Nome em ascensão na estrutura de poder da CNBB
(Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), o bispo Darci Nicioli, 60, saltou no noticiário político três anos atrás, com um sermão em que falava sobre
"pisar na cabeça" da serpente.
Era uma referência ao discurso feito dois dias
antes, em março de 2016, pelo ex-presidente Lula (PT), já acuado pela Lava
Jato. "Se quiseram matar a jararaca, não bateram na cabeça, bateram no
rabo, e a jararaca está viva como sempre esteve", bradou o petista à
época.
O ex-bispo auxiliar da Arquidiocese de
Aparecida (transferido pelo Vaticano após a barulhenta fala) volta agora aos
holofotes como um dos cotados para a cúpula da CNBB, entidade que elegerá nos próximos dias seus novos presidente, vice e secretário-geral. A posse será na
sexta-feira (10).
Hoje arcebispo de Diamantina (MG), ele falou
com a Folha na quarta-feira (1º), em Aparecida (SP), após a abertura da
assembleia anual da conferência, marcada em 2019 pelo clima de cisão política na sociedade e no clero. O discurso oficial é o de que os membros estão em
comunhão.
Nicioli é apontado por observadores do pleito
como um líder em projeção, que pode assumir posição de destaque na conferência
nos próximos anos. O bispo conquistou espaço na atual diretoria ao exercer o
cargo de presidente da comissão de comunicação.
Considerado mais próximo à ala conservadora,
que estaria buscando neutralizar a corrente progressista e assumir a direção da
CNBB, Nicioli afirma que a Igreja Católica tem que evitar cair na polarização,
deve politizar a população e não pode ser "nem de esquerda nem de
direita".
Diz ainda que projetos religiosos assumem em
muitos casos o papel que seria do Estado e, em tom de autocrítica, fala que o
marketing sobre as obras sociais católicas é falho. Também faz reparos ao
tratamento que o governo Jair Bolsonaro (PSL) dá à área da educação.
O próprio Nicioli mencionou na entrevista ser
conhecido como "o bispo da jararaca" e confirmou que a crítica era
direcionada a Lula —na época da polêmica, ele chegou a negar que sua fala fosse
uma alusão ao petista e disse que "poderia ter sido uma jiboia, uma
jararacuçu, por acaso saiu jararaca".
O sr. é considerado por pessoas que acompanham as movimentações na CNBB
como integrante do grupo conservador. É verdade?
Depende muito do mês. Eu sou o bispo tido como 'o bispo da jararaca',
por causa daquele episódio em que eu fui crítico ao PT e ao Lula. E agora me
colocam, não sei de onde tiraram isso, como uma linha mais conservadora. Mas eu
sou da direção atual da CNBB [considerada progressista]!
Seria coerente o sr. ser chamado de conservador depois da fala contrária
ao ex-presidente Lula, não?
Acho que naquela época era o contrário, né? Disseram que era um bispo
muito avançado, para arvorar-se a fazer um discurso como aquele.
Quem disse que PT é modernidade e é progressismo? Quer coisa mais antiga
do que um passado político não ser capaz de fazer o mea culpa dos seus erros?
Isso é tão antigo quanto o homem que não reconhece seu pecado. Isso fez com que
o PT perdesse as suas bases. Isso é progressismo? Isso é antiquado. Quer coisa
mais antiga do que a corrupção?
Olha as posturas de um socialismo na América Latina, do qual o PT faz
parte. Olha a Venezuela, o que há de progressismo naquilo? Eu vejo que há muito
de retrógrado, de ultrapassado. Temos que criticar justamente para fazer dar
passos novos.
Todas as agremiações partidárias precisam se renovar constantemente, e o
PT também. Eu tenho sido um crítico mordaz nesse sentido porque não coaduna com
o Evangelho. Como é que o sujeito pode pensar em si mesmo diante de uma
realidade como essa?
O sr. pode explicar sua transferência para Diamantina após a polêmica?
Foi uma punição ou uma promoção?
[Sorrindo] É
muito interessante. Nós tivemos três interpretações disso. A primeira foi: 'Ele
foi corajoso, o papa o promoveu, foi de bispo auxiliar para arcebispo'; a
outra: 'Ele falou o que não devia, então o papa o puniu, o mandou para o
interior'; ou então: 'Ele já sabia, portanto chutou o pau da barraca'.
São interpretações que não procedem. A escolha de um bispo acontece num
processo longo, de quase um ano. Eu fiquei sabendo de Diamantina quase um mês e
meio antes [do sermão].
Há alas conservadora e progressista na CNBB?
É normal isso numa agremiação. É normal que haja pessoas que tenham um determinado alinhamento. Cada bispo responde dentro da sua realidade. Vai ser
bispo na Amazônia, para ver como é preciso ser mais aguerrido. Vai ser bispo no
Nordeste.
Eu estou no portal do Vale do Jequitinhonha, naquelas cidadezinhas que
não têm esperança alguma, não têm meio de transporte, não têm como produzir,
não têm emprego. Eu não posso me permitir nem ser progressista nem tradicional,
eu preciso ser gente.
O sr. tem intenção de colocar seu nome como candidato na eleição da nova
diretoria?
Não existe disputa de cargos entre nós. Mesmo porque, para nós, cargo é
serviço. Você não ganha jetons, só trabalho. Não devemos procurar, mas também
nunca negar. Se a CNBB me chamar, estarei disponível.
Qual é a igreja que se reúne neste momento para a assembleia?
Uma igreja que tem consciência da sua missionariedade, que vive o seu
tempo, assume os desafios do seu tempo e cumpre com a sua missão, que é
anunciar a boa-nova do Nosso Senhor Jesus Cristo.
Quais são os desafios hoje?
Nós temos no Brasil uma dificuldade, muito grande e já histórica, que é
a desigualdade de renda. É um descalabro. Temos que enfrentar. Outra questão,
ligada a essa, é a dos 13 milhões de desempregados. É preciso que, num Brasil
onde há grande desilusão com o Estado, a igreja faça o seu papel de não deixar
que o povo se desespere.
O que a igreja pode fazer concretamente?
Como CNBB, nós vemos a realidade, estudamos sobre ela e propomos
estratégias. Isso inclui organizar a sociedade, formar lideranças, ajudar os
jovens a viverem a sua força própria da juventude.
E é muito importante para nós não deixar que, num Brasil desorganizado
assim, o povo perca a esperança. Nós entendemos esperança como resgate da
dignidade, para que ninguém fique à margem nessa sociedade.
Não é uma utopia?
É uma utopia, mas digna, uma bandeira digna de ser levantada. Como é que
pode, num país que é o celeiro do mundo, nós ainda convivermos com a fome? Aí
entra o trabalho social da igreja nos hospitais, nas casas de recuperação, o
trabalho da Caritas, da Pastoral da Criança.
E nós estamos falhos no sentido de marketing da igreja. Se nós
resgatarmos a verdade da grandeza da obra social da igreja no Brasil, estaremos
mostrando uma coisa desconhecida de todo o povo.
O sr. considera desconhecida?
Sim. Tanto é que não há setores do governo que questionam sobre a
isenção de impostos que a igreja tem? [Na semana passada, em entrevista à Folha, o
secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, falou em criar um novo tributo
que atingiria igrejas; Bolsonaro o desautorizou.]
Há um desconhecimento, inclusive do próprio governo, que é incapaz de
nos substituir no trabalho imenso que é feito porque desconhece as atividades
que a igreja faz.
O sr. quer dizer que há trabalhos que o Estado deveria executar e a
igreja os assume?
Mas não há nem dúvida. Nós substituímos o Estado no serviço social. E
não é só no serviço de caridade imediata, que também é importante, mas também
de organização da sociedade para que enfrente as dificuldades.
Enquanto nós não politizarmos mais a base, não sairemos disso. E falo de
política com P maiúsculo, não somente política partidária, mas política
enquanto exercício de construção da casa comum.
Esse é o serviço que a igreja tem feito historicamente no Brasil, e continua
fazendo apesar dos pesares, daquilo que se acusa sobre a CNBB, que é
partidária, que toma uma bandeira ou outra. Isso não corresponde à verdade.
Como o ambiente político conturbado e a polarização afetam a CNBB e a
eleição da nova diretoria?
Isso nos chama mais à responsabilidade, como pastores do povo. É preciso
que nós não caiamos na polarização que se tornou lugar-comum na comunidade
brasileira. Nem esquerda nem direita; nossa proposta é o humanismo que brota do
Evangelho, em que a pessoa seja respeitada na dignidade como Deus a concebeu.
A pessoa [deve
estar] em primeiro lugar. Portanto nunca
a propriedade em cima do sujeito, nunca a economia em cima da pessoa.
Quando a CNBB emite críticas ao governo Bolsonaro, como fez ao atacar a
reforma da Previdência nesta quarta-feira (1º), ela é chamada de esquerdista,
comunista.
É o preço da missão. É o preço da profecia e do profetismo. Você já
encontrou alguma vez algum profeta que já foi aplaudido? Essa oposição nos
fortalece muito mais na missão. Significa que nós estamos do lado do povo, e
não dos grandes que detêm o poder.
A CNBB dará, como se especula, uma guinada conservadora?
O governo foi constituído democraticamente, e como tal tem que ser
respeitado. Mas não quer dizer que tudo aquilo que o governo tem feito está
sendo coerente com aquilo que o Brasil mais precisa. Ora, naquilo que ele está
acertando, por que não se alinhar com ele e aplaudi-lo? E, naquilo que
porventura entendemos que não vai beneficiar o povo, por que não oferecermos
outra proposta? Não é fazer oposição por oposição, que isso não leva a nada.
A igreja participa da democracia porque é uma instituição forte na
sociedade brasileira e no mundo. Temos o nosso lugar. Não somos uma igreja do
céu. Somos uma igreja da terra. Pisamos este chão duro que todo mundo pisa, e
como tal temos que nos comprometer. Senão, que igreja somos?
Que pontos mereceriam ser aplaudidos no governo Bolsonaro?
Há um esforço muito grande de colocar em ordem a economia e estancar a
violência. Ora, nesse sentido, nós podemos muito bem pinçar os pontos que estão
sendo acertados e dizer: 'Que bom, o caminho é por aqui'. Mas nós temos
elementos do governo que colocam em risco a educação, por exemplo.
Precisamos investir em educação de uma maneira competente. E a igreja
pode muito bem colaborar nessa área. É preciso uma educação libertadora, que dê
às crianças e aos jovens um lugar ao sol.
Então o sr. acha que a educação não vai bem neste governo até agora?
Historicamente, a educação não tem ido bem. E este governo ainda não
encontrou, a meu ver, o caminho ideal, adequado. Nós estamos preocupados
porque, sem educação, não vamos promover o verdadeiro desenvolvimento do
Brasil.
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Folha de S. Paulo
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