A formação de um estado clerical anticlerical
A relação do clero católico brasileiro com o
poder e a política remonta o período colonial, quando vigorava o sistema do
“padroado”, intermediação do rei de Portugal na relação entre papa e Igreja. O
órgão responsável era a Mesa da Consciência e Ordens, criada em 1532, pelo rei
D. João III, para a resolução de temas que tocassem a consciência real.
Tratava-se de um instrumento de centralização do poder do monarca sobre todas
as questões do país, incluindo a organização da Igreja[1], desde a nomeação de
bispos até a distribuição dos recursos arrecadados por meio do dízimo. A
difusão do catolicismo aos seus súditos – colonos, índios e escravos – era
garantida pelo rei. Em contra partida, o clero legitimava a coroa.
A submissão do clero a Lisboa implicava uma
relativa autonomia em relação a Roma. Mas de acordo com o padre José Oscar
Beozzo, em seu livro História da Igreja da América Latina[2], já existia mesmo
no tempo colonial certo sentimento de nacionalidade no clero brasileiro. Nos
seminários, exigia-se igualdade entre noviços brasileiros e portugueses nas
eleições do prior o cargo era alternado entre brasileiros e portugueses. Esse
nacionalismo só cresceu com a Independência.
A partir do ato de 1922, o clero brasileiro
passou a ser controlado pelo Império, que proibia ordens religiosas de acatarem
autoridade estrangeira, criando uma barreira entre o clero nacional e Roma. O
clero dependia inteiramente do Ministério da Justiça, que decidia inclusive os
livros que eram adotados nos seminários.
Logo no início do período imperial, o regente,
padre Diogo Antônio Feijó quis criar uma Igreja nacional, totalmente
independente de Roma, a partir da abolição da obrigatoriedade do celibato
clerical por meio de projeto de lei na Assembleia Geral do Brasil. Seu intuito
foi combatido e vencido, mas não antes de longa polêmica. Padres e bispos
opinaram e alguns sugeriram que o tema fosse objeto de consulta popular.
Na verdade, a iniciativa da proposta não foi
de Feijó, que apenas conversava com alguns bispos em separado, tentando
trabalhar a ideia para, enfim, ser proposta. A iniciativa foi do deputado
Ferreira França, em 1928, sendo apoiado pelos liberais e por dois grandes
jornais da época, o Astréa e Autora Fluminense, pertencente a Evaristo da
Veiga. Mas nos jornais, os opositores da proposta também foram muitos, entre
eles o Visconde de Cairú, sob o pseudônimo O Velho Canonista. O voto mais
famoso e que exerceu maior influência, porém, foi o de Feijó. Chamado de protestante
e reformista, ele queria abolir um costume que, segundo ele, era muito bom
espiritualmente, mas não era observado por uma enorme parcela do clero da
época. O motivo da sua proposta, portanto, era adequar as normas da Igreja à
realidade brasileira.
Em seu voto, recomendava à Assembleia que a
aprovasse e “que se fizesse saber o Papa esta resolução da Assembleia, para que
ele pondo as leis da Igreja em harmonia com as do Império, revogasse as que
impõem penas ao clérigo que casa.[3]”
Essa tentativa de Fejió, no entanto, estava
bem amparada pelo acordo entre Brasil e Santa Sé, herança do regime do
padroado. Além disso, a proposta incluía a proibição de frades e freiras
estrangeiros no país, acusados de agentes do absolutismo. A luta de Feijó
contra o absolutismo não reconhecia fronteiras: na política, contra os reis, na
religião, contra o absolutismo do Papa. O antiabsolutismo era a moda política
dos liberais do Império.
Feijó foi por duas vezes presidente da
Comissão de Negócios Eclesiásticos e era responsável pela administração da
Igreja nacional. Sua proposta, no entanto, não foi aprovada e deu-se por
vencido.
A complicada relação entre estado e Igreja
durante o Império
Segundo Helena Salem, organizadora do livro A
Igreja dos oprimidos, a submissão do clero brasileiro inicialmente à coroa
portuguesa e depois, ao Império, diferenciou a prática do catolicismo em terras
brasileiras. Nossa forma de praticar a religião tinha peculiaridades
inimagináveis em outros países, como a participação ativa de maçons nas
irmandades e confrarias.
A presença marcante da maçonaria, que levou à
adesão membros do clero católico, com o incremento das características próprias
ao catolicismo português da época, diferindo mesmo de aspectos do catolicismo
europeu, deu ao novo país uma religião muito característica e própria. De
acordo com frei Boaventura de Kloppenburg, em seus estudos sobre a prática das
religiões afro-brasileiras na história do Brasil, a influência do modo
português de devoção deu a forma do catolicismo brasileiro, extremamente
sincrético e aberto a diversidade de crenças. Conta-se que até o período da
corte de D. João VI havia um curandeiro oficial, que fazia “trabalhos” para
curar doenças e espantar males, atrair bons espíritos etc. O sincretismo brasileiro
adaptava à prática católica uma infinidade de elementos. Um deles foi a
maçonaria, arranjo político incomum para o catolicismo no mundo, mas que por
aqui ganhava ares de normalidade.
A relação do clero com a maçonaria, na
verdade, pertence à categoria de aliança com o poder, uma vez que a grande
maioria dos políticos da época eram maçons. Não havia como a Igreja estar
presente na sociedade rejeitando a maçonaria ou pregando contra ela, como
acontecia em outros países, dada a relação conflituosa entre as duas
instituições, diante do tradicional anticlericalismo da maçonaria. Essa
relação, no entanto, custou caro à Igreja nos finais do período imperial, mas
também já mostrava sinais de conflito em episódios como a Inconfidência
Mineira, no final do século XVIII.
A partir de 1845, porém, essa submissão foi se
tornando insustentável, motivando alguma resistência e protestos do clero
contra o Império. Entre outras coisas, reivindicavam autonomia para a nomeação
de párocos, que era submetida às autoridades locais. Com o Concílio Vaticano I,
o governo autorizou uma delegação de bispos a permanecer um ano em Roma. De
acordo com Salem, essa foi a oportunidade dos bispos brasileiros constatarem,
pela primeira vez, a imensa diferença que havia entre o catolicismo brasileiro
e europeu. Este foi o início do primeiro processo de romanização da Igreja do
Brasil.
O retorno dos bispos coincidiu com a Questão
Religiosa, conflito iniciado no Rio de Janeiro e provocado por bispos que
proibiam a permanência de maçons no clero. A participação do clero na maçonaria
começou na década de 1820, durante o primeiro reinado. Mas no final do século
XIX, os ânimos republicanos e antimonárquicos estavam acirrados e crescia a
adesão ao positivismo, enquanto a Igreja Católica perdia prestígio social. A
maçonaria e os positivistas dominavam o partido republicano, que já mostrava
sua insatisfação através dos jornais.
No auge do conflito, a hierarquia eclesiástica
determinou punição de clérigos e de irmandades inteiras. Mas elas apelaram judicialmente
à coroa para que a questão fosse resolvida pelo Conselho de Estado. O Conselho,
composto por inúmeros maçons, ordenou a suspensão das punições, mas os bispos
não obedeceram e foram presos como rebeldes. Dom Vital, de Olinda e Dom Macedo,
de Belém, foram julgados e condenados a trabalhos forçados. A questão chegou
até Roma e em 1875 foi dada a anistia dos bispos[4].
As últimas décadas do Império foram marcadas
por intensa queda de braço entre estado e Igreja pelo poder sobre a própria
Igreja, ironicamente a única instituição que combatia o avanço maçônico e
republicano que viria a dar fim no Império, em 1889. A verdade é que a presença
de maçons no governo já era bem maior que na Igreja.
Diante do conflito com o estado, a hierarquia
católica se aproxima cada vez mais de Roma, enviando jovens para estudar na
Itália, França e na Santa Sé. Dom Luiz, Dom Lacerda e Dom Macedo Costa estão
entre os mais empenhados na ferrenha luta contra o poder estatal do Império
sobre a Igreja.
O Papa Leão XIII demonstrou certa preocupação
com a situação brasileira, publicando sucessivas cartas apostólicas com claras
referências à situação do catolicismo nas américas. Isso pode ter pesado na
decisão da Princesa Isabel, devota católica, para a assinatura da Lei Áurea, que
abolia a escravidão. A verdade é que após a abolição o papa escreveu uma carta
parabenizando a decisão.
Os republicanos, insatisfeitos, temiam a
subida ao trono da “princesa carola”, como a chamavam. A Proclamação da
República, em 15 de novembro de 1889, separava definitivamente estado e Igreja.
A constituição de 1891 reconhecia a liberdade de culto, mas dava validade
apenas para casamentos civis, sendo permitido o divórcio. Além disso,
secularizou a educação, proibindo o ensino religioso e o subsídio à educação
religiosa. O sustento dos membros do clero, antes a cargo do governo, foi
assegurado por apenas mais um ano[5]. Tudo isso representou um duro golpe a uma
Igreja frequentemente apoiada e sustentada pelo poder real.
Isso fomentou ainda mais o processo de
reaproximação da Igreja brasileira com Roma, que passou a trazer elementos do
catolicismo mais tradicional. As conferências episcopais, de 1901 a 1915,
retomam a linha do Vaticano I, reafirmando a autoridade papal como centro do
catolicismo. Mas, de acordo com o padre Beozzo, certo nacionalismo sempre
esteve presente no clero brasileiro, trazendo certa indisposição com Roma.
Manifestações da utopia libertadora
Em 1913, um padre de Itapira, São Paulo,
fundou a Igreja Católica Apostólica Brasileira, após desligar-se da Igreja por
supostamente ter sido perseguido devido suas posições. O site da ICAB informa
que o seu fundador morreu envenenado. Como não era bispo, não chegou a ordenar
padres e a iniciativa encerrou suas atividades religiosas. Cerca de 30 anos
depois, porém, um bispo de Botucatu retomou a ideia, refundando a Igreja
nacional.
Dom Carlos Duarte Costa foi bispo da Igreja
Católica, estudou junto com o futuro papa Pio XII, quem visitou certa vez para
criticar o celibato e o excessivo poder imperialista da Igreja. Suas críticas
não foram bem recebidas. Segundo a história oficial dessa igreja cismática,
disponível na Internet, “talvez, por inveja de seus conhecimentos e do seu
acolhimento pelo povo de Deus”. Antes de cismar, porém, o bispo foi informado
de que seria excomungado, o que preferiu fazer por si mesmo ao refundar a
antiga igreja cismática. Diante da acusação de comunista, o site informa em sua
defesa que jamais professou tal ideologia. O motivo da excomunhão teria sido
porque Dom Carlos fez o prefácio do livro O poder soviético, de Helwett
Jonhson, um conhecido padre inglês que enaltece os “progressos sociais” da
União Soviética. A igreja cismática existe até hoje, impondo a necessidade de
esclarecimentos pela Igreja Romana, dada a confusão que produz entre os fiéis
devido a semelhança de seus ritos e devoções. A igreja tem padres casados e se
diz “pelo povo e para o povo”, anti-imperialista e com a glória do Espírito
Santo.
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[1] Arquivo Nacional Torre do Tombo http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4223364
Acesso em março de 2018.
[2] Ed. Vozes, 1980.
[3] “Demonstrasão da necesidade da abolisao
[sic] do celibato clerical pela Assemblea Geral do Brazil: e da sua verdadeira
e legitima competencia nesta matéria” / pelo Deputado, Diogo Antonio Feijo. Rio
de Janeiro: na Typ. Imperial e Nacional, 1828. Documento original disponível
em: http://docvirt.com. Acesso em março, 2018.
[4] Gohn, M. G. M. História dos movimentos e
lutas sociais: a construção da cidadania dos brasileiros. Edições Loyola, 1995.
[5] Bruneau, T. C. Religião e politização no
Brasil. São Paulo, Edições Loyola, 1979.
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Estudos Nacionais
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