O recente – e presente – fenômeno de
evangélicos se convertendo ao Islã tem chamado a atenção de alguns e é digno de
nota. Por que evangélicos estão se
tornando muçulmanos? A resposta vai para
além da questão em si, pois esse êxodo religioso é apenas indício e
consequência de um problema já sistêmico – e epistêmico – nos arraiais
evangélicos.
Há trinta, quarenta anos, os evangélicos
representavam parcos 3% da população brasileira. Quem eram, então, os evangélicos? Eram membros das chamadas igrejas
“históricas” ou “tradicionais”:
Presbiteriana, Batista, Assembleia de Deus, Metodista, Congregacional,
para citar as mais proeminentes. Cada
nome desses indicava uma variação bem definida:
dois, três grupos sob o rótulo, grupos esses que se identificavam com
princípios claros. Ser batista, então,
significava pertencer principalmente a um de dois grupos mais pronunciados, o
mesmo valendo para as igrejas presbiterianas, e por aí vai.
Os evangélicos eram os “crentes”, também
chamados de “bíblias”, por conta da prática de andarem com uma Bíblia debaixo
do braço a caminho da Igreja. Eles eram
poucos: viver uma vida de renúncias –
não pode isso, não pode aquilo – não era lá muito convidativo.
O tempo passa e nos anos 70 e 80 começam a
chegar ao país os movimentos não denominacionais. São grupos fora do mainstream tradicional,
com suas estruturas menos rígidas e práticas mais abrasileiradas – sem terno,
sem saião, sem música sacra. O tempo
trouxe a compreensão de que a fé não está nas vestimentas e
tradicionalismos. Esse esclarecimento
traz uma perda à rigidez, exatamente em virtude de uma ênfase maior na
mensagem. É um amadurecimento. As igrejas à moda antiga continuam a existir,
mas já não são as únicas. Essa mudança
na práxis evangélica não traz junto de si um prejuízo doutrinário: ela é na verdade fruto de reflexão e
amadurecimento. É o início da expansão
do evangelicalismo brasileiro.
A década de 70 protagoniza também o surgimento
da Igreja Universal do Reino de Deus, a primeira de um grupo de instituições
bem assemelhadas: um linguajar
evangélico e um conteúdo um tanto heterodoxo.
O culto parece estar focado em Jesus, há uma pregação aparentemente
bíblica, mas olhos atentos já notam a ausência da ortodoxia doutrinária
presente nas outras igrejas, tanto as antigas quanto as mais recentes: é a fase do “Neopentecostalismo”, termo
guarda-chuva usado para designar um conjunto de instituições que mantém a
ênfase na manifestação de dons espirituais – traço fundamental do
Pentecostalismo -, mas sem a fundamentação doutrinária calcada na Bíblia, que
cede lugar ao sentir, aos achismos de seus líderes (“revelações”) e à
emoção. Práticas estranhas são
introduzidas no culto e na vida dos membros. Nesse movimento estão outros
grupos mais ou menos aparentados; trata-se, em linhas gerais, do segundo
alargamento – agora bastante pronunciado – do movimento evangélico, quando
coexistem movimentos extremamente diversificados. Acaba havendo uma identificação genérica
entre grupos mais ou menos ortodoxos: o
termo “evangélico” já é polissêmico.
A década de 90 assiste ao boom
evangélico: a fé de 3% dos brasileiros
ultrapassa os 15. Sociólogos e
estudiosos da religião já anunciam um Brasil evangélico para as próximas décadas.
A “religião evangélica” já conta com prestígio e popularidade jamais
imaginados vinte, trinta anos antes. A
fé conquista o brasileiro; todo mundo tem uma tia, um amigo evangélico. Crescem os simpatizantes; chegam
celebridades. Os anos 2000 veem os
evangélicos alcançar o patamar da casa dos 20%.
Na cidade do Rio de Janeiro, são 40!
Em toda vizinhança há alguém escutando “louvor”.
Um olhar mais atento revela algo,
entretanto: os evangélicos de tradição
continuam a ser uma minoria dentro da população como um todo – e são também
dentro da população evangélica. As
igrejas mais antigas até se beneficiam do boom, afinal a visibilidade das
outras igrejas respinga também nelas.
A Assembleia de Deus cresce, a Igreja Batista
também, mas é preciso notar que há
vários grupos – independentes e denominacionais – adotando esses nomes. A Assembleia de Deus são várias! Os evangélicos mais ortodoxos de quarenta
anos atrás continuam sendo minoritários.
É bem certo que dentro de tantas igrejas mais
novas existem pessoas que compreenderam as distorções. Estes acabam por migrar para igrejas com uma
prática condizente com a Bíblia.
Fato é que o boom evangélico é protagonizado
por grupos que já não correspondem à ortodoxia de décadas anteriores: há muita emoção, muita comoção, muito barulho
– e (quase) nenhuma doutrina. Tal
fenômeno é uma faca de dois gumes: ele
atrai, mas também é um fator de repulsa.
Vejamos.
O evangélico brasileiro mediano é não raro
alguém que aderiu a um movimento socialmente convidativo. Diferentemente dos antigos, o evangélico na
atualidade foi atraído a um espaço extremamente encantador: a Igreja, lugar que em décadas passas só era
visitado por não crentes após sucessivos e insistentes convites de amigos. Ia-se à Igreja mais por educação. Esse lugar enfadonho era pisado a fim de se
honrar a promessa feita a algum amigo “crente”, que fizera um convite tão amigável
e sincero para assistir à “programação de Natal”. Agora, os tempos são outros: Igreja é lugar de boa música, o “louvor”,
festa, passeios, “palavra de Vitória”. A
partir de uma perspectiva teológica, isso não é um problema em si; o problema é
quando esses elementos são os condicionadores de uma mera “adesão”, em lugar de
uma “conversão”, esta desencadeada por um processo de reflexão e confronto com
uma mensagem nada animadora:
reconhecer-se pecador e abrir mão de antigas práticas, dinâmica
compreendida e apreendida de fato pelos conversos genuínos.
Aí começa o problema: a “adesão” não é característica da mensagem
cristã, pois a união a uma Igreja deve ser, de acordo com as fontes dos
documentos fundantes do Cristianismo, fruto de conversão e não de
aculturação. A História mostra que a
simples adesão é corolário de um “Cristianismo cultural”. A implicação prática desse status de religião
de moda é que existe uma massa evangélica que nada ou pouquíssimo sabe a
respeito das bases da fé que supostamente abraçou. Pula-se, canta-se, sente-se, mas nada se
sabe: o analfabetismo bíblico é
patente. O evangélico é raso. Ele faz colocações que jamais passariam pela
mente de um semianalfabeto na década de 60, que já havia lido a Bíblia três
vezes.
Tal quadro não é uma simples chave de
leitura: ele é a própria explicação de
uma realidade que vai contra os prognósticos de estudiosos alguns anos atrás,
quando se falava em um “Brasil evangélico”.
O boom evangélico é na verdade um inchaço: as igrejas crescem em tamanho – e só. Exceções existem.
Como fruto dessa realidade, os que
simplesmente fizeram uma adesão social cedo ou tarde descobrem que há algo
melhor para se fazer domingo: ficar em
casa vendo televisão ou ir ao bar. Esses
são os “ex-evangélicos”, um desdobramento óbvio e necessário do crescimento
desordenado das igrejas. O IBGE já os
indica e este grupo é fundamental na compreensão do êxodo em direção ao Islão.
Estudos em Sociologia e afins e o próprio IBGE
têm agora de dar conta dos “evangélicos não praticantes”, algo impensável há
décadas. São pessoas que creem em Jesus
e tomam a Bíblia como Palavra de Deus, mas não vão mais à Igreja, e o motivo é
simples: chegaram à conclusão de que o
que veem dentro das realidades eclesiásticas está longe do que preconiza o
Evangelho. Como não encontraram uma
instituição fiel às Escrituras, se cansaram de procurar e optaram por viver uma
fé mais individual, fora daquilo que chamam de “sistema”. São conhecidos como “desigrejados”. Entre os decepcionados há alguns que, após um
tempo de busca, acabam por se estabelecer em congregações mais
tradicionais. Isso é também uma
consequência natural do boom.
Dentro do “Evangelho cultural” estão também os
filhos de evangélicos, os quais por muito tempo seguiram a fé dos pais, mas que
quando puderem fizeram sua própria opção e deixaram de seguir os ensinamentos
recebidos na infância. Estes também se
enquadram no “Evangelho cultural”, e sua renúncia é perfeitamente compreensível
e lógica, pois sua pertença era meramente uma herança.
Fato é que o crescimento das igrejas
evangélicas é quantitativo, o que é incompatível com o cerne da mensagem cristã
que, via de regra e historicamente, gera um crescimento qualitativo apenas,
causado por conversões genuínas. Todas
as vezes que o Cristianismo se caracterizou por ser um movimento de adesão e
não de conversão, o que é totalmente contraditório, os resultados foram nada
bons.
Está aí, então, a causa das conversões ao
Islã: elas são apenas mais um
consequência do crescimento desordenado das igrejas evangélicas e de um
Cristianismo cultural. Enquanto adesão
condicionada é algo simplesmente incompatível com a fé cristã, o Islã tem nela
uma de suas forças, seja pela imposição explícita, seja pelo uso de estratégias
mais sutis. Evangélicos falsos acabam
sendo, portanto, alvos certos da islamização:
enquanto membros de igrejas, eles nada sabiam do próprio Evangelho, e a
religião de Maomé lança apelos encantadores e simplesmente se propõe a
ensinar-lhes aquilo que para eles não estava claro. Como o Islã é extremamente legalista e apela
portanto para o senso de religiosidade, o novo converso sente seu ego afagado
pelo fato de construir um merecimento escatológico: nada melhor do que conquistar o paraíso por
esforço próprio.
O êxodo de evangélicos para o Islã não deve
causar surpresa.
Para saber mais sobre a História das igrejas
evangélicas no Brasil, é indispensável a leitura do livro História da Teologia
no Brasil: uma análise da Teologia no Brasil e da possibilidade de existência
de um sistema teológico caracteristicamente brasileiro, de Henrique Ribeiro de
Araujo, Editora Teologia Contemporânea.
Ulisses Araújo,
professor, bacharel em Teologia e ativista da
ONG Ecoando a Voz dos Mártires.
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Ecoando a Voz dos Mártires
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