financeiro mundial; nas
Filipinas, com o drama das crianças exploradas. Duas perguntas: o que a Igreja
pode fazer, o que está sendo feito e como os governos estão agindo diante
disso?
R. O símbolo que propus
no novo órgão de Migrações – no novo esquema, o Departamento de Migrações e
Refugiados, que preparei diretamente com dois secretários – é um salva-vidas
laranja, como os que todos conhecemos. Numa audiência geral, veio parte dos que
trabalham no salvamento dos refugiados do Mediterrâneo. Eu os cumprimentava, e
este homem segurou esse objeto e começou a chorar, apoiou-se no meu ombro e
chorava, chorava: “Não consegui, não cheguei, não consegui.” E, quando se
acalmou um pouco, me disse: “A menina não tinha mais de quatro anos.
Entrego-lhe isto”. E isso é um símbolo da tragédia que estamos vivendo. Sim.
P. Os governos estão respondendo à altura?
R. Cada um faz o que pode
ou o que quer. É um juízo difícil de fazer. Mas, obviamente, o fato de o
Mediterrâneo ter se transformado num cemitério deve nos fazer pensar.
P. Queria lhe perguntar
se sente que sua mensagem, sua viagem às periferias, aos que sofrem e estão
perdidos, é acolhida, acompanhada por uma estrutura talvez acostumada a
caminhar em outro ritmo. O senhor sente que avança num ritmo e a Igreja em
outro? Sente-se acompanhado?
R. Acho que não é assim
e, graças a Deus, a resposta em geral é boa. É muito boa. Quando pedi às
paróquias de Roma e aos colégios, houve quem dissesse: “Isso foi um fracasso”.
Mentira! Não foi um fracasso! Uma alta porcentagem das paróquias de Roma,
quando não tinham uma casa grande à disposição ou quando a casa paroquial era
pequena, sei lá, pois os fiéis alugam um apartamento para uma família imigrante...
Nos colégios de freiras, às vezes sobrava lugar, arrumaram um espaço para as
famílias migrantes... A resposta é maior do que se acredita, não é divulgada. O
Vaticano tem duas paróquias, e cada paróquia tem uma família imigrante. Um
apartamento do Vaticano para uma família, outro para outra. A resposta é
contínua. Não 100%. Qual porcentagem eu não sei. Mas eu diria que 50% acho que
sim. Depois, o problema da integração. Cada imigrante é um problema muito
sério. Eles fogem de seu país. Por fome ou guerra. Então, a solução deve ser
buscada ali. Por fome ou por guerra, são explorados. Penso na África: o símbolo
da exploração. Inclusive, ao dar independência, algum país lhes deu
independência do solo para cima, reservando-se o subsolo. Ou seja: são sempre
usados e escravizados... Então, a política de acolhida tem várias etapas. Há
uma acolhida de emergência: você tem que receber [o migrante] e tem que
recebê-lo porque, do contrário, ele se afoga. Nisso a Itália e a Grécia estão
dando o exemplo, um exemplo muito grande. A Itália, inclusive agora, com os
problemas que tem com o terremoto e todas essas coisas, continua se preocupando
com eles. Recebendo-os. Claro: eles chegam à Itália porque é o país mais
próximo. Creio que na Espanha chegam de Ceuta também. [Sim.] Mas, geralmente, a
maioria não quer ficar na Espanha, quer ir para o norte, porque buscam mais
possibilidades.
P. Mas, na Espanha, há um muro que separa Ceuta e Melilla de
Marrocos. Não podem passar.
R. Sim, sim, eu sei. E
querem ir para o norte. Então, o problema é: recebê-los, sim, mais ou menos por
alguns meses, alojá-los. Mas é preciso começar um processo de integração.
Acolher e integrar. E o modelo mundial que está à frente é a Suécia. A Suécia
tem nove milhões de habitantes, dos quais 890.000 são “novos suecos”, filhos de
migrantes ou migrantes com cidadania sueca. A ministra de Relações Exteriores –
acho que era, a que foi se despedir de mim – uma moça jovem, era filha de mãe
sueca e pai do Gabão. Migrantes. Integrados. O problema é integrar. Por outro
lado, quando não há integração, ficam em guetos, e não culpo ninguém, mas de
fato existem guetos. Que talvez naquele momento não perceberam que havia. Mas
os meninos que fizeram o desastre no aeroporto de Zaventem [em Bruxelas] eram
belgas, nascidos na Bélgica. Mas moravam num bairro fechado de imigrantes. Ou
seja, é fundamental o segundo passo: a integração. Qual é o grande problema da
Suécia agora? Não é que não venham imigrantes. Não estamos dando conta nos
programas de integração! Eles se perguntam o que mais podem fazer para que as
pessoas venham! É impressionante. Para mim, é um modelo mundial. E isso não é
novo. Eu disse logo de cara, depois de Lampedusa... Eu conhecia o caso da
Suécia pelos argentinos, uruguaios e chilenos que na época da ditadura militar
foram acolhidos ali, pois tenho amigos lá, e refugiados. Claro, depois que você
chega à Suécia e lhe oferecem organização médica, documentos, dão autorização
para morar... E você já tem uma casa, e na semana seguinte tem uma escola para
aprender o idioma, um pouquinho de trabalho... e vai para frente. Nisso San
Egidio, aqui na Itália, é um modelo. Os que vieram comigo no avião de Lesbos, e
depois vieram outros nove... O Vaticano se encarregou de 22, e estamos cuidando
deles. E eles lentamente vão se tornando independentes. No segundo dia, os
meninos já iam ao colégio. No segundo dia! E os pais lentamente encontram seu
lugar, com um apartamento, um trabalho aqui, meio trabalho ali, professores
para o idioma... San Egidio tem essa mesma postura. Ou seja, o problema então
é: salvamento urgente, sim, para todos. Segundo: receber, acolher da melhor
forma possível. Depois integrar, integrar. Integrar.
P. Santidade, já faz 50 anos de quase tudo. Do Concílio Vaticano
II, da viagem de Paulo VI e do abraço com o patriarca Atenágoras na Terra
Santa. Há quem sustente que, para entendê-lo, convém conhecer Paulo VI. Ele foi
até certo ponto o papa incompreendido. O senhor se sente também um pouco assim,
um Papa incômodo?
R. Não. Não. Acredito que, por meus pecados, deveria ser mais
incompreendido. O mártir da incompreensão foi Paulo VI. A Evangelii Gaudium, que é o marco da pastoralidade que quero dar à Igreja agora, é
uma atualização da Evangelii
Nuntiandi de Paulo VI. É um homem que se antecipou à
história. E sofreu, sofreu muito. Foi um mártir. E muitas coisas ele não pôde
fazer, porque, como era realista, sabia que não podia e sofria, mas oferecia
esse sofrimento. E o que pôde fazer ele fez. E é o que Paulo VI fez de melhor:
semear. Semeou coisas que depois a história foi recolhendo. A Evangelii Gaudium é uma mistura da Evangelii Nuntiandi e do documento de
Aparecida. Coisas que foram sendo trabalhadas de baixo para cima. A Evangelii Nuntiandi é o melhor documento
pastoral pós-conciliar e que não perdeu a atualidade. Não me sinto
incompreendido. Sinto-me acompanhado, e acompanhado por todo tipo de gente,
jovens, velhos… Sim, um ou outro por aí não está de acordo, e tem o direito,
porque se eu me sentisse mal por alguém não estar de acordo haveria em minha atitude
um germe de ditador. Eles têm o direito de não estarem de acordo. Têm direito
de pensarem que o caminho é perigoso, que pode trazer maus resultados, que…
eles têm o direito. Mas desde que dialoguem, não que atirem a pedra e escondam
a mão, isso não. A isso nenhuma pessoa humana tem o direito. Atirar a pedra e
esconder a mão não é humano, isso é delinquência. Todos têm o direito de
discutir, e quem dera discutíssemos mais, porque isso nos burila, nos irmana. A
discussão irmana muito. A discussão com bom sangue, não com a calúnia e tudo
isso…
P. Incômodo com o poder o senhor também não sente?
R. É que o poder não sou eu quem tenho. O poder é compartilhado. O
poder é quando se tomam as decisões pensadas, dialogadas, rezadas; a oração me
ajuda muito, e me sustenta muito. Não me incomoda o poder. Incomodam-me certos
protocolos, mas é porque eu sou assim, da rua.
P. O senhor está há 25 anos sem ver televisão e, pelo que entendo,
o senhor nunca foi muito fã de jornalistas, mas o sistema de comunicação do
Vaticano foi totalmente reinventado, profissionalizado e elevado à categoria de
dicastério. Os meios de comunicação são tão importantes assim para o Papa?
Existe uma ameaça à liberdade de imprensa? E as redes sociais, podem causar um
prejuízo à liberdade do indivíduo?
R. Eu não assisto televisão. Simplesmente senti que Deus me pediu
isso, no dia 16 de julho de 1990; fiz essa promessa e não sinto falta. Só fui
ao centro de televisão que ficava ao lado da arquidiocese para ver um ou dois
filmes que me interessavam, que poderiam servir para a mensagem. E veja que eu
gostava muito de cinema e tinha estudado bastante o cinema, especialmente o
italiano do pós-guerra, e o polonês Wajda, Kurosawa, e alguns franceses. Mas
não ver televisão não me impede de me comunicar. Não assistir televisão foi uma
escolha pessoal, nada mais. Mas a comunicação é divina. Deus se comunica. Deus
comunicou-se conosco por meio da história. Deus não ficou isolado. É um Deus
que se comunica, e falou conosco, nos acompanhou, nos desafiou e nos fez mudar
de rumo, e continua a nos acompanhar. Não se pode compreender a teologia
católica sem a comunicação de Deus. Deus não está estático lá e olha para ver
como os homens se divertem ou como se destroem. Deus se envolveu, e o fez
comunicando-se com a palavra e com sua carne. Ou seja, eu começo daí. Tenho um
pouco de medo quando os meios de comunicação não podem se expressar com a ética
que lhes é própria. Por exemplo, existem maneiras de se comunicar que não
ajudam, que atrapalham a unidade. Dou um exemplo simples. Uma família que está
jantando e as pessoas não se falam, ou assistem televisão, ou as crianças estão
com seus celulares enviando mensagens a outras pessoas que estão fora. Quando a
comunicação perde o carnal, o humano, e se torna líquida, é perigosa. Que se
comunique em família e que as pessoas se comuniquem, e também da outra maneira,
é muito importante. O mundo virtual da comunicação é muito rico, mas você corre
o risco se não vive uma comunicação humana, normal, de tocar! O concreto da
comunicação é o que fará que o virtual da comunicação siga pelo bom caminho. Ou
seja, o concreto é inegociável em tudo. Não somos anjos, somos pessoas
concretas. A comunicação é fundamental e deve seguir em frente. Há perigos como
esse em todas as coisas. É preciso ajustá-los, mas a comunicação é divina. E há
defeitos. Eu falei sobre os pecados da comunicação numa conferência na ADEPA,
em Buenos Aires, a associação que reúne os editores da Argentina. E os
presidentes me convidaram para um jantar em que tive de fazer essa conferência.
Lá eu apontei os pecados da comunicação e disse a eles: não caiam nisso, porque
o que os senhores têm em suas mãos é um grande tesouro. Hoje em dia comunicar é
divino, sempre foi divino porque Deus se comunica, e é humano porque Deus se
comunicou humanamente. Portanto, funcionalmente há um dicastério, obviamente,
para dar um encaminhamento a tudo isso. Mas o dicastério é uma coisa funcional.
Não é porque hoje é importante se comunicar, não. Porque a comunicação é
essencial para a pessoa humana, porque também é essencial a Deus!
P. O maquinário diplomático do Vaticano funciona a todo vapor.
Tanto Barack Obama quanto Raúl Castro agradeceram publicamente o seu trabalho
na aproximação. No entanto, existem outros casos, como a Venezuela, Colômbia e
o Oriente Médio, que ainda estão bloqueados. No primeiro caso, inclusive, as
partes criticam a mediação. O senhor teme que a imagem do Vaticano sofra? Quais
são suas instruções nesses casos?
R. Eu peço ao Senhor a graça de não tomar nenhuma medida pela
imagem. Mas pela honestidade, pelo serviço, esses são os critérios. Não
acredito que seja bom maquiar um pouco. Às vezes podemos cometer erros, a
imagem se ressentirá, bom, isso é uma consequência, mas foi feito com boa
vontade. A história julgará as coisas. E depois há um princípio que é claro
para mim, que é o que tem de prevalecer em toda a ação pastoral, mas também na
diplomacia do Vaticano: mediadores, não intermediários. Em outras palavras,
fazer pontes e não muros. Qual é a diferença entre o mediador e o
intermediário? O intermediário é aquele que tem, por exemplo, um escritório de
compra e venda de imóveis, procura quem quer vender uma casa e quem quer
comprar uma casa, eles se põem de acordo, ele cobra a comissão, presta um bom
serviço, mas sempre ganha algo, e tem direito porque é seu trabalho. O mediador
é aquele que se coloca a serviço das partes e faz com que as partes ganhem
mesmo que ele perca. A diplomacia do Vaticano tem de ser mediadora, não
intermediária. Se ao longo da história a diplomacia do Vaticano fez uma manobra
ou uma reunião e encheu o bolso, então ela cometeu um pecado muito grave,
gravíssimo. O mediador faz pontes, que não são para ele, são para que os outros
caminhem. E não cobra pedágio. Faz a ponte e se vai. Para mim essa é a imagem
da diplomacia vaticana. Mediadores e não intermediários. Fazedores de pontes.
P. Essa diplomacia vaticana pode ser estendida à China em breve?
R. De fato, existe uma comissão que está trabalhando há anos com a
China e que se reúne a cada três meses, uma vez aqui e outra em Pequim. E há
muito diálogo com a China. A China tem sempre aquela aura de mistério que é
fascinante. Há dois ou três meses, com a exposição do Museu do Vaticano em
Pequim, estavam felizes. E no próximo ano eles virão aqui no Vaticano com suas
coisas, seus museus.
P. E o Santo Padre, irá em breve à China?
R. Irei quando me convidarem. Eles sabem. Além disso, na China as
Igrejas estão cheias. Pode-se praticar a religião na China.
P. Tanto na Europa quanto na América, as consequências de uma crise
que não acaba, o aumento da desigualdade e a ausência de lideranças fortes
estão dando lugar a formações políticas que estão captando o mal-estar dos
cidadãos. Algumas delas – que costumam ser chamadas de antissistema ou
populistas – aproveitam o medo das pessoas de um futuro incerto para
construírem uma mensagem de xenofobia, de ódio em relação ao estrangeiro. O
caso de Trump é o que mais chama a atenção, mas também há os casos da Áustria e
até da Suíça. O senhor está preocupado com esse fenômeno?
R. É o que chamam de populismo. Essa é uma palavra enganosa, porque
na América Latina o populismo tem outro significado. Lá significa o
protagonismo dos povos, por exemplo, os movimentos populares. Organizam-se
entre eles... é outra coisa. Quando ouvia falar em populismo aqui não entendia
muito, ficava perdido, até que percebi que eram significados diferentes
dependendo dos lugares. Claro, as crises provocam medos, alertas. Para mim, o
mais típico exemplo dos populismos europeus é o 1933 alemão. Depois de [Paul
von] Hindenburg, a crise de 1930, a Alemanha estava destroçada, tentava se
levantar, buscava sua identidade, estava à procura de um líder, de alguém que
devolvesse sua identidade, e havia um rapazinho chamado Adolf Hitler que disse
“eu posso, eu posso”. E toda a Alemanha votou em Hitler. Hitler não roubou o
poder, foi eleito por seu povo, e depois destruiu seu povo. Esse é o perigo. Em
momentos de crise, o discernimento não funciona, e para mim é uma referência
contínua. Busquemos um salvador que nos devolva a identidade e defendamo-nos
com muros, com arames farpados, com qualquer coisa, dos outros povos que podem
nos tirar a identidade. E isso é muito grave. Por isso sempre procuro dizer:
dialoguem entre vocês, dialoguem entre vocês. Mas o caso da Alemanha de 1933 é
típico, um povo que estava naquela crise, que procurava sua identidade, e então
apareceu esse líder carismático que prometeu dar-lhes uma identidade, e
deu-lhes uma identidade distorcida e sabemos o que aconteceu. Onde não há
diálogo... As fronteiras podem ser controladas? Sim, cada país tem o direito de
controlar suas fronteiras, quem entra e quem sai, e os países que estão em
perigo – de terrorismo ou coisas desse tipo – têm mais direito de controlar
mais, mas nenhum país tem o direito de privar seus cidadãos do diálogo com os
vizinhos.
P. O senhor observa na Europa de hoje, Santo Padre, sinais dessa
Alemanha de 1933?
R. Não sou um técnico nisso, mas sobre a Europa de hoje remeto-me
aos três discursos que fiz. Os de Estrasburgo e o terceiro quando do Prêmio
Carlos Magno, que foi o único prêmio que aceitei porque insistiram muito por
causa do momento que a Europa vivia, e aceitei como um serviço. Esses três
discursos dizem o que penso sobre a Europa.
P. A corrupção é o grande pecado do nosso tempo?
R. É um grande pecado. Mas acredito que não devemos atribuir-nos a
exclusividade na história. Sempre houve corrupção. Sempre. Aqui. Se alguém ler
a história dos papas se depara com cada escândalo... Para me referir à minha
casa, sem me meter na do vizinho. Tenho vários exemplos de países vizinhos onde
houve corrupção na história, mas fico com os meus. Aqui houve corrupção. E
pesada, hein. Basta pensar no papa Alexandre VI, nessa época, e em dona
Lucrécia com seus “chazinhos” [envenenados].
P. O que lhe chega da Espanha? O que lhe chega sobre a recepção que
há na Espanha da sua mensagem, sua missão, seu trabalho...?
R. Hoje, da Espanha, acabam de me chegar alguns polvorones e um turrón de Jijona (doces) que estão aí
para oferecer aos rapazes.
P. Hahaha. A Espanha é um país onde o debate sobre o secularismo e
a religiosidade está vivo, como o senhor sabe...
R. Está vivo, muito vivo...
P. O que o senhor pensa disso? O processo de secularismo pode
acabar deixando a Igreja Católica numa situação marginal?
R. Diálogo. É o conselho que dou a qualquer país. Por favor,
diálogo. Como irmãos, caso se animem, ou pelo menos como pessoas civilizadas.
Não se insultem. Não se condenem antes de dialogar. Se depois do diálogo
quiserem se insultar, bom, mas pelo menos dialogar. Se depois do diálogo
quiserem se condenar, bom..., mas primeiro o diálogo. Hoje, com o
desenvolvimento humano que existe, não se pode conceber uma política sem
diálogo. E isso vale para a Espanha e para todos. Então, se você me pedir um
conselho para os espanhóis, dialoguem. Se há problemas, dialoguem primeiro.
P. Na América Latina, evidentemente, suas palavras e decisões são
acompanhadas com especial atenção. Como vê o continente? Como vê sua terra?
R. O problema é que a América Latina está sofrendo os efeitos – que
ressaltei muito na Laudato
Se – de um sistema econômico que tem no seu centro o deus dinheiro,
e então [esses países] caem em políticas de fortíssima exclusão. E então se
sofre muito. E evidentemente hoje em dia a América Latina está sofrendo um forte
embate de liberalismo econômico forte, desse que eu condeno na Evangeli Gaudium quando digo que “esta
economia mata”. Mata de fome, mata de falta de cultura. A emigração não é só da
África para Lampedusa ou para Lesbos. A emigração é também do Panamá para a
fronteira do México com os Estados Unidos. As pessoas emigram procurando.
Porque os sistemas liberais não dão possibilidades de trabalho e favorecem
delinquências. Na América Latina há o problema dos cartéis da droga, que
existem, sim, e essa droga é consumida nos Estados Unidos e na Europa.
Fabricam-na para cá, para os ricos, e perdem a vida nisso. E há os que se
prestam a isso. Na nossa pátria temos uma palavra para qualificá-los: os cipayos [mercenários]. É uma
palavra clássica, literária, que está em nosso poema nacional. O cipayo é aquele que vende a
pátria à potência estrangeira que possa lhe dar mais benefício. E na nossa
história argentina, por exemplo, sempre há algum político cipayo. Ou alguma postura política cipaya. Sempre houve na
história. Então a América Latina precisa se rearmar com formações de políticos
que deem a força dos povos à América Latina. Para mim, o exemplo maior é o do
Paraguai do pós-guerra. Perde a guerra contra a Tríplice Aliança, e o país fica
praticamente nas mãos das mulheres. E a mulher paraguaia sente que precisa
erguer o país, defender a fé, defender sua cultura e defender sua língua, e
conseguiu. A mulher paraguaia. A mulher paraguaia não é cipaya, defendeu o seu, à custa do que fosse, mas defendeu, e repovoou
o país. Para mim, é a mulher mais gloriosa da América. Aí você tem um caso de
uma atitude que não se entregou. Há heroísmo. Em Buenos Aires há um bairro, à
beira do rio da Prata, cujas ruas têm nomes de mulheres patriotas, que lutaram pela
independência, lutaram pela pátria. A mulher tem mais senso... Talvez eu
exagere. Bom, se exagero que me corrijam. Mas tem mais senso de defender a
pátria, porque é mãe. É menos cipaya. Tem menos perigo de
cair no cipayismo.
P. Por isso dói tanto a violência contra as mulheres, que é uma
mancha na América Latina e em tantos lugares…
R. Em todos os lados. Na Europa… Na Itália, por exemplo, visitei
organizações de resgate de meninas prostitutas que são exploradas por europeus.
Alguém me dizia que foi trazida da Eslováquia no porta-malas de um automóvel
para que pudessem passá-la [pelas fronteiras e controles policiais]. E lhe
dizem: você precisa trazer tanto hoje, e se não trouxer isso, vai levar. Batem
nelas… Em Roma? Em Roma. A situação dessas mulheres aqui – em Roma! – é de
terror. Nessa casa que visitei havia uma a quem haviam cortado a orelha.
Torturam-nas quando não reúnem dinheiro suficiente. E as mantêm retidas porque
as assustam, dizem que vão matar os pais delas. Albanesas, nigerianas, inclusive
italianas. Uma coisa muito linda é que essa associação se dedica a ir pelas
ruas, as abordam e, em vez de lhes dizer “Quanto você cobra?”, “Quando você
custa?”, lhes perguntam: “Quando você sofre?”. E as levam para uma colônia
segura, a fim de que se recuperem. Visitei no ano passado uma dessas colônias
com meninas recuperadas e havia dois homens, eram voluntários. E uma me disse:
“Eu o encontrei”. Casou-se com o homem que a havia salvado e estavam querendo
ter um filho. O usufruto da mulher é das coisas mais desastrosas que acontecem,
também aqui, em Roma. A escravidão da mulher.
P. Não acha que, depois da tentativa fracassada da Teologia da
Libertação, a Igreja perdeu muitas posições para outras confissões e inclusive
seitas? A que se deve isso?
R. A teologia da libertação foi uma coisa positiva na América
Latina. Foi condenada pelo Vaticano a parte que optou pela análise marxista da
realidade. O cardeal Ratzinger fez duas instruções quando era prefeito da
Doutrina da Fé. Uma, muito clara, sobre a análise marxista da realidade. E a
segunda retomando aspectos positivos. A Teologia da Libertação teve aspectos
positivos e também teve desvios, sobretudo, na parte da análise marxista da
realidade.
P. Suas relações com a Argentina. O Vaticano se tornou, de três
anos para cá, um lugar de peregrinação para políticos de diversos partidos. O
senhor se sente usado?
R. Ah, sim. Alguns me dizem: Tiramos uma foto de lembrança, e lhe
prometo que vai ser para mim e que não vou publicá-la. E antes de sair pela
porta já a publicaram [sorri]. Bom, se fica feliz de usá-la, o problema é dele.
Diminui a qualidade dessa pessoa. Quem a usa tem pouca estatura. E o que vou
fazer? O problema é dele, não meu. Vêm muitos argentinos à audiência geral. Na
Argentina sempre houve muito turismo, mas agora passar por uma audiência geral
do Papa é quase obrigatório [risos]. Depois há os que vêm para cá e que são
amigos – vivi 76 anos na Argentina –, às vezes minha família, alguns sobrinhos.
Mas usado, sim, tem gente que já me usou, usou fotos, como se eu tivesse dito
coisas, e quando me perguntam sempre respondo: não é problema meu, não fiz
declarações, se ele disse isso é problema dele. Mas não entro no jogo do uso.
Ele lá com a sua consciência.
P. Um tema recorrente é o papel dos leigos e, sobretudo, das
mulheres na Igreja. Seu desejo é de que tenham maiores cotas de influência e
inclusive de decisão. Esses são seus desejos. Até onde acredita que pode
chegar?
R. O papel da mulher não deve ser buscado tanto pela
funcionalidade, porque assim vamos acabar transformando a mulher, ou o
movimento da mulher na Igreja, num machismo de saia. Não. É muito mais
importante que uma reivindicação funcional. O caminho funcional é bom. A
subdiretora da sala de imprensa do Vaticano é uma mulher, a diretora dos museus
vaticanos é uma mulher… Sim, o funcional está bem. Mas a mim o que me interessa
é que a mulher nos dê seu pensamento, porque a Igreja é feminina, é “a” Igreja,
não é “o” Igreja, e é “a” esposa de Jesus Cristo, e esse é o fundamento
teologal da mulher. E quando me perguntam, sim, mas a mulher poderia ter mais…
Mas o que era mais importante: o dia de Pentecostes, a Virgem ou os apóstolos?
A Virgem. O funcional pode nos trair ao colocar a mulher no seu lugar – que é
preciso colocá-la, sim, porque ainda falta muito, e trabalhar para que possa
dar à Igreja a originalidade de seu ser e de seu pensamento.
P. Em algumas das suas viagens, escutei como se dirigia aos
religiosos, tanto da Cúria Romana quanto das hierarquias locais, ou inclusive a
padres e freiras, para lhes pedir mais compromisso, mais proximidade, inclusive
melhor humor. De que maneira acredita que recebem esses conselhos, esses puxões
de orelha?
R. No que mais insisto é na vizinhança, na proximidade. E em geral
é bem recebido. Sempre há grupos um pouco mais fundamentalistas, em todos os
países, na Argentina há. São grupos pequenos, eu os respeito, são gente boa,
que prefere viver assim a sua religião. Eu prego o que sinto que o Senhor me
pede para pregar.
P. Na Europa, cada vez se veem mais padres e freiras procedentes do
chamado Terceiro Mundo. A que se deve este fenômeno?
R. Há 150 anos, na América Latina, se viam cada vez mais padres e
freiras europeus, e na África o mesmo, e na Ásia o mesmo. As Igrejas jovens
foram crescendo. Na Europa o que acontece é que não há natalidade. Na Itália
está abaixo de zero. A França é a que acredito estar mais à frente, por todas
as leis de apoio à natalidade. Mas não há natalidade. O bem-estar italiano de
alguns anos atrás cortou a natalidade por aqui. Preferimos sair de férias,
temos um cachorrinho, um gatinho, não há natalidade, e se não houver natalidade
não há vocações.
P. Em seus consistórios, o senhor criou cardeais dos cinco
continentes. Como gostaria que fosse o conclave que escolherá o seu sucessor?
Santidade, o senhor acredita que verá o próximo conclave?
R. Que seja católico. Um conclave católico que escolha o meu
sucessor.
P. E o verá?
R. Isso eu não sei. Que Deus decida. Quando eu sentir que não posso
mais, meu grande mestre Bento já me ensinou como se deve fazer. E se Deus me
levar antes verei do outro lado. Espero que não do inferno… Mas que seja um
consistório católico.
P. O senhor me parece muito contente de ser Papa.
R. O Senhor é bom e não me tirou o bom humor.
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El País
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