CARTA ENCÍCLICA
MATER ET MAGISTRA
DE SUA SANTIDADE
JOÃO XXIII
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS
PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS, BISPOS
E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR,
EM PAZ E COMUNHÃO
COM A SÉ APOSTÓLICA,
BEM COMO A TODO O CLERO E FIÉIS DO ORBE CATÓLICO
MATER ET MAGISTRA
DE SUA SANTIDADE
JOÃO XXIII
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS
PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS, BISPOS
E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR,
EM PAZ E COMUNHÃO
COM A SÉ APOSTÓLICA,
BEM COMO A TODO O CLERO E FIÉIS DO ORBE CATÓLICO
SOBRE A RECENTE EVOLUÇÃO
DA QUESTÃO SOCIAL
À LUZ DA DOUTRINA CRISTÃ
DA QUESTÃO SOCIAL
À LUZ DA DOUTRINA CRISTÃ
Introdução
1. Mãe e
mestra de todos os povos, a Igreja Universal foi fundada por Jesus Cristo, a
fim de que todos, vindo no seu seio e no seu amor, através dos séculos,
encontrem plenitude de vida mais elevada e penhor seguro de salvação. A esta
Igreja, "coluna e fundamento da verdade" (cf. 1 Tm 3, 15), o
seu Fundador santíssimo confiou uma dupla missão: de gerar alhos, e de os
educar e dirigir, orientando, com solicitude materna, a vida dos indivíduos e
dos povos, cuja alta dignidade ela sempre desveladamente respeitou e defendeu.
2. O
cristianismo é, de fato, a realidade da união da terra com o céu, uma vez que
assume o homem, na sua realidade concreta de espírito e matéria, inteligência e
vontade, e o convida a elevar o pensamento, das condições mutáveis da vida
terrena, até às alturas da vida eterna, onde gozará sem limites da plenitude da
felicidade e da paz.
3. De
modo que a Santa Igreja, apesar de ter como principal missão a de santificar as
almas e de as fazer participar dos bens da ordem sobrenatural, não deixa de
preocupar-se ao mesmo tempo com as exigências da vida cotidiana dos homens, não
só no que diz respeito ao sustento e às condições de vida, mas também no que se
refere à prosperidade e à civilização em seus múltiplos aspectos, dentro do
condicionalismo das várias épocas.
4. Ao
realizar tudo isto, a Santa Igreja põe em prática o mandamento de Cristo, seu
Fundador, que se refere sobretudo à salvação eterna do homem, quando diz:
"Eu sou o caminho, a verdade e a vida" (Jo 14,6) e "Eu
sou a luz do mundo" (Jo 8,12); mas noutro passo, ao contemplar a
multidão faminta, exclamou, num lamento sentido: "Tenho pena de toda esta
gente" (Mc 8,2); manifestando, assim, como se preocupa também com
as exigências materiais dos povos. E não foi só com palavras que o Divino
Redentor demonstrou esse cuidado: provou-o igualmente com os exemplos da sua
vida, multiplicando, várias vezes, por milagres, o pão que havia de saciar a
fome da multidão que o seguia.
5. E com
este pão, dado para alimentar o corpo, quis anunciar e significar aquele pão
celestial das almas, que iria deixar aos homens na véspera da sua Paixão.
6. Não é,
pois, para admirar, que a Igreja católica, à imitação de Cristo e em cumprimento
das suas disposições, tenha mantido sempre bem alto, através de dois mil anos,
isto é, desde a instituição dos antigos diáconos, até aos nossos tempos, o
facho da caridade, não menos com os preceitos do que com os numerosos exemplos
que vem proporcionando. Caridade, que ao conjugar harmoniosamente os
mandamentos do amor mútuo com a prática dos mesmos, realiza de modo admirável
as exigências desta dupla doação que em si resume a doutrina e a ação social da
Igreja.
7.
Documento verdadeiramente insigne desta doutrina e desta ação desenvolvida pela
Igreja ao longo dos séculos, deve considerar-se a imortal encíclica Rerum Novarum, [1]
que o nosso predecessor de feliz memória, Leão XIII, há setenta anos promulgou
para formular os princípios que haviam de resolver cristãmente a questão
operária.
8. Poucas
vezes a palavra de um papa teve ressonância tão universal, pela profundeza e
vastidão da matéria tratada, bem como pelo vigor incisivo da expressão. A linha
de rumo ali apontada e as advertências feitas revestiram-se de tal importância,
que nunca poderão cair no esquecimento. Foi aberto um caminho novo à ação da
Igreja. O Pastor supremo, fazendo próprios os sofrimentos, as queixas e as
aspirações dos humildes e dos oprimidos, uma vez mais se ergueu como defensor
dos seus direitos.
9. E
hoje, apesar de ter passado tanto tempo, ainda se mantém real a eficácia dessa
mensagem, não só nos documentos dos papas sucessores de Leão XIII, os quais,
quando ensinam em matéria social, continuamente se referem à encíclica leonina,
ora para nela se inspirarem, ora para esclarecerem o seu alcance, e sempre para
estimular a ação dos católicos; mas até na organização mesma dos povos. Tudo
isso mostra como os sólidos princípios, as diretrizes históricas e as paternais
advertências contidas na magistral encíclica do nosso predecessor conservam
ainda hoje o seu valor e sugerem, mesmo, critérios novos e vitais, para os
homens poderem avaliar o conteúdo e as proporções da questão social, tal como
hoje se apresenta, e decidir-se a assumir as responsabilidades daí resultantes.
PRIMEIRA PARTE
ENSINAMENTOS DA ENCÍCLICA RERUM NOVARUM
E OPORTUNOS DESENVOLVIMENTOS
NO MAGISTÉRIO DE PIO XI E PIO XII
E OPORTUNOS DESENVOLVIMENTOS
NO MAGISTÉRIO DE PIO XI E PIO XII
A época da encíclica "Rerum Novarum"
10. Os
tempos em que Leão XIII falou eram de transformações radicais, de fortes
contrastes e amargas rebeliões. As sombras daqueles tempos fazem-nos apreciar
melhor a luz que promana do seu ensinamento.
11. Como
é sabido de todos, o conceito do mundo econômico, então mais difundido e posto
em prática, era um conceito naturalista, negador de toda a relação entre moral
e economia. O motivo único da ação econômica, dizia-se, é o interesse
individual. Lei suprema reguladora das relações entre os operadores econômicos
é a livre concorrência sem limites. Juros dos capitais, preços das mercadorias
e dos serviços, benefícios e salários, são determinados, de modo exclusivo e
automático, pelas leis do mercado. O Estado deve abster-se de qualquer
intervenção no campo econômico. Os sindicatos, nalguns países, eram proibidos; noutros,
tolerados ou considerados como de direito privado.
12. Num
mundo econômico assim concebido, a lei do mais forte encontrava plena
justificação no plano teórico e dominava no das relações concretas entre os
homens. E daí derivava uma ordem econômica radicalmente perturbada.
13.
Enquanto, em mãos de poucos, se acumulavam riquezas imensas, as classes
trabalhadoras iam gradualmente caindo em condições de crescente mal-estar.
Salários insuficientes ou de fome, condições de trabalho esgotadoras, que nenhuma
consideração tinham pela saúde física, pela moral e pela fé religiosa.
Sobretudo inumanas as condições de trabalho a que eram freqüentemente
submetidas as crianças e as mulheres. Sempre ameaçador o espectro do
desemprego. A família, sujeita a contínuo processo de desintegração.
14. Daí
uma profunda insatisfação nas classes trabalhadoras, entre as quais se
propagava e se consolidava o espírito de protesto e de rebelião. E assim se
explica porque encontraram tanto aplauso, naqueles meios, as teorias extremistas,
que propunham remédios piores que os próprios males.
Os caminhos da reconstrução
15. Coube
a Leão XIII, nos momentos difíceis daquele conflito, publicar a sua mensagem
social, baseada na consideração da natureza humana e informada pelas normas e o
espírito do Evangelho; mensagem que, desde que foi conhecida, se bem não
faltassem oposições compreensíveis, suscitou universal admiração e entusiasmo.
Certamente, não era a primeira vez que a Sé Apostólica descia à arena, em
defesa dos interesses materiais dos menos favorecidos. Outros documentos do
mesmo Leão XIII tinham já preparado o caminho; mas, desta vez, formulava-se uma
síntese orgânica dos princípios e desenhava-se uma perspectiva histórica tão
ampla, que fizeram da encíclica Rerum Novarum um verdadeiro resumo do
catolicismo no campo econômico-social.
16. Nem
careceu de audácia este gesto. Enquanto alguns ousavam acusar a Igreja católica
de limitar-se, perante a questão social, a pregar resignação aos pobres e a
exortar os ricos à generosidade, Leão XIII não hesitou em proclamar e defender
os legítimos direitos do operário. Ao encetar a exposição dos princípios da doutrina
católica no campo social, declarava com solenidade: "Entramos
confiadamente nesta matéria e fazemo-lo com pleno direito, já que se trata de
uma questão para a qual não é possível encontrar solução eficaz, sem recorrer à
religião e à Igreja".[2]
17. Bem
conheceis, veneráveis irmãos, os princípios basilares expostos pelo imortal
Pontífice, com tanta clareza como autoridade, segundo os quais deve ser
reconstruído o setor econômico e social da comunidade humana.
18. Dizem
respeito, primeiramente, ao trabalho que deve ser considerado, em teoria e na
prática, não mercadoria, mas um modo de expressão direta da pessoa humana. Para
a grande maioria dos homens, o trabalho é a única fonte dos meios de
subsistência. Por isso, a sua remuneração não pode deixar-se à mercê do jogo
automático das leis do mercado; pelo contrário, deve ser estabelecida segundo
as normas da justiça e da eqüidade, que, em caso contrário, ficariam
profundamente lesadas, ainda mesmo que o contrato de trabalho fosse livremente
ajustado por ambas as partes.
19. A
propriedade privada, mesmo dos bens produtivos, é um direito natural que o
Estado não pode suprimir. Consigo, intrinsecamente, comporta uma função social,
mas é igualmente um direito, que se exerce em proveito próprio e para bem dos
outros.
20.
O Estado, cuja razão de ser é a realização do bem comum na ordem temporal, não
pode manter-se ausente do mundo econômico; deve intervir com o fim de promover
a produção de uma abundância suficiente de bens materiais, "cujo uso é
necessário para o exercício da virtude"; [3]
e também para proteger os direitos de todos os cidadãos, sobretudo dos mais
fracos, como são os operários, as mulheres e as crianças. De igual modo, é
dever seu indeclinável contribuir ativamente para melhorar as condições de vida
dos operários.
21.
Compete ainda ao Estado velar para que as relações de trabalho sejam reguladas
segundo a justiça e a eqüidade, e para que nos ambientes de trabalho não seja
lesada, nem no corpo nem na alma, a dignidade de pessoa humana. A este
propósito, a encíclica leonina aponta as linhas que vieram a inspirar a
legislação social dos estados contemporâneos: linhas, como já observava Pio XI
na encíclica Quadragesimo Anno,[4]
que eficazmente contribuíram para o aparecimento e a evolução de um novo e
nobilíssimo ramo do direito, o "direito do trabalho".
22. E aos
trabalhadores, afirma ainda a encíclica, reconhece-se o direito natural de
constituírem associações, ou só de operários, ou mistas de operários e patrões;
como também o direito de darem às mesmas a estrutura orgânica que julgarem mais
conveniente para assegurarem a obtenção dos seus legítimos interesses
econômico-profissionais, e o direito de agirem, no interior delas, de modo
autônomo e por própria iniciativa, para a consecução dos mesmos interesses.
23.
Operários e empresários devem regular as relações mútuas, inspirando-se no
princípio da solidariedade humana e da fraternidade cristã; uma vez que, tanto
a concorrência de tipo liberal, como a luta de classes no sentido marxista, são
contrárias à natureza e à concepção cristã da vida.
24. Eis,
veneráveis irmãos, os princípios fundamentais em que deve basear-se, para ser
sã, a ordem econômica e social.
25. Não
devemos, pois, admirar-nos, se os católicos mais eminentes, atendendo aos
apelos da encíclica, empreenderam iniciativas múltiplas, para traduzirem em
prática aqueles princípios. De fato, nessa tarefa se empenharam, sob o impulso
de exigências objetivas da natureza, homens de boa vontade de todos os países
do mundo.
26. Por
isso, a encíclica, com razão, foi e continua a ser considerada como a Magna
Carta [5]
da reconstrução econômica e social da época moderna.
A encíclica "Quadragesimo Anno"
27. Pio
XI, nosso predecessor de santa memória, comemorou o quadragésimo aniversário da
encíclica Rerum Novarum, com um novo documento solene:
a encíclica Quadragesimo Anno.[6]
28.
Nesta, o sumo pontífice insiste no direito e dever da Igreja de prestar a sua
contribuição insubstituível para a feliz solução dos problemas sociais mais
urgentes e mais graves, que angustiam a família humana; confirma os princípios
fundamentais e as diretrizes históricas da encíclica leonina; e aproveita a
ocasião para precisar alguns pontos de doutrina sobre os quais tinham surgido
dúvidas, mesmo entre católicos, e para desenvolver o pensamento social cristão,
atendendo às novas condições dos tempos.
29. As
dúvidas, levantadas diziam respeito, de modo especial, à propriedade privada,
ao regime dos salários, e à atitude dos católicos perante uma forma de
socialismo moderado.
30.
Quanto à propriedade privada, o nosso predecessor torna a afirmar o seu caráter
de direito natural, e acentua o seu aspecto e a sua função social.
31. Com
relação ao regime de salários, nega a tese que o declara injusto por natureza;
mas reprova ao mesmo tempo as formas inumanas e injustas que, não poucas vezes,
se praticou; inculca e desenvolve os critérios em que se deve inspirar e as
condições a que é preciso satisfazer para não se lesar a justiça nem a
eqüidade.
32. Nesta
matéria, o nosso predecessor indica claramente ser vantajoso, nas condições
atuais, suavisar o contrato de trabalho com elementos tomados do contrato de
sociedade, de modo que "os operários se tornem participantes ou na
propriedade ou na gestão, ou, em certa medida, nos lucros obtidos".[7]
33. Deve
considerar-se da mais alta importância doutrinal e prática a afirmação de Pio
XI que o trabalho não se pode "avaliar justamente nem retribuir
adequadamente, quando não se tem em conta a sua natureza social e
individual".[8]
Por conseguinte, para determinar a remuneração, declara o papa, a justiça exige
que se tenham em conta, além das necessidades de cada trabalhador e a sua
responsabilidade familiar, a situação da empresa a que os operários prestam o
seu trabalho, e ainda as exigências da economia geral.[9]
34. Entre
comunismo e cristianismo, o pontífice declara novamente que a oposição é
radical, e acrescenta não se poder admitir de maneira alguma que os católicos
adiram ao socialismo moderado: quer porque ele foi construído sobre uma
concepção da vida fechada no temporal, com o bem-estar como objetivo supremo da
sociedade; quer porque fomenta uma organização social da vida comum tendo a
produção como fim único, não sem grave prejuízo da liberdade humana; quer ainda
porque lhe falta todo o princípio de verdadeira autoridade social.
35. Nem
deixa Pio XI de notar que, nos quarenta anos passados desde a promulgação da
encíclica leonina, a situação histórica mudara profundamente. A livre concorrência,
em virtude da dialética que lhe é própria, tinha acabado por destruir-se a si
mesma ou pouco menos; levara a uma grande concentração da riqueza e além disso
à acumulação de um poder econômico desmedido nas mãos de poucos, "os
quais, muitas vezes nem sequer eram proprietários, mas simples depositários e
administradores do capital, de que dispunham a seu belprazer".[10]
36. E
assim, como observa com perspicácia o sumo pontífice, "à liberdade de
mercado sucedeu a hegemonia econômica; à sede de lucro, a cobiça desenfreada do
predomínio; de modo que toda a economia se tornou horrivelmente dura,
inexorável, cruel",[11]
escravizando os poderes públicos aos interesses de grupo e desembocando no
imperialismo internacional do dinheiro.
37. Para
remediar tal situação, o supremo pastor indica, como princípios fundamentais, o
regresso do mundo econômico à ordem moral e a subordinação da busca dos lucros,
individuais ou de grupos, às exigências do bem comum. Isto comporta, segundo o
seu ensinamento, a reorganização da vida social mediante a reconstituição de
corpos intermediários autônomos com finalidade econômica e profissional,
criados pelos particulares e não impostos pelo Estado; o restabelecimento da
autoridade dos poderes públicos para desempenharem as funções que lhes competem
na realização do bem comum; e a colaboração em plano mundial entre as
comunidades políticas, mesmo no campo econômico.
38. Os
temas fundamentais, característicos da magistral encíclica de Pio XI, podem
reduzir-se a dois. O primeiro proíbe completamente tomar como regra suprema das
atividades e das instituições do mundo econômico quer o interesse individual ou
de grupo, quer a livre concorrência, quer a hegemonia econômica, quer o
prestígio ou o poder da nação, ou outros critérios semelhantes.
39. Pelo
contrário, devem considerar-se regras supremas, daquelas atividades e
instituições, a justiça e a caridade social.
40. O
segundo tema recomenda a criação de uma ordem jurídica, nacional e
internacional, dotada de instituições estáveis, públicas e privadas, que se
inspire na justiça social e à qual se conforme a economia; assim tornar-se-á
menos difícil aos economistas exercer a própria atividade em harmonia com as
exigências da justiça e atendendo ao bem comum.
41.
Também Pio XII, nosso predecessor de venerável memória, contribuiu não pouco
para definir e desenvolver a doutrina social cristã. No dia 1° de junho de
1941, festa de Pentecostes, transmitiu uma radiomensagem "para chamar a
atenção do mundo católico sobre um acontecimento digno de ser gravado com
letras de ouro nos fastos da Igreja: o qüinquagésimo aniversário da fundamental
encíclica social Rerum Novarum de Leão XIII...[12]
e para agradecer humildemente a Deus todo-poderoso... o dom que... se dignou
conceder à Igreja com aquela encíclica do seu vigário na terra; e para
louvá-lo, pelo sopro do Espírito renovador que, por meio da mesma, derramou
desde então de modo sempre crescente sobre toda a humanidade".[13]
42. Nessa
radiomensagem, o grande pontífice reivindica para a Igreja a "irrefutável
competência de julgar se as bases de uma determinada ordem social estão de
acordo com a ordem imutável que Deus Criador e Redentor manifestou por meio do
direito natural e da revelação",[14]
reafirma a vitalidade perene dos ensinamentos da encíclica Rerum Novarum e a sua fecundidade
inexaurível; e aproveita a ocasião "para expor ulteriores princípios
diretivos de moral sobre três valores fundamentais da vida social e econômica.
Esses três valores fundamentais, que se unem, se enlaçam e se ajudam
mutuamente, são: o uso dos bens materiais, o trabalho e a família".[15]
43.
Quanto ao uso dos bens materiais, o nosso predecessor afirma que o direito de
todo homem a usar daqueles bens para o seu próprio sustento tem prioridade
sobre qualquer outro direito de natureza econômica, e mesmo sobre o direito de
propriedade. Certamente, acrescenta o nosso predecessor, também o direito de
propriedade dos bens é um direito natural; mas, segundo a ordem objetiva
estabelecida por Deus, o direito de propriedade é limitado, pois não pode
constituir obstáculo a que seja satisfeita a "exigência irrevogável dos
bens, criados por Deus para todos os homens, estarem eqüitativamente à
disposição de todos, segundo os princípios da justiça e da caridade".[16]
44. No
que se refere ao trabalho, retomando um tema apontado na encíclica leonina, Pio
XII confirma que ele é simultaneamente um dever e um direito de todos e cada um
dos homens. Por conseguinte, corresponde a estes, em primeiro lugar, regular as
relações mútuas do trabalho. Só no caso dos interessados não cumprirem ou não
poderem cumprir o seu dever, "compete ao Estado intervir no campo da
divisão e distribuição do trabalho, segundo a forma e a medida requeridas pelo
bem comum devidamente entendido".[17]
45.
Quanto à família, o sumo pontífice afirma que a propriedade privada dos bens
materiais deve ser considerada como "espaço vital da família; isto é, meio
apto para assegurar ao pai de família a sã liberdade de que necessita para
poder cumprir os deveres que lhe foram impostos pelo Criador, para o bem-estar
físico, espiritual e religioso dos seus".[18]
Isto confere também à família o direito de emigrar. Sobre este ponto, o nosso
predecessor adverte que os Estados, tanto os que permitem a emigração como os
que acolhem novos elementos, se procurarem eliminar tudo o que "pode
impedir o nascimento e o progresso de uma verdadeira confiança" [19]
mútua, conseguirão uma vantagem recíproca e contribuirão simultaneamente para o
incremento do bem-estar humano e do avanço da cultura.
Ulteriores modificações
46. A
situação, já mudada ao tempo da comemoração celebrada por Pio XII, sofreu
nestes vinte anos profundas inovações, quer no interior dos países quer nas
suas relações mútuas.
47. No
campo científico, técnico e econômico: a descoberta da energia nuclear, as suas
primeiras aplicações para fins bélicos e depois a sua utilização cada vez maior
para fins pacíficos; as possibilidades ilimitadas abertas pela química aos
produtos sintéticos; a difusão da automatização e da automação no setor
industrial e no dos serviços de utilidade geral; a modernização do setor
agrícola; o quase desaparecimento das distâncias nas comunicações, sobretudo
por causa do rádio e da televisão; a rapidez crescente dos transportes; e o
princípio da conquista dos espaços interplanetários.
48. No campo
social: a difusão dos seguros sociais, e, nalgumas nações economicamente
desenvolvidas, o estabelecimento de sistemas de previdência social; a formação
e extensão, nos movimentos sindicais, de uma atitude de responsabilidade
perante os maiores problemas econômicos e sociais; a elevação progressiva da
instrução de base; um bem-estar cada vez mais generalizado; a crescente
mobilidade social e a conseqüente remoção das barreiras entre as classes; o
interesse do homem de cultura média pelos acontecimentos diários de repercussão
mundial. Além disso, o aumento da eficiência dos sistemas econômicos, em cada
vez maior número de países, evidencia mais ainda os desequilíbrios econômicos e
sociais entre o setor agrícola, por um lado, e o setor da indústria e dos serviços
de utilidade geral, por outro; entre zonas economicamente desenvolvidas e zonas
menos desenvolvidas no interior de cada país; e no plano internacional, são
mais melindrosos ainda os desequilíbrios econômicos e sociais entre países
economicamente desenvolvidos e países economicamente em vias de
desenvolvimento.
49. No
campo político: em muitos países, a participação na vida pública de um número
cada vez maior de cidadãos de diversas condições sociais; a difusão e a
penetração da atividade dos poderes públicos no campo econômico e social.
Acresce, além disso, no plano internacional, o declínio dos regimes coloniais e
a conquista da independência política conseguida pelos povos da Ásia e da
África; a multiplicação e a complexidade das relações entre os povos e o
aumento da sua interdependência; a criação e o desenvolvimento de uma rede cada
vez mais apertada de organismos de projeção mundial, com tendência a
inspirar-se em critérios supranacionais: organismos de finalidades econômicas,
sociais, culturais e políticas.
Temas da nova encíclica
50. Nós
sentimo-nos no dever de conservar viva a chama acesa pelos nossos grandes
predecessores e de exortar a todos a que nela busquem incentivo e luz para
resolverem a questão social da maneira mais adequada aos nossos tempos. Por
este motivo, comemorando de forma solene a encíclica leonina, comprazemo-nos em
aproveitar a ocasião para repetir e precisar pontos de doutrina já expostos
pelos nossos predecessores, e ao mesmo tempo fazer uma exposição desenvolvida
do pensamento da Igreja, relativo aos novos e mais importantes problemas do
momento.
SEGUNDA PARTE
ACLARAÇÕES E AMPLIAÇÕES
DOS ENSINAMENTOS DA RERUM NOVARUM
DOS ENSINAMENTOS DA RERUM NOVARUM
Iniciativa pessoal e intervenção dos poderes públicos em matéria
econômica
51.
Devemos armar desde já que o mundo econômico é criação da iniciativa pessoal
dos cidadãos, quer desenvolvam a sua atividade individualmente, quer façam parte
de alguma associação destinada a promover interesses comuns.
52. Mas
nele, pelas razões já aduzidas pelos nossos predecessores, devem intervir
também os poderes públicos com o fim de promoverem devidamente o acréscimo de
produção para o progresso social e em beneficio de todos os cidadãos.
53. A
ação desses poderes, que deve ter caráter de orientação, de estímulo, de
coordenação, de suplência e de integração, há de inspirar-se no "princípio
de subsidiariedade", [20]
formulado por Pio XI na encíclica Quadragesimo Anno: "Deve contudo
manter-se arme o princípio importantíssimo em filosofia social: do mesmo modo
que não é lícito tirar aos indivíduos, a fim de o transferir para a comunidade,
aquilo que eles podem realizar com as forças e a indústria que possuem, é
também injusto entregar a uma sociedade maior e mais alta o que pode ser feito
por comunidades menores e inferiores. Isto seria, ao mesmo tempo, grave dano e
perturbação da justa ordem da sociedade; porque o objeto natural de qualquer
intervenção da mesma sociedade é ajudar de maneira supletiva os membros do
corpo social, e não destruí-los e absorvê-los".[21]
54. É verdade
que hoje os progressos dos conhecimentos científicos e das técnicas de produção
oferecem aos poderes públicos maiores possibilidades concretas de reduzir os
desequilíbrios entre os diferentes fatores produtivos, entre as várias zonas no
interior dos países e entre as diversas nações no plano mundial. Permitem, além
disso, limitar as oscilações nas alternativas das situações econômicas e
enfrentar com esperança de resultados positivos os fenômenos do desemprego das
massas. Por conseguinte, os poderes públicos, responsáveis pelo bem comum, não
podem deixar de sentir-se obrigados a exercer no campo econômico uma ação
multiforme, mais vasta e mais orgânica; como também a adaptar-se, para este
fim, às estruturas e competências, nos meios e nos métodos.
55. Mas é
preciso reafirmar sempre o princípio que a presença do Estado no campo
econômico, por mais ampla e penetrante que seja, não pode ter como meta reduzir
cada vez mais a esfera da liberdade na iniciativa pessoal dos cidadãos; mas,
deve, pelo contrário, garantir a essa esfera a maior amplidão possível,
protegendo efetivamente, em favor de todos e de cada um, os direitos essenciais
da pessoa humana. Entre estes há de enumerar-se o direito, que todos têm, de
serem e permanecerem normalmente os primeiros responsáveis pela manutenção
própria e da família; ora, isso implica que, nos sistemas econômicos, se
consinta e facilite o livre exercício das atividades produtivas.
56.
Aliás, até a evolução histórica põe em evidência cada vez maior o fato de se
não poder conseguir uma convivência ordenada e fecunda sem a colaboração, no
campo econômico, ao mesmo tempo dos cidadãos e dos poderes públicos;
colaboração simultânea realizada harmonicamente, em proporções correspondentes
às exigências do bem comum no meio das situações variáveis e das vicissitudes
humanas.
57. De
fato, a experiência ensina que, onde falta a iniciativa pessoal dos indivíduos,
domina a tirania política; e há ao mesmo tempo estagnação nos setores
econômicos, destinados a produzir sobretudo a gama indefinida dos bens de
consumo e de serviços que se relacionam não só com as necessidades materiais
mas também com as exigências do espírito: bens e serviços que exigem, de modo
especial, o gênio criador dos indivíduos.
58. Onde,
por outro lado, falta ou é defeituosa a necessária atuação do Estado, há
desordem insanável; e os fracos são explorados pelos fortes menos escrupulosos,
que medram por toda a parte e em todo o tempo, como a cizânia no meio do trigo.
A SOCIALIZAÇÃO
Origens e extensão do fenômeno
59. A
socialização é um dos aspectos característicos da nossa época. Consiste na
multiplicação progressiva das relações dentro da convivência social, e comporta
a associação de várias formas de vida e de atividade, e a criação de
instituições jurídicas. O fato deve-se a multíplices causas históricas, como
aos progressos científicos e técnicos, à maior eficiência produtiva e ao
aumento do nível de vida.
60. A
socialização é simultaneamente efeito e causa de uma crescente intervenção dos
poderes públicos, mesmo nos domínios mais delicados, como os da saúde, da
instrução e educação das novas gerações, da orientação profissional, dos
métodos de recuperação e readaptação dos indivíduos de algum modo menos
dotados. Mas é também fruto e expressão de uma tendência natural, quase
irreprimível, dos seres humanos: tendência a associarem-se para fins que
ultrapassam as capacidades e os meios de que podem dispor os indivíduos em
particular. Esta tendência deu origem, sobretudo nestes últimos decênios, a
grande variedade de grupos, movimentos, associações e instituições, com
finalidades econômicas, culturais, sociais, desportivas, recreativas,
profissionais e políticas, tanto nos diversos países como no plano mundial.
Apreciação
61. E
claro que a socialização assim entendida tem numerosas vantagens: torna
possível satisfazer muitos direitos da pessoa humana, especialmente os chamados
econômicos e sociais, por exemplo, o direito aos meios indispensáveis ao
sustento, ao tratamento médico, a uma educação de base mais elevada, a uma
formação profissional mais adequada, à habitação, ao trabalho, a um repouso
conveniente e à recreação. Além disso, através da organização cada vez mais
perfeita dos meios modernos da comunicação – imprensa, cinema, rádio e
televisão – permite-se a todos de participar nos acontecimentos de caráter
mundial.
62. Mas,
por outro lado a socialização multiplica os organismos e torna sempre mais
minuciosa a regulamentação jurídica das relações entre os homens, em todos os
domínios. Deste modo, restringe o campo da liberdade de ação dos indivíduos.
Utiliza meios, segue métodos e cria círculos fechados, que tornam difícil a
cada um pensar independentemente dos influxos externos, agir por iniciativa
própria, exercer a própria responsabilidade, afirmar e enriquecer a própria
pessoa. Sendo assim, deverá concluir-se que a socialização, crescendo em
amplitude e profundidade, chegará a reduzir necessariamente os homens a
autômatos? A esta pergunta temos de responder negativamente.
63. Não
se deve considerar a socialização como resultado de forças naturais impelidas
pelo determinismo; ao contrário, como já observamos, é obra dos homens, seres
conscientes e livres, levados por natureza a agir como responsáveis, ainda que
em suas ações sejam obrigados a reconhecer e respeitar as leis do progresso
econômico e social, e não possam subtrair-se de todo à pressão do ambiente.
64. Por
isso, concluímos que a socialização pode e deve realizar-se de maneira que se
obtenham as vantagens que ela traz consigo e se evitem ou reprimam as
conseqüências negativas.
65. Para
o conseguir, requer-se, porém, que as autoridades públicas se tenham formado, e
realizem praticamente, uma concepção exata do bem comum; este compreende o
conjunto das condições sociais que permitem e favorecem nos homens o
desenvolvimento integral da personalidade. E cremos necessário, além disso, que
os corpos intermediários e as diversas iniciativas sociais, em que sobretudo
procura exprimir-se e realizar-se a socialização, gozem de uma autonomia
efetiva relativamente aos poderes públicos, e vão no sentido dos seus
interesses específicos, com espírito de leal colaboração mútua e de
subordinação às exigências do bem comum. Nem é menos necessário que os ditos
corpos apresentem forma e substância de verdadeiras comunidades; isto é, que os
seus membros sejam considerados e tratados como pessoas, e estimulados a
participar ativamente na vida associativa.
66. As
organizações da sociedade contemporânea desenvolvem-se, e a ordem dentro delas
consegue-se, cada vez mais, graças a um equilíbrio renovado: exigência, por um
lado, de colaboração autônoma prestada por todos, indivíduos e grupos; e, por
outro lado, coordenação no devido tempo e orientação promovidas pelas
autoridades públicas.
67. Se a
socialização se praticasse em conformidade com as leis morais indicadas, não
traria, por sua natureza, perigos graves de vir a oprimir os indivíduos. Pelo
contrário, ajudaria a que nestes se desenvolvessem as qualidades próprias da
pessoa humana. Reorganizaria até a vida comum, tal como a apresentava o nosso
predecessor Pio XI na encíclica Quadragesimo Anno (22): condição
indispensável para a satisfação das exigências da justiça social.
A
REMUNERAÇÃO DO TRABALHO
Critérios de justiça e de eqüidade
68.
Amargura profunda invade o nosso espírito diante do espetáculo tristíssimo de
inumeráveis trabalhadores em muitas nações e continentes inteiros, os quais
recebem um salário que os submete, a eles e às famílias, a condições de vida
infra-humanas. Isto deve-se também a estar nos seus primórdios, ou numa fase de
insuficiente desenvolvimento, o processo da industrialização nessas nações e
continentes.
69. Mas,
em alguns desses países, a abundância e o luxo desenfreado de uns poucos
privilegiados contrasta, de maneira estridente e ofensiva, com as condições de
mal-estar extremo da maioria; noutras nações obriga-se a atual geração a viver
privações desumanas para o poder econômico nacional crescer segundo um ritmo de
aceleração que ultrapassa os limites marcados pela justiça e pela humanidade; e
noutras, parte notável do rendimento nacional consome-se em reforçar ou manter
um mal-entendido prestígio nacional, ou gastam-se somas altíssimas nos
armamentos.
70. Além
disso, nos países economicamente desenvolvidos, não é raro que para ofícios
pouco absorventes ou de valor discutível se estabeleçam distribuições ingentes,
enquanto que as correspondentes ao trabalho assíduo e profícuo de categorias
inteiras de cidadãos honestos e operosos são demasiado reduzidas, insuficientes
ou, pelo menos, desproporcionadas com a ajuda que eles prestam à comunidade, ou
com o rendimento da respectiva empresa, ou com o rendimento total da economia
da nação.
71.
Julgamos, pois, dever nosso armar uma vez mais que a retribuição do trabalho,
assim como não pode ser inteiramente abandonada às leis do mercado, também não
pode fixar-se arbitrariamente; há de estabelecer-se segundo a justiça e a
eqüidade. É necessário que aos trabalhadores se dê um salário que lhes
proporcione um nível de vida verdadeiramente humano e lhes permita enfrentar
com dignidade as responsabilidades familiares. É preciso igualmente que, ao
determinar-se a retribuição, se tenham em conta o concurso efetivo dos
trabalhadores para a produção, as condições econômicas das empresas e as
exigências do bem comum nacional. Considerem-se de modo especial as
repercussões sobre o emprego global das forças de trabalho dentro do país
inteiro, e ainda as exigências do bem comum universal, isto é, as que dizem
respeito às comunidades internacionais, de natureza e extensão diversas.
72. É
claro que os critérios acima expostos valem sempre e em toda a parte. Contudo,
não é possível determinar a medida em que devem aplicar-se, sem atender à
riqueza disponível; esta pode variar e varia de fato, na quantidade e na
qualidade, de nação para nação; e, mesmo dentro da mesma nação, de uma época
para outra.
Ajustamento entre o progresso econômico e o progresso social
73.
Enquanto as economias dos vários países se desenvolvem rapidamente, com ritmo
ainda mais intenso neste último após guerra, julgamos oportuno lembrar um
princípio fundamental. O progresso social deve acompanhar e igualar o
desenvolvimento econômico, de modo que todas as categorias sociais tenham parte
nos produtos obtidos em maior quantidade. É preciso, pois, vigiar com atenção e
trabalhar eficazmente para que os desequilíbrios econômicos e sociais não
cresçam, antes, quanto possível, se vão atenuando.
74.
"A própria economia nacional – nota sabiamente o nosso predecessor Pio XII
– assim como é fruto da atividade de homens que trabalham unidos na comunidade
política, assim não tende senão a assegurar, sem interrupção, as condições
materiais em que poderá desenvolver-se plenamente a vida individual dos
cidadãos. Onde isto se conseguir, e de modo duradouro um povo será, de verdade,
economicamente rico, porque o bem-estar geral, e, por conseguinte, o direito
pessoal de todos ao uso dos bens terrenos encontra-se deste modo realizado
conforme o plano estabelecido pelo Criador.[23]
Dai segue-se que a riqueza econômica de um povo não depende só da abundância
global dos bens, mas também, e mais ainda, da real e eficaz distribuição deles
segundo a justiça, para tornar possível a melhoria do estado pessoal dos
membros da sociedade: é este o fim verdadeiro da economia nacional.
75. Não
podemos deixar de aludir ao fato de que hoje, em muitas economias, as médias e
grandes empresas conseguem com freqüência aumentar rápida e consideravelmente a
capacidade produtiva por meio do autofinanciamento. Nestes casos, cremos poder
afirmar que aos trabalhadores se deve reconhecer um título de crédito nas
empresas em que trabalham, especialmente se ainda lhes toca uma retribuição não
superior ao salário mínimo.
76. A
este propósito convém recordar o princípio exposto pelo nosso predecessor Pio
XI na encíclica Quadragesimo Anno: "É completamente
falso atribuir só ao capital, ou só ao trabalho, aquilo que se obtém com a ação
conjunta de um e de outro, e é também de todo injusto que um deles, negando a
eficácia do contributo do outro, se arrogue somente a si tudo o que se
realiza".[24]
77. A
essa exigência de justiça pode satisfazer-se de diversas maneiras que a
experiência sugere. Uma delas, e das mais desejáveis, consiste em fazer que os
trabalhadores possam chegar a participar na propriedade das empresas, da forma
e no grau mais convenientes. Pois nos nossos dias, mais ainda que nos tempos do
nosso predecessor, "é necessário procurar com todo o empenho que, para o
futuro, os capitais ganhos, não se acumulem nas mãos dos ricos senão na justa
medida, e se distribuam com certa abundância entre os operários".[25]
78.
Devemos ainda recordar que o equilíbrio entre a remuneração do trabalho e o
rendimento deve conseguir-se em harmonia com as exigências do bem comum, tanto
da comunidade nacional como de toda a família humana.
79. Devem
considerar-se exigências do bem comum no plano nacional: dar emprego ao maior
número possível de trabalhadores; evitar que se constituam categorias
privilegiadas, mesmo entre trabalhadores; manter uma justa proporção entre
salários e preços; tornar acessíveis bens e serviços de interesse geral ao
maior número de cidadãos; eliminar ou reduzir os desequilíbrios entre os
setores da agricultura, da indústria e dos serviços; realizar o equilíbrio
entre a expansão econômica e o desenvolvimento dos serviços públicos
essenciais; adaptar, na medida do possível, as estruturas produtivas aos progressos
das ciências e das técnicas; moderar o teor de vida já melhorado da geração
presente, tendo a intenção de preparar um porvir melhor as gerações futuras.
80. São
exigências do bem comum no plano mundial: evitar qualquer forma de concorrência
desleal entre as economias dos vários países; favorecer a colaboração entre as
economias nacionais por meio de convênios eficazes; cooperar para o
desenvolvimento econômico dos países menos prósperos.
81. É
claro que estas exigências do bem comum, nacional ou mundial, também se devem
ter presentes quando se trata de fixar as partes de rendimento que se hão de
entregar, sob forma de ganhos, aos responsáveis pela direção das empresas; e,
sob forma de juros ou dividendos, aos que forneceram os capitais.
AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA QUANTO ÀS ESTRUTURAS
PRODUTIVAS
Estruturas conforme à dignidade do homem
82. A
justiça há de respeitar-se, não só na distribuição da riqueza, mas também na
estrutura das empresas em que se exerce a atividade produtiva. Na verdade,
exige a natureza que os homens, no exercício da atividade produtiva, encontrem
possibilidade de empenhar a própria responsabilidade e aperfeiçoar o próprio
ser.
83. Por
isso, quando as estruturas, o funcionamento e o condicionalismo de um sistema
econômico comprometem a dignidade humana dos que nele trabalham, entorpecem
sistematicamente o sentido da responsabilidade ou impedem que a iniciativa
pessoal se manifeste, tal sistema é injusto, mesmo se, por hipótese, a riqueza
nele produzida alcança altos níveis e é distribuída segundo as regras da
justiça e da eqüidade.
Confirmação de uma diretriz
84. Não é
possível determinar, em pormenor, quais as estruturas do sistema econômico que
melhor correspondem à dignidade humana e mais eficazmente desenvolvem o sentido
da responsabilidade. Contudo, o nosso predecessor Pio XII indica oportunamente
esta diretriz: "A propriedade agrícola pequena e média, a artesanal e
profissional, comercial e industrial, deve ser assegurada e promovida; as
uniões cooperativistas devem garantir-lhes as vantagens próprias da grande
exploração; e nas grandes explorações deve ficar aberta a possibilidade de
suavizar o contrato de trabalho pelo contrato da sociedade".[26]
Empresas artesanais e cooperativas de produção
85.
Devem-se conservar e promover, de harmonia com o bem comum e conforme as
possibilidades técnicas, a empresa artesanal, a exploração agrícola familiar, e
também a empresa cooperativista, como integração das duas precedentes.
86. Mais
adiante, voltaremos a falar da empresa agrícola familiar. Aqui, julgamos
oportuno algumas observações acerca da empresa artesanal e das cooperativas.
87. Antes
de mais, é preciso notar que ambas as empresas, para conseguirem viver, devem
adaptar-se constantemente nas estruturas, no funcionamento e nos tipos de
produtos às situações sempre novas, determinadas pelos progressos das ciências
e das técnicas, e ainda pela variação nas exigências e preferências dos
consumidores. Adaptação que tem de realizar, primeiro que todos, o artesanato e
os sócios das cooperativas.
88. Para
este fim, é necessário que uns e outros possuam uma boa formação não só técnica
mas também humana, e se encontrem organizados profissionalmente; e é também
indispensável que se exerça uma política econômica apropriada, no que diz
respeito sobretudo à instrução, ao regime fiscal, ao crédito e à previdência
social.
89. Por
outro lado, a ação dos poderes públicos em favor do artesanato e dos sócios das
cooperativas encontra-se também justificada pelo fato de representar categorias
a que pertencem valores humanos genuínos e que contribuem para o progresso da
civilização.
90. Por
estes motivos, convidamos, com amor paternal, os nossos caríssimos filhos,
artífices e sócios das cooperativas, espalhados pelo mundo inteiro, a tomarem
consciência da nobreza da sua profissão e da importância do que fazem para nas
comunidades nacionais se manter o sentimento da responsabilidade e espírito de
colaboração, e se conservar vivo o amor do trabalho perfeito e original.
Presença ativa dos trabalhadores nas médias e grandes empresas
91.
Seguindo na direção indicada pelos nossos predecessores também nós consideramos
que é legítima nos trabalhadores a aspiração a participarem ativamente na vida
das empresas, em que estão inseridos e trabalham. Não é possível determinar
antecipadamente o modo e o grau dessa participação, dependendo eles do estado
concreto que apresenta cada empresa. Esta situação pode variar de empresa para
empresa, e, dentro de cada empresa, está sujeita a alterações muitas vezes
rápidas e fundamentais. Julgamos contudo útil chamar a atenção para a
continuidade da presença ativa dos trabalhadores, tanto na empresa particular
como na pública; deve-se tender sempre para que a empresa se torne uma
comunidade de pessoas, nas relações, nas funções e na situação de todo o seu
pessoal.
92. Ora,
isto exige que as relações entre empresários e dirigentes, por um lado, e
trabalhadores, por outro, sejam caracterizadas pelo respeito, pela estima e
compreensão, pela colaboração leal e ativa, e pelo amor da obra comum; e que o
trabalho seja considerado e vivido por todos os membros da empresa, não só como
fonte de lucros, mas também como cumprimento de um dever e prestação de um
serviço. O que supõe, também, poderem os trabalhadores fazer ouvir a sua voz e
contribuir para o bom funcionamento e o progresso da empresa. Observava o nosso
predecessor Pio XII: "A função econômica e social, que todo o homem aspira
a desempenhar, exige que a atividade de cada um não se encontre submetida
totalmente à vontade alheia".[27]
Uma concepção humana da empresa deve, sem dúvida, salvaguardar a autoridade e a
eficiência necessária da unidade de direção; mas não pode reduzir os
colaboradores de todos os dias à condição de simples e silenciosos executores,
sem qualquer possibilidade de fazerem valer a própria experiência,
completamente passivos quanto às decisões que os dirigem.
93. É de
notar, por último, que o exercício da responsabilidade, por parte dos
empregados nos organismos produtivos, não só corresponde às exigências
legítimas, próprias da natureza humana, mas está também em harmonia com o
progresso histórico em matéria econômica, social e política.
94.
Infelizmente, como já indicamos e veremos ainda mais extensamente, não são
poucos os desequilíbrios econômicos e sociais que ofendem hoje a justiça e a
humanidade; e erros gravíssimos ameaçam as atividades, os fins, as estruturas e
o funcionamento do mundo econômico. Apesar disso, não se pode negar que os
regimes econômicos, sob o impulso do progresso científico e técnico, se vão
hoje modernizando e tornando mais eficientes, a um ritmo muito mais rápido que
antigamente. Isto exige dos trabalhadores aptidões e habilitações profissionais
mais elevadas. Ao mesmo tempo e como conseqüência, encontram eles a sua disposição
maior número de meios e mais extensas margens de tempo, para se instruírem e
atualizarem e para aperfeiçoarem a própria cultura e a formação moral e
religiosa.
95.
Torna-se também possível aumentar os anos destinados à educação de base e à
formação profissional das novas gerações.
96.
Vai-se deste modo criando um ambiente humano que favorece a possibilidade de as
classes trabalhadoras assumirem maiores responsabilidades mesmo dentro das
empresas; e as nações têm cada vez maior interesse em que todos os cidadãos se
considerem responsáveis pela realização do bem comum, em todos os setores da
vida social.
Presença dos trabalhadores em todos os níveis
97. Na
época moderna, aumentou notavelmente o movimento associativo dos trabalhadores;
e foi reconhecido em geral nas disposições jurídicas dos estados e até no plano
internacional, especialmente como instrumento de colaboração prestada sobretudo
por meio do contrato coletivo. Não podemos, todavia, deixar de notar como é
útil ou até necessário, que a voz dos trabalhadores tenha possibilidade de se
fazer ouvir e atender, fora mesmo de cada organismo produtivo, e isto em todos
os níveis.
98. A
razão está em que os organismos produtivos, por mais extensas que sejam as suas
dimensões e maior e mais profunda a sua eficiência, são órgãos vitais na
estruturação econômica e social das respectivas nações e estão condicionados
por ela.
99.
Todavia, as resoluções, que mais influem no conjunto, não são tomadas pelo
organismo produtivo, mas sim pelos poderes públicos ou por instituições de
alcance mundial, regional ou nacional, pertencentes à economia ou à produção.
Daqui a oportunidade, ou mesmo necessidade, de fazerem parte desses poderes ou
instituições, além dos que fornecem os capitais ou dos seus representantes,
também os trabalhadores ou quem lhes representa os direitos, exigências e
aspirações.
100. O
nosso pensamento afetuoso e o nosso paternal estímulo dirigem-se para as
associações profissionais e os movimentos sindicais de inspiração cristã,
presentes e ativos em vários continentes. Apesar de muitas dificuldades, por
vezes bem sérias, eles têm sabido trabalhar e continuam a fazê-lo, a favor dos
interesses dos trabalhadores e da sua elevação material e moral, tanto no
interior de cada país como no plano mundial.
101. É
com satisfação que julgamos dever nosso fazer notar que o seu trabalho não há
de ser medido apenas pelos resultados diretos e imediatos, que se encontram à
vista; mas também pelas repercussões positivas sobre todo o mundo do trabalho,
onde difunde idéias bem orientadas e exerce um influxo cristãmente renovador.
102.
Digno de estima é igualmente o influxo que os nossos amados filhos exercem, com
espírito cristão, nas outras associações profissionais e sindicais, inspiradas
nos princípios naturais da convivência e respeitadoras da liberdade de
consciência.
103.
Apraz-nos expressar a nossa estima sincera pela Organização Internacional do
Trabalho (OIT). Há dezenas de anos que ela vai contribuindo, de maneira eficaz
e preciosa, para implantar no mundo uma ordem econômica e social baseada na
justiça e na humanidade, ordem que exprime também as legítimas reivindicações
dos trabalhadores.
A PROPRIEDADE PRIVADA
Situação nova
104.
Nestes últimos decênios, como é do conhecimento geral, nos maiores organismos
econômicos foi acentuando-se cada vez mais a separação entre a propriedade dos
bens produtivos e as responsabilidades na direção. Sabemos que nasceram daqui
problemas difíceis de controle para os poderes públicos, tendo eles de
conseguir que os objetivos pretendidos pelos dirigentes de grandes
organizações, sobretudo daqueles que têm maior influência em toda a vida
econômica de um país, não se oponham às exigências do bem comum. Esses
problemas, como prova a experiência, surgem, tanto se os capitais das grandes
empresas são de propriedade privada como se pertencem a entidades públicas.
105. É
verdade que hoje já há um bom número de cidadãos, e cada dia vão sendo mais,
que, dados em organismos de seguros ou de previdência social, olham com serenidade
para o futuro: serenidade que, em outros tempos, se fundava sobre a posse de
patrimônios, embora fossem modestos.
106. Por
último, observe-se que nos nossos dias o homem aspira mais a conseguir
habilitações profissionais do que tornar-se proprietário de bens; e tem maior
confiança nos recursos que provém do trabalho ou no direito baseado no mesmo,
do que em rendimentos vindos do capital ou em direitos nele fundados.
107. Isso
encontra-se, aliás, em harmonia com a nobreza do trabalho como afirmação imediata
da pessoa diante do capital, que é, por sua natureza, instrumento. Esta mudança
de mentalidade há de considerar-se, portanto, um progresso na civilização
humana.
108. Os
aspectos indicados do mundo econômico, têm contribuído para espalhar a dúvida sobre
se deixou de ter valor hoje, ou perdeu importância, um princípio de ordem
econômica e social constantemente ensinado e propugnado pelos nossos
predecessores, o qual diz ser de direito natural a propriedade privada, mesmo
tratando-se de bens produtivos.
Reafirmação do direito de propriedade
109. Essa
dúvida não tem razão de ser. O direito de propriedade privada, mesmo sobre bens
produtivos, tem valor permanente, pela simples razão de ser um direito natural
fundado sobre a prioridade ontológica e finalista de cada ser humano em relação
à sociedade. Seria, aliás, inútil insistir na livre iniciativa pessoal em campo
econômico se a essa iniciativa não fosse permitido dispor livremente dos meios
indispensáveis para se afirmar. Além disso, a história e a experiência provam
que, nos regimes políticos que não reconhecem o direito de propriedade privada
sobre os bens produtivos, são oprimidas ou sufocadas as expressões fundamentais
da liberdade; é legítimo, portanto, concluir que estas encontram naquele direito
garantia e incentivo.
110.
Assim se explica como certos movimentos sociais e políticos que se propõem
conciliar na vida social a justiça com a liberdade e que eram, até há pouco,
claramente opostos ao direito de propriedade privada dos bens de produção, hoje,
melhor informados da realidade, revêem a própria posição e tomam uma atitude
substancialmente favorável a esse direito.
111.
Fazemos nossas, nesta matéria, as observações do nosso predecessor Pio XII:
"Quando a Igreja defende o princípio da propriedade privada, tem em vista
um alto fim ético e social. Não quer dizer que ela pretenda conservar pura e
simplesmente o estado presente das coisas, como se nele visse a expressão da
vontade divina, nem proteger por princípio o rico e o plutocrata, contra o pobre
e o proletário... A Igreja pretende conseguir que a instituição da propriedade
privada venha a ser o que deve, conforme o desígnio da Sabedoria Divina e as
disposições da natureza".[28]
Quer dizer, pretende que a propriedade privada seja garantia da liberdade
essencial da pessoa humana e elemento insubstituível da ordem social.
112.
Observamos também que hoje as economias, em muitos países, vão aumentando
rapidamente a própria eficiência produtiva. Mas, crescendo o rendimento, exigem
a justiça e a eqüidade, como já se viu, que seja também elevada a remuneração
do trabalho, dentro dos limites consentidos pelo bem comum. Isto dará aos
trabalhadores maior facilidade de poupar e constituir um patrimônio. Não se
compreende, portanto, como se pode contestar o caráter natural de um direito
que encontra a sua principal fonte e o seu alimento perpétuo na fecundidade do
trabalho; que constitui um meio apropriado para a afirmação da pessoa humana e
para o exercício da responsabilidade em todos os campos; e que é elemento de
estabilidade serena para a família, e de pacífico e ordenado progresso na
convivência social.
Difusão efetiva
113. Não
basta afirmar que o caráter natural do direito de propriedade privada se aplica
também aos bens produtivos; é necessário ainda insistir para que ela se difunda
efetivamente entre todas as classes sociais.
114. Como
afirma o nosso predecessor Pio XII, a dignidade da pessoa humana "exige
normalmente, como fundamento natural para a vida, o direito ao uso dos bens da
terra, ao qual corresponde a obrigação fundamental de conceder uma propriedade
privada, na medida do possível a todos" [29]
e, por outro lado, entre as exigências que derivam da nobreza moral do
trabalho, encontra-se também "a da conservação e do aperfeiçoamento de uma
ordem social que torne possível e assegure a todas as classes do povo a
propriedade privada, embora seja modesta".[30]
115.
Ainda mais se deve urgir a difusão da propriedade num tempo como o nosso, em
que, como já se indicou, mais numerosos são os países que desenvolvem
rapidamente os próprios sistemas econômicos. Por isso, utilizando os vários
recursos técnicos de eficiência comprovada, não é difícil promover iniciativas
e exercer uma política econômica e social que mente e facilite difusão mais
extensa da propriedade particular dos bens de consumo duráveis, da habitação,
das terras, das ferramentas dos artífices e alfaias da casa agrícola e de ações
nas médias e grandes empresas. Alguns países, economicamente prósperos e
socialmente avançados, já o estão experimentando com feliz resultado.
Propriedade pública
116. O
que fica dito não exclui, como é óbvio, que também o Estado e outras entidades
públicas possam legitimamente possuir, em propriedade, bens produtivos,
especialmente quando "eles chegam a conferir tal poder econômico, que não
é possível deixá-lo nas mãos de pessoas privadas sem perigo do bem comum".[31]
A época moderna tende para a expansão da propriedade pública: do Estado e de
outras coletividades. O fato explica-se pelas funções, cada vez mais extensas,
que o bem comum exige dos poderes públicos. Mas, também nesta matéria, deve
aplicar-se o princípio da subsidiariedade, acima enunciado. Assim, o Estado, e,
como ele, as outras entidades de direito público, não devem aumentar a sua
propriedade senão na medida em que verdadeiramente o exijam motivos evidentes
do bem comum, e não apenas com o fim de reduzir, e menos ainda eliminar, a
propriedade privada.
117. Nem
se pode esquecer que as iniciativas econômicas do Estado, e das outras
entidades de direito público, devem confiar-se a pessoas que juntem à
competência provada, a honestidade reconhecida e um vivo sentimento de
responsabilidade para com o país. Além disso, a atividade que exercem deve
estar sujeita a uma vigilância atenta e constante, mesmo para evitar que,
dentro da própria organização do Estado se formem núcleos de poder econômico,
com prejuízo do bem da comunidade, que é a sua razão de ser.
Função social
118.
Outro ponto de doutrina, proposto constantemente pelos nossos predecessores, é
que o direito de propriedade privada sobre os bens, possui intrinsecamente uma
função social. No plano da criação, os bens da terra são primordialmente
destinados à subsistência digna de todos os seres humanos, como ensina sabiamente
o nosso predecessor Leão XIII na encíclica Rerum Novarum: "Quem recebeu da
liberalidade divina maior abundância de bens, ou externos e corporais ou
espirituais, recebeu-os para os fazer servir ao aperfeiçoamento próprio, e
simultaneamente, como ministro da Divina Providência, à utilidade dos outros:
'quem tiver talento, trate de não o esconder; quem tiver abundância de
riquezas, não seja avaro no exercício da misericórdia; quem souber um ofício
para viver, faça participar o seu próximo da utilidade e proveito do
mesmo'".[32]
119.
Hoje, tanto o Estado como as entidades de direito público vão estendendo
continuamente o campo da sua presença e iniciativa. Mas nem por isso
desapareceu, como alguns erroneamente tendem a pensar, a função social da
propriedade privada: esta deriva da natureza mesma do direito de propriedade.
Há sempre numerosas situações dolorosas e indigências delicadas e agudas, que a
assistência pública não pode contemplar nem remediar. Por isso, continua sempre
aberto um vasto campo à sensibilidade humana e à caridade cristã dos
indivíduos. Observe-se por último que, para desenvolver os valores espirituais,
são muitas vezes mais fecundas as múltiplas iniciativas dos particulares ou dos
grupos, que a ação dos poderes públicos.
120.
Apraz-nos aqui recordar como o Evangelho considera legítimo o direito de
propriedade privada. Ao mesmo tempo, porém, o Divino Mestre dirige
freqüentemente convites instantes aos ricos para que transformem os seus bens
materiais em bens espirituais, repartindo-os com os necessitados: bens que o
ladrão não rouba, nem a traça ou a ferrugem destroem, e que se encontrarão
aumentados nos celeiros eternos do Pai do Céu: "Não ajunteis para vós
tesouros na terra, onde a traça e o caruncho os corroem e onde os ladrões arrombam
e roubam, mas ajuntai para vós tesouros nos céus, onde nem a traça, nem o
caruncho corroem, e onde os ladrões não arrombam nem roubam" (Mt 6,19-20).
E o Senhor considerará dada ou negada a si mesmo a esmola dada ou negada aos
indigentes: "Todas as vezes que fizestes (estas coisas) a um desses meus
irmãos mais pequeninos, a mim as fizestes" (Mt 25,40).
TERCEIRA PARTE
NOVOS ASPECTOS DA QUESTÃO SOCIAL
121.O
avanço da história faz ressaltar cada vez mais as exigências da justiça e da
eqüidade que não intervêm apenas nas relações entre operários e empresas ou
direção destas, mas dizem também respeito às relações entre os diversos setores
econômicos, entre zonas economicamente desenvolvidas e zonas economicamente
menos desenvolvidas dentro da economia nacional, e, no plano, mundial, às
relações entre países desigualmente desenvolvidos em matéria econômica e
social.
EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA
QUANTO ÀS RELAÇÕES ENTRE OS SETORES PRODUTIVOS
QUANTO ÀS RELAÇÕES ENTRE OS SETORES PRODUTIVOS
A agricultura, setor subdesenvolvido
122. Não
parece que a população rural do mundo, considerada em toda a sua extensão,
tenha diminuído, em números absolutos. Apesar disso, é incontestável que se dá
um êxodo das populações rurais em direção aos centros urbanos. É um fato que se
verifica em quase todos os países e algumas vezes atinge proporções enormes e
cria problemas humanos complexos, difíceis de resolver.
123.
Sabemos que, à medida que uma economia progride, diminui a mão de obra
empregada na agricultura, aumenta a percentagem dos que trabalham na indústria
e nos vários serviços. Pensamos, contudo, que o êxodo da população, do setor
agrícola para outros setores produtivos, não é provocado somente pelo progresso
econômico. Deve-se a múltiplas outras razões, como a vontade de fugir de um
ambiente considerado fechado e sem futuro; a sede de novidades e aventuras, que
domina a geração presente; a esperança de enriquecimento rápido; a miragem de
uma vida mais livre, com os meios e facilidades que oferecem os aglomerados
urbanos. Mas julgamos que não se pode duvidar de que este êxodo é também
provocado pelo fato de ser o setor agrícola, quase em toda a parte, um setor
deprimido, tanto no que diz respeito ao índice de produtividade da mão-de-obra,
como pelo que se refere ao nível de vida das populações rurais.
124. Daí
um problema de fundo, que se apresenta a quase todos os Estados: como reduzir o
desequilíbrio da produtividade entre o setor agrícola, por um lado, e o setor
industrial e os vários serviços, pelo outro? Isto, para o nível de vida da
população rural se distanciar o menos possível do nível de vida dos que
trabalham na indústria e nos serviços; para os agricultores não sofrerem um
complexo de inferioridade, antes, pelo contrário, se persuadirem de que, também
no meio rural, podem afirmar e aperfeiçoar a sua personalidade pelo trabalho, e
olhar confiados para o futuro.
125.
Parece-nos, por isso, oportuno indicar algumas diretrizes suscetíveis de
contribuírem para resolver o problema. Valem, pensamos nós, qualquer que seja o
ambiente histórico; contanto que sejam aplicadas, como é óbvio, da maneira e na
medida que o ambiente permitir.
Adaptação dos serviços essenciais
126.
Primeiramente, é indispensável que exista o empenho, sobretudo por parte dos
poderes públicos, em que, nos ambientes agrícolas, se desenvolvam, como convém,
os serviços essenciais: estradas, transportes, comunicações, água potável,
alojamento, assistência sanitária, instrução elementar, formação técnica e
profissional, boas condições para a vida religiosa, meios recreativos, e tudo o
que requer a casa rural em mobiliário e modernização. Se faltarem nos meios
rurais estes serviços, que hoje são elementos constitutivos de um nível de vida
digno, o desenvolvimento econômico e o progresso social vêm a tornar-se quase
impossíveis ou demasiado lentos. Donde resulta que o êxodo da população rural
se torna praticamente inevitável e dificilmente se consegue discipliná-lo.
Desenvolvimento gradual e harmonioso do sistema econômico
127. É
necessário também que o desenvolvimento econômico da nação se realize de modo gradual
e harmônico entre todos os setores produtivos. Quer dizer, é preciso que no
setor agrícola se realizem as transformações que dizem respeito às técnicas da
produção, à escolha das culturas e à estruturação das empresas, conforme as
permitir ou exigir a vida econômica no seu conjunto; de maneira que se atinja,
logo que seja possível, um nível de vida conveniente, comparado com o setor da
indústria e dos vários serviços.
128. A
agricultura chegará assim a absorver maior quantidade de bens industriais e a
requerer serviços mais qualificados. Por sua vez, oferecerá aos outros dois
setores e à comunidade inteira produtos que melhor correspondam, em quantidade
e qualidade, às exigências do consumo; e contribuirá para a estabilização da
moeda, elemento positivo para o progresso ordenado do sistema econômico total.
129.
Deste modo, julgamos que se tornaria menos difícil regulamentar, tanto nas
regiões donde parte como naquelas a que se dirige o movimento da mão-de-obra,
libertada pela modernização progressiva da agricultura; e seria possível
dar-lhe a formação profissional requerida para a sua proveitosa inserção nos
outros setores produtivos, bem como ajuda econômica e a preparação e
assistência espiritual, necessárias à sua integração na sociedade.
Política econômica apropriada
130. Para
se obter progresso econômico harmonioso entre todos os setores produtivos,
requer-se uma política econômica hábil no campo agrícola no que se refere ao
regime fiscal, ao crédito, à previdência social, à defesa dos preços, ao
fomento de indústrias complementares e à modernização dos estabelecimentos.
Regime fiscal
131. A
distribuição dos encargos segundo a capacidade contributiva dos cidadãos é
princípio fundamental de um sistema tributário justo e eqüitativo.
132. Mas
corresponde também a uma exigência do bem comum ter presente, na distribuição
tributária, que os lucros se obtêm com maior lentidão no setor agrícola e estão
expostos a maiores riscos, havendo, além disso, maiores dificuldades para obter
os capitais indispensáveis.
Capitais a juros convenientes
133.
Pelas razões acima indicadas, os possuidores de capitais são pouco inclinados a
investimentos neste setor, tendendo mais a investi-los noutros domínios. Assim,
acontece que a agricultura não pode pagar juros elevados; e ordinariamente nem
sequer os juros habituais, para encontrar os capitais necessários ao seu
desenvolvimento e ao exercício normal das suas atividades. Por conseguinte,
exige o bem comum que se aplique à agricultura uma política especial de crédito
que assegure aos lavradores esses capitais a uma taxa razoável de juros.
Seguros sociais e previdência social
134. Na
agricultura pode ser indispensável estabelecer dois sistemas diferentes de
seguros: um, para os produtos agrícolas; e outro, para os agricultores e suas
famílias. Pelo simples fato de o rendimento agrícola pro capite ser
geralmente inferior ao dos setores da indústria e dos serviços públicos, não
seria conforme à justiça social e à eqüidade estabelecer sistemas e seguros
sociais ou de previdência social em que os lavradores e respectivas famílias se
vissem notavelmente menos bem tratados que os setores da indústria e dos
serviços. Julgamos, porém, que a política social deve ter como objetivo
proporcionar aos cidadãos um regime de seguro que não apresente diferenças
notáveis, qualquer que seja o setor econômico em que trabalham ou de cujos
rendimentos vivem.
135. Os
sistemas de seguros sociais e de previdência social podem contribuir
eficazmente para uma distribuição do rendimento total de um país, segundo
critérios de justiça e de eqüidade; e podem, portanto, considerar-se como
instrumento para reduzir os desequilíbrios dos níveis de vida entre as várias
categorias de cidadãos.
Defesa dos preços
136. Dada
à natureza dos produtos agrícolas, é necessário aplicar-lhes uma disciplina
eficaz na defesa dos preços, utilizando para tal fim os diversos recursos que
hoje pode fornecer a técnica econômica. Seria muito desejável que esta
disciplina fosse sobretudo obra das pessoas interessadas; não pode porém
dispensar-se a ação reguladora dos poderes públicos.
137. Nem
se esqueça, nesta matéria, que o preço dos produtos agrícolas constitui
freqüentemente mais retribuição do trabalho que remuneração do capital.
138.O
papa Pio XI, na encíclica Quadragesimo Anno, observa judiciosamente que
para a realização do bem comum "contribui a justa proporção entre os
salários"; mas acrescenta, logo a seguir: "Com ela está intimamente
relacionada a proporção razoável entre os preços por que se vendem os produtos
dos ramos diversos da atividade econômica, como são a agricultura, a indústria
e outros semelhantes".[33]
139.Verdade
é que os produtos agrícolas estão destinados a prover antes de tudo às
necessidades humanas primárias; por isso, devem os preços ser tais, que os
tornem acessíveis a todos os consumidores. Todavia, é claro que não pode
aduzir-se este motivo para forçar uma categoria inteira de cidadãos a
permanecer num estado de inferioridade econômica e social, privando-a de um
poder de compra, indispensável a um nível de vida digno; o que seria
evidentemente contrário ao bem comum.
Complemento dos rendimentos agrícolas
140.
Convém promover, nas zonas agrícolas, as indústrias e os serviços de
armazenagem, transformação e transporte dos produtos dos campos. É também para
desejar que nessas zonas se levem a efeito iniciativas referentes aos outros
setores econômicos e às outras atividades profissionais. Deste modo, oferece-se
às famílias dos agricultores a possibilidade de completarem os ganhos nos
mesmos ambientes em que vivem e trabalham.
Adaptação estrutural da empresa agrícola
141. Não
é possível estabelecer a priori qual a estrutura que mais convém à
empresa agrícola, dada a variedade dos meios rurais no interior de cada país e,
mais ainda, entre os diversos países do mundo. Contudo, quando se tem um
conceito humano e cristão do homem e da família, não se pode deixar de
considerar como ideal a empresa que funciona como comunidade de pessoas. Desse
modo as relações, entre os seus membros e estruturas, correspondem às normas de
justiça e ao espírito que já indicamos. De modo particular, deve considerar-se
como ideal a empresa de dimensões familiares. Nem se pode deixar de trabalhar
para que uma e outra cheguem a ser realidade, de acordo com as condições ambientais.
142. É
oportuno, aliás, insistir em que a empresa de dimensões familiares será viável
somente se dela puder obter-se um nível de vida digno para a família. Para
isso, torna-se indispensável que os cultivadores sejam instruídos, modernizados
continuamente e assistidos na técnica da sua profissão. É também indispensável
que eles estabeleçam ampla rede de instituições cooperativistas, estejam
profissionalmente organizados, e tomem parte ativa na vida pública, tanto nos
organismos administrativos como nos movimentos políticos.
Os agricultores, protagonistas da própria elevação
143.
Estamos convencidos que os protagonistas do progresso econômico e social e da
elevação cultural nos meios rurais devem ser os mesmos interessados, quer
dizer, os lavradores. Podem facilmente convencer-se de quanto é nobre o seu
trabalho: vivem no templo majestoso da criação; estão em relações freqüentes
com a vida animal e vegetal, inesgotável nas expressões e inflexível nas leis,
a qual lembra constantemente a Providência do Criador; das suas mãos, por assim
dizer, brotam, em toda a sua variedade, os alimentos que sustentam a família
humana; e com elas proporcionam à indústria um número cada vez maior de
matérias-primas.
144. Esse
trabalho manifesta igualmente a dignidade dos que o realizam e distingue-se
pela riqueza dos conhecimentos de mecânica, química e biologia que exige;
conhecimentos que devem atualizar-se constantemente, tantas são as repercussões
dos progressos técnicos e científicos no setor agrícola. E, igualmente, um
trabalho caracterizado pelos aspectos e valores morais que lhe são próprios,
pois exige agilidade na orientação e adaptação, paciência na espera, sentido da
responsabilidade, espírito perseverante e empreendedor.
Solidariedade e colaboração
145. Repare-se
ainda que, no setor agrícola, como aliás em qualquer outro setor produtivo, a
associação é atualmente uma exigência vital; e muito mais, quando o setor se
baseia na empresa familiar. Os trabalhadores da terra devem sentir-se
solidários uns dos outros, e colaborar na criação de iniciativas
cooperativistas e associações profissionais ou sindicais. Umas e outras são
necessárias para tirar proveito dos progressos científicos e técnicos na
produção, contribuir eficazmente para a defesa dos preços, e chegar a um plano
de igualdade com as profissões, ordinariamente organizadas dos outros setores
produtivos; e para que a agricultura consiga fazer-se ouvir no campo político e
junto dos órgãos da administração pública. Porque hoje as vozes isoladas quase
não têm possibilidade de chamarem sobre si as atenções, e muito menos de se
fazerem atender.
Sensibilidade às exigências do bem comum
146.
Contudo, os lavradores, como aliás os trabalhadores de qualquer outro setor
produtivo, ao utilizarem as suas multiformes organizações, devem conservar-se
dentro da ordem moral e jurídica; quer dizer, devem conciliar os seus direitos
e interesses com os das outras profissões e subordinar uns e outros às
exigências do bem comum. Os agricultores, ao trabalharem pela melhoria e
elevação do mundo rural, podem legitimamente pedir que o seu trabalho seja
ajudado e completado pelos poderes públicos, contanto que eles mesmos mostrem
atender às exigências do bem comum e contribuam para as satisfazer.
147.
É-nos grato expressar aqui o nossa complacência àqueles alhos nossos que nas
diversas partes do mundo se ocupam em organizações cooperativistas,
profissionais e sindicais, tendentes à promoção econômica e social de todos os
cultivadores da terra.
Vocação e missão
148. O
homem encontra no trabalho agrícola mil incentivos para se afirmar, progredir e
enriquecer, mesmo na esfera dos valores do espírito. É, portanto, um trabalho
que se deve considerar e viver como vocação e missão; isto é, como resposta ao
convite recebido de Deus para colaborar na realização do seu plano providencial
na história, como compromisso tomado de se elevar cada um a si e elevar os
outros, e ainda como auxilio para a civilização humana.
Nivelamento e promoção nas zonas subdesenvolvidas
149. Não
é raro que, entre cidadãos do mesmo país, haja desigualdades econômicas e
sociais pronunciadas. Isso deve-se principalmente a viverem e trabalharem uns
em zonas economicamente desenvolvidas e outros em zonas atrasadas. A justiça e
a eqüidade exigem que os poderes públicos se empenhem em eliminar ou diminuir
essas desigualdades. Para isso, deve procurar-se que, nas zonas menos
desenvolvidas, sejam garantidos os serviços públicos essenciais segundo as
formas e os graus sugeridos ou reclamados pelo meio e correspondentes, em
princípio, ao padrão de vida médio, vigente no país. Mas não se requer menos
uma política econômica e social adequada, principalmente quanto à oferta de
trabalho, às migrações da população, aos salários, aos impostos, ao crédito,
aos investimentos, atendendo de modo particular às indústrias de caráter
propulsivo: política capaz de promover a absorção e o emprego remunerador da
mão-de-obra, de estimular o espírito empreendedor e de aproveitar os recursos
locais.
150.
Contudo, a ação dos poderes públicos há de encontrar sempre justificação em
motivos de bem comum. Deve, portanto, exercer-se num plano de conjunto para
toda a nação, com o intento constante de contribuir para o progresso gradual,
simultâneo e proporcionado, dos três setores produtivos: agricultura, indústria
e serviços; e procurar que os cidadãos das zonas menos desenvolvidas se sintam
e sejam deveras, na medida do possível, os responsáveis e os realizadores da
sua elevação econômica.
151.
Recordemos, finalmente, que também a iniciativa particular deve contribuir para
estabelecer o equilíbrio econômico e social entre as diferentes zonas de nação.
Mais ainda, os poderes públicos, em virtude do princípio de subsidiariedade,
devem favorecer e ajudar a iniciativa privada, comando-lhe, onde e logo que
seja possível de maneira eficiente, a continuação do desenvolvimento econômico.
Eliminar ou diminuir a desproporção entre terra e povoamento
152.
Convém observar que, em não poucas nações se verificam flagrantes desigualdades
entre território e população. Efetivamente, numas há escassez de homens e
abundância de terras aproveitáveis; ao passo que em outras são numerosos os
homens e escasseia a terra cultivável.
153. Há
também nações, em que, apesar das riquezas em estado potencial, a condição
ainda primitiva da agricultura não permite produzir bens suficientes para as
necessidades elementares das populações, enquanto, noutros países, o alto grau
de modernização alcançado pela lavoura determina uma superprodução de bens
agrícolas com reflexos negativos sobre as respectivas economias nacionais.
154. É
óbvio que a solidariedade humana e a fraternidade cristã pedem que sejam
estabelecidas, entre os povos, relações de colaboração ativa e multiforme, que
permita e favoreça o movimento de bens, capitais e homens, com o fim de
eliminar ou diminuir as desigualdades apontadas. Mas deste ponto falaremos a
seguir mais pormenorizadamente.
155.
Queremos contudo manifestar desde já a nossa sincera estima pela obra
eminentemente benéfica que vem realizando a Organização das Nações Unidas a
favor da alimentação e da agricultura (FAO), fomentando relações fecundas entre
os povos, promovendo a modernização das culturas sobretudo nas nações em vias
de desenvolvimento, aliviando o mal-estar das populações subalimentadas.
EXIGÊNCIAS DE JUSTIÇA
NAS RELAÇÕES ENTRE PAÍSES
DE DIFERENTE PROGRESSO ECONÔMICO
NAS RELAÇÕES ENTRE PAÍSES
DE DIFERENTE PROGRESSO ECONÔMICO
O problema da época moderna
156. O
maior problema da época moderna talvez seja o das relações entre as comunidades
políticas economicamente desenvolvidas e as que se encontram em vias de
desenvolvimento econômico; as primeiras, por conseguinte, com alto nível de
vida, as outras, em condições de escassez ou de miséria. A solidariedade, que
une todos os seres humanos e os torna membros de uma só família, impõe aos países,
que dispõem com exuberância de meios de subsistência, o dever de não
permanecerem indiferentes diante das comunidades políticas cujos membros lutam
contra as dificuldades da indigência, da miséria e da fome, e não gozam dos
direitos elementares da pessoa humana. Tanto mais que, dada a interdependência
cada vez maior entre os povos, não é possível que entre eles reine uma paz
durável e fecunda, se o desnível das condições econômicas e sociais for
excessivo.
157.
Consciente da nossa paternidade universal, nós sentimos o dever de inculcar, em
forma solene, quanto noutra ocasião já afirmamos: "Todos somos
solidariamente responsáveis pelas populações subalimentadas...".[34]
(Por isso) "é necessário educar as consciências no sentimento da
responsabilidade que pesa sobre todos e cada um, particularmente sobre os mais
favorecidos",[35]
158. É
bem claro que o dever, sempre proclamado pela Igreja, de ajudar quem se debate
com a indigência e a miséria, devem-no sentir mais intensamente os católicos,
pelo motivo nobilíssimo de serem membros do corpo místico de Cristo. O Apóstolo
São João proclama: "Nisto conhecemos o Amor: ele deu a sua vida por nós. E
nós também devemos dar a nossa vida pelos irmãos. Se alguém, possuindo os bens
deste mundo, vê o seu irmão na necessidade e lhe fecha o coração, como
permanecerá nele o amor de Deus?" (1 Jo 3,16-17).
159.
Vemos, pois, com agrado, que as nações dotadas de sistemas econômicos altamente
produtivos prestam ajuda às comunidades políticas em fase de progresso econômico,
para que estas cheguem, com menor dificuldade, a melhorar as próprias condições
de vida.
Auxílios de urgência
160. Há
nações em que se produzem bens de consumo e sobretudo gêneros agrícolas em
excesso; e há outras em que setores grandes da população lutam contra a miséria
e a fome. Motivos de justiça e de humanidade pedem que as primeiras vão em
socorro das outras. Destruir ou desperdiçar bens que são indispensáveis à
sobrevivência de seres humanos é ferir a justiça e a humanidade.
161.
Sabemos que produzir bens, sobretudo agrícolas, para além das necessidades de
um país, pode ter repercussões economicamente negativas para algumas categorias
de pessoas. Mas não é razão suficiente para cessar o dever de prestar auxílio
de urgência aos necessitados e famintos, seria antes uma razão a mais para
empregar todos os meios para diminuir aquelas repercussões negativas e as
distribuir eqüitativamente entre todos os cidadãos.
Cooperação científica, técnica e financeira
162.Os
auxílios de urgência, ainda que obedeçam a um dever de humanidade e de justiça,
não bastam para eliminar, nem sequer para diminuir, as causas que, num
considerável número de países, determinam um estado permanente de indigência,
de miséria, ou de fome. Essas causas encontram-se, principalmente, no
primitivismo ou atraso dos sistemas econômicos. Por isso não se podem eliminar
ou diminuir senão por meio de uma colaboração multiforme, destinada a fazer
adquirir aos seus cidadãos as habilitações profissionais e as competências
científicas e técnicas; e a fornecer os capitais indispensáveis para iniciar e
acelerar o progresso econômico segundo critérios e métodos modernos.
163. Bem
sabemos como, nestes últimos anos, se foi desenvolvendo e armando a consciência
do dever de fomentar o progresso econômico e social das nações que se debatem
com maiores dificuldades.
164.Organismos
mundiais e regionais, Estados, fundações, sociedades particulares, oferecem
cada vez mais a esses países a sua própria cooperação técnica em todos os
setores da produção; e proporcionam a milhares de jovens ocasião de irem
estudar nas universidades das nações mais adiantadas e adquirir uma formação
científica, técnica e profissional atualizada. Ao mesmo tempo, instituições
bancárias mundiais, Estados, e entidades particulares fornecem capitais e dão
ou contribuem para dar vida a uma rede cada vez mais extensa de iniciativas
econômicas dentro das nações ainda em vias de desenvolvimento. Apraz-nos
aproveitar a oportunidade para manifestarmos o nosso sincero apreço por
semelhante obra, rica de frutos. Mas não podemos deixar de observar que a
cooperação científica, técnica e econômica, entre as comunidades políticas mais
adiantadas e aquelas que se encontram ainda na fase inicial ou a caminho do
progresso, exige uma expansão maior ainda que a atual; e é para desejar que
essa expansão nos próximos decênios chegue a caracterizar as relações
intercomunitárias.
Evitar os erros do passado
165. A
este propósito, julgamos oportunas algumas considerações e advertências.
166. A
prudência aconselha que os países, que se encontram num estado inicial ou pouco
avançado no campo econômico, tenham presentes as experiências por que passaram
as nações já desenvolvidas.
167.
Produzir mais e melhor corresponde a uma exigência da razão, e é também
necessidade imprescindível. Não é porém menos necessário, nem menos conforme à
justiça, repartir-se eqüitativamente a riqueza produzida, entre todos os
membros da comunidade política: por isso, deve procurar-se que o
desenvolvimento econômico e o progresso social se sujeitem a um mesmo ritmo. O
que exige que esse desenvolvimento e esse progresso sejam realizados, na medida
do possível, gradual e harmonicamente, em todos os setores da produção:
agricultura, indústria e serviços.
Respeito às características próprias de cada comunidade
168. As
nações em fase de desenvolvimento econômico costumam apresentar uma
individualidade própria, inconfundível: pelos recursos e características do
próprio ambiente natural, pelas tradições muitas vezes ricas de valores humanos
e pelas qualidades típicas de seus membros.
169. As
nações economicamente desenvolvidas, ao ajudá-las, devem reconhecer e respeitar
essa individualidade, e vencer a tentação de projetar a própria imagem, através
daquela obra, sobre as comunidades em vias de desenvolvimento.
Obras desinteressadas
170. Mas
a tentação maior, para as comunidades políticas economicamente avançadas, é a
de se aproveitarem da cooperação técnica e financeira que prestam, para
influírem na situação política das comunidades em fase de desenvolvimento
econômico, afim de levarem a cabo planos de predomínio.
171. Onde
quer que isto se verifique, deve-se declarar explicitamente que estamos diante
de nova forma de colonialismo, a qual, por mais habilmente que se disfarce, não
deixará de ser menos dominadora do que a antiga, que muitos povos deixaram
recentemente. E essa nova forma prejudicaria as relações internacionais,
constituindo ameaça e perigo para a paz mundial.
172. É,
portanto, indispensável e justo que a mencionada cooperação técnica e
financeira se preste com o mais sincero desinteresse político. Deve ter apenas
em vista colocar essas comunidades, que pretendem desenvolver-se, em condições
de realizarem por si mesmas a própria elevação econômica e social.
173.
Deste modo oferece-se uma preciosa contribuição para formar uma comunidade
mundial, em que todos os membros serão sujeitos conscientes dos próprios
deveres e dos próprios direitos, e trabalharão em plano de igualdade, pela
consecução do bem comum universal.
Respeito pela hierarquia dos valores
174. Os
progressos científicos e técnicos, o desenvolvimento econômico, as melhorias
nas condições de vida, constituem sem dúvida elementos positivos de uma
civilização. Mas devemos lembrar-nos de que não são, nem podem ser, valores
supremos; em comparação destes, revestem essencialmente um caráter
instrumental.
175.
Observamos com amargura que, nos países economicamente desenvolvidos, existem
não poucos homens em que se foi extinguindo e se apagou, ou se inverteu, a
consciência da hierarquia dos valores. Os valores do espírito descuram-se,
esquecem-se ou negam-se; ao passo que os progressos das ciências e das
técnicas, o desenvolvimento econômico e o bem-estar material se apregoam e
defendem como bens superiores a tudo e são até exaltados à categoria de razão
única da vida. Esta mentalidade constitui um dos mais deletérios dissolventes
na cooperação que os povos economicamente desenvolvidos prestam aos povos em
fase evolutiva: estes, por antiga tradição, não raras vezes conservam ainda
viva e operante a consciência de alguns dos mais importantes valores humanos.
176. É
essencialmente imoral atentar contra esta consciência: deve ser respeitada e,
quanto possível, iluminada e aperfeiçoada, para continuar a ser o que é:
fundamento da verdadeira civilização.
Contribuição da Igreja
177. A
Igreja, por direito divino, é universal. E também o é de fato, por estar
presente, ou tender a estar presente, a todos os povos.
178. O
fato da Igreja ser estabelecida no meio de um povo tem sempre conseqüências
positivas no campo econômico e social, como o provam a história e a
experiência. Os homens, fazendo-se cristãos, não podem deixar de sentir a
obrigação de melhorar as estruturas e as condições da ordem temporal, por respeito
à dignidade humana, e para se eliminarem ou reduzirem os obstáculos à difusão
do bem e aumentarem os incentivos e os convites que levam a ele.
179. E,
além disso, a Igreja, ao penetrar na vida dos povos, não é nem pode
considerar-se nunca uma instituição imposta de fora, porque a sua presença
coincide com o renascimento ou a ressurreição de cada homem em Cristo; e quem
renasce ou ressuscita em Cristo, nunca é vítima de coação externa: pelo
contrário, sente-se livre no mais íntimo do próprio ser, para se encaminhar
para Deus; e tudo quando nele representa um valor, de qualquer natureza que
seja, se consolida e enobrece.
180. A
Igreja de Cristo, observa acertadamente o nosso predecessor Pio XII,
"fidelíssima depositária da educadora sabedoria divina, não pode pensar
nem pensa em alterar ou menosprezar as características particulares, que cada
povo, com zelo e piedade, e também com compreensível ufania guarda e considera
como precioso patrimônio. O seu fim é a unidade sobrenatural no amor universal,
conhecido e praticado; não a uniformidade exclusivamente externa e superficial,
por isso mesmo debilitante. A Igreja saúda, com alegria e acompanha com
solicitude maternal todas as diretrizes e medidas, que levam, a um prudente e
ordenado desenvolvimento de forças e tendências particulares, apoiadas nas
raízes mais profundas de cada raça, contanto que elas se não oponham aos
deveres que derivam, para o gênero humano, da sua unidade de origem e do
destino comum".[36]
181.Vemos
com profunda satisfação como hoje os cidadãos católicos, das comunidades em
fase de desenvolvimento econômico, ordinariamente não ficam atrás de ninguém ao
tratar-se de participar no esforço que elas realizam no sentido do progresso e
da elevação no campo econômico e social.
182. Por
outro lado, os cidadãos católicos das comunidades economicamente adiantadas
multiplicam as suas iniciativas no sentido de se favorecer e melhorar a ajuda
prestada às comunidades ainda em fase de desenvolvimento econômico. Digna de
especial consideração é a multiforme assistência que eles prestam, em
proporções cada vez maiores, aos estudantes da África e da Ásia espalhados pelas
universidades da Europa e da América, e ainda a preparação de pessoas dispostas
a irem para as nações subdesenvolvidas com o fim de lá exercerem atividades
técnicas e profissionais.
183. A
estes nossos queridos filhos, que em todos os continentes manifestam a perene
vitalidade da Igreja, promotora do progresso genuíno e vivificadora das
civilizações, queremos que chegue a nossa palavra paternalmente afetuosa de
aplauso e de alento.
INCREMENTOS DEMOGRÁFICOS
E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
Desequilíbrio entre a população e os meios de subsistência
184.
Nestes últimos tempos, surge a cada passo o problema da relação entre os
aumentos demográficos, o progresso econômico e a disponibilidade de meios de
subsistência, tanto no plano mundial, como nas comunidades políticas em vias de
desenvolvimento econômico.
185. No
plano mundial, observam alguns que, segundo cálculos estatísticos considerados
sérios, a família humana, dentro de poucos decênios, chegará a números muito
elevados, ao passo que o desenvolvimento econômico prosseguirá com ritmo menos
acelerado. Daqui concluem que a desproporção entre o povoamento e os meios de
subsistência, num futuro não longínquo, se fará sentir de maneira aguda, se não
se tratar devidamente de limitar o aumento demográfico.
186. Nas
comunidades políticas em fase de desenvolvimento econômico, observa-se com base
nas estatísticas, que a rápida difusão de medidas higiênicas e de cuidados
sanitários reduz muito a mortalidade, sobretudo infantil; ao mesmo tempo que a
percentagem da natalidade, que nessas comunidades costuma ser elevada, tende a
permanecer constante, ou quase constante, pelo menos durante um período
considerável de anos. Cresce pois notavelmente o excesso dos nascimentos sobre
os óbitos, não aumentando na mesma proporção a eficiência produtiva dos
respectivos sistemas econômicos. Torna-se impossível que nas comunidades em
fase de desenvolvimento econômico melhore o nível de vida; antes, é inevitável
que piore. Por isso, e afim de impedir que se chegue a situações de mal-estar
extremo, há quem julgue indispensável recorrer a medidas drásticas para evitar
ou diminuir a natalidade.
Os termos do problema
187. A
verdade é que, situado o problema no plano mundial, não parece que a relação
entre o incremento demográfico, por um lado, e o desenvolvimento econômico e a
disponibilidade dos meios de subsistência, por outro, venham a criar
dificuldades ao menos por agora ou num futuro próximo. De todos os modos, são
demasiado incertos e oscilantes os elementos de que dispomos para podermos
chegar a conclusões seguras.
188. Além
disso, Deus, na sua bondade e sabedoria, espalhou pela natureza recursos
inesgotáveis e deu aos homens inteligência e gênio capazes de inventar os
instrumentos aptos para com eles se poderem encontrar os bens necessários à
vida. Por isso, a solução fundamental do problema não deve procurar-se em
expedientes que ofendem a ordem moral estabelecida por Deus e atacam os
próprios mananciais da vida humana, mas num renovado esforço científico e
técnico, por parte do homem, no sentido de aperfeiçoar e estender cada vez mais
o seu domínio sobre a natureza. Os progressos já realizados pelas ciências e
técnicas abrem, nesta direção, horizontes ilimitados.
189.
Sabemos que, em determinadas áreas e em certos países em fase de
desenvolvimento econômico, apresentam-se realmente dificuldades graves, devidas
à existência de uma organização econômica e social deficiente que não oferece
meios de vida proporcionais ao índice do incremento demográfico e também à
insuficiência da solidariedade entre os povos.
190.
Todavia, mesmo em tais casos, devemos afirmar claramente desde já que estes
problemas não se podem encarar, nem estas dificuldades se podem vencer,
recorrendo a métodos e meios que são indignos de um ser racional e só encontram
explicação num conceito puramente materialista do homem e da vida.
191.A
solução acertada encontra-se apenas num progresso econômico e social que
respeite e fomente os genuínos valores humanos, individuais e sociais, em
conformidade com a moral, com a dignidade e o imenso valor da vida humana, e,
juntamente, numa colaboração em escala mundial que permita e fomente a
circulação ordenada e fecunda de conhecimentos úteis, de capitais e pessoas.
Respeito pelas leis da vida
192.
Temos de proclamar solenemente que a vida humana deve ser transmitida por meio
da família, fundada no matrimônio uno e indissolúvel, elevado para os cristãos
à dignidade de sacramento. A transmissão da vida humana foi confiada pela
natureza a um ato pessoal e consciente, sujeito, como tal, às leis
sapientíssimas de Deus: leis invioláveis e imutáveis, que é preciso acatar e
observar. Por isso, não se podem usar aqui meios, nem seguir métodos, que serão
lícitos quando se tratar da transmissão da vida nas plantas e nos animais.
193. A
vida humana é sagrada: mesmo a partir da sua origem, ela exige a intervenção
direta da ação criadora de Deus. Quem viola as leis da vida, ofende a Divina
Majestade, degrada-se a si e ao gênero humano, e enfraquece a comunidade de que
é membro.
Educação ao sentimento de responsabilidade
194. É de
suma importância que as gerações novas recebam, com a formação cultural e
religiosa adequada que é dever e direito dos pais proporcionar-lhes, também uma
educação sólida do sentimento de responsabilidade em todas as manifestações da
existência, particularmente no que diz respeito à fundação da família, à
transmissão da vida e à educação dos alhos. Deve inculcar-se-lhes uma fé viva,
e profunda confiança na Divina Providência, para se disporem a arrostar fadigas
e sacrifícios no cumprimento de tão nobre missão, muitas vezes difícil, qual é
a de colaborar com Deus em transmitir a vida humana e educar a prole. Para
educar, nenhuma instituição dispõe de recursos tão eficazes como a Igreja, que,
também por este motivo, possui o direito de exercer a sua missão com plena
liberdade.
Ao serviço da vida
195. No
Gênesis lembra-se como Deus impôs aos primeiros seres humanos dois mandamentos:
o de transmitir a vida: "Crescei e multiplicai-vos" (Gn 1,28)
e o de dominar a natureza: "Enchei a terra e submetei-a" (Gn
1,28): mandamentos que se completam mutuamente.
196. Sem
dúvida o mandamento divino de dominar a natureza não é imposto com uns
destrutivos, mas sim para serviço da vida.
197.
Notamos com tristeza que uma das contradições que mais perturbam e atormentam a
nossa época é a seguinte: enquanto, por um lado, salientam-se as situações de
mal-estar, e apresenta-se o espectro da miséria e da fome; por outro,
utilizam-se, muitas vezes em grande escala, as descobertas da ciência, as
realizações da técnica e os recursos econômicos, para criar terríveis
instrumentos de ruína e de morte.
198. A
providência de Deus concede ao gênero humano meios suficientes para resolver
dignamente os múltiplos e delicados problemas da transmissão da vida; mas estes
problemas podem tornar-se difíceis ou até insolúveis porque os homens,
desencaminhados na inteligência ou pervertidos na vontade, se valem desses
meios contra a razão, isto é, para fins que não correspondem à sua própria
natureza social nem aos planos da Providência.
COLABORAÇÃO EM PLANO MUNDIAL
Dimensões mundiais dos problemas humanos importantes
199. Os
progressos científicos e técnicos multiplicam e reforçam, em todos os setores
da convivência, as relações entre os países, tornando a sua interdependência
cada vez mais profunda e vital.
200. Por
conseguinte, pode dizer-se que os problemas humanos de alguma importância –
qualquer que seja o seu conteúdo, científico, técnico, econômico, social,
político ou cultural, apresentam hoje dimensões supranacionais e muitas vezes
mundiais.
201.
Assim, as comunidades políticas, separadamente e com as próprias forças, não
têm já possibilidade de resolver adequadamente os seus maiores problemas dentro
de si mesmas, ainda que se trate de nações que sobressaem pelo elevado grau e
difusão da cultura, pelo número e atividade dos cidadãos, pela eficácia dos
sistemas econômicos, e pela extensão e riqueza dos territórios. Todas se
condicionam mutuamente e pode, mesmo, afirmar-se que cada uma atinge o próprio
desenvolvimento, contribuindo para o desenvolvimento das outras. Por isso é que
se impõem o entendimento e a colaboração mútuos.
Desconfiança recíproca
202.
Assim se pode entender como, entre os indivíduos e os povos, vai ganhando cada
vez mais terreno a persuasão da necessidade urgente daquele entendimento e
colaboração. Ao mesmo tempo, porém, parece que os homens, particularmente os
que têm maiores responsabilidades, se mostram incapazes de realizar tanto um
como a outra. A raiz dessa incapacidade não se busque em razões científicas,
técnicas ou econômicas, mas na falta de confiança mútua. Os homens, e por
conseqüência os Estados, temem-se uns aos outros. Cada um teme que o vizinho
alimente intenções de domínio e espreite o momento de levar a efeito tais
propósitos. Por isso, organiza a própria defesa, quer dizer, arma-se, enquanto
vai declarando que o faz, mais para dissuadir o agressor hipotético de algum
ataque efetivo, do que para agredir.
203. E
deste modo, empregam-se imensas energias humanas e meios gigantescos para fins
não-construtivos, ao mesmo tempo que se insinua e robustece, entre indivíduos e
povos, um sentimento de mal-estar e de opressão, que debilita o espírito de
iniciativa, impedindo empreendimentos de maior envergadura.
Desconhecimento da ordem moral
204. A
falta de confiança mútua explica-se com o fato de os homens, sobretudo os mais
responsáveis, se inspirarem, no desenvolvimento da sua atividade, em concepções
da vida diferentes ou radicalmente contrárias entre si. Algumas, infelizmente,
não reconhecem a existência da ordem moral: ordem transcendente, universal e
absoluta, de igual valor para todos. Deste modo impossibilitam-se o contato e o
entendimento pleno e confiado, à luz de uma mesma lei de justiça, por todos
admitida e observada.
205.
Verdade é que os termos "justiça" e "exigências da justiça"
continuam a andar na boca de todos. Mas têm significações diversas ou opostas
para uns e para outros. E é por isso que os apelos, repetidos e apaixonados, à
justiça e às exigências da justiça, longe de oferecerem possibilidades de
contato ou de entendimento, aumentam a confusão, agravam as diferenças, e
tornam mais acesas as contendas. Daí, espalhar-se a persuasão de que não há
outro meio para fazer valer os próprios direitos e conseguir os próprios
interesses, que não seja o recurso à violência, fonte de males gravíssimos.
Deus, verdadeiro fundamento da ordem moral
206. A
confiança recíproca entre os homens e os Estados só pode nascer e consolidar-se
através do reconhecimento e do respeito pela ordem moral.
207. A
ordem moral não pode existir sem Deus: separada dele, desintegra-se. O homem,
pois, não é formado só de matéria, mas é também um ser espiritual, dotado de
inteligência e liberdade. Exige, portanto, uma ordem moral e religiosa, que,
mais do que todos e quaisquer valores materiais, influi na direção e nas
soluções que deve dar aos problemas da vida individual e comunitária, dentro
das comunidades nacionais e nas relações entre estas.
208. Foi
dito que, na era dos triunfos da ciência e da técnica, os homens podem
construir a sua civilização, prescindindo de Deus. A verdade é que mesmo os
progressos científicos e técnicos apresentam problemas humanos de dimensões
mundiais, apenas solúveis à luz de uma sincera e ativa fé em Deus, princípio e
fim do homem e do mundo.
209.
Veremos estas verdades confirmadas se repararmos que, até os ilimitados
horizontes abertos pela investigação científica contribuem para que se revigore
nos espíritos a persuasão de que as ciências e a matemática, se podem descobrir
os fenômemos, estão longe de abranger, e, menos ainda, de penetrar
completamente os aspectos mais profundos da realidade. E a trágica experiência
de gigantescas forças, que, postas ao serviço da técnica, tanto podem
utilizar-se para construir como para destruir, põe em evidência a importância
suprema dos valores do espírito e mostra que o progresso científico e técnico
há de conservar o seu caráter essencial de meio para a civilização.
210. O
sentimento de progressiva insatisfação, que se difunde nos países de alto nível
de vida, desfaz a ilusão do sonhado paraíso terrestre. E, ao mesmo tempo, vão
os homens tomando consciência cada vez mais clara dos direitos invioláveis e
universais da pessoa, e vai-se tornando mais viva a aspiração a estreitar
relações mais justas e mais humanas. Todos estes motivos contribuem para que a
humanidade se dê mais plena conta das suas limitações e se volte para os
valores do espírito. O que não pode deixar de ser feliz presságio de sinceros
acordos e fecundas colaborações.
QUARTA PARTE
A RENOVAÇÃO DAS RELAÇÕES
DE CONVIVÊNCIA NA VERDADE,
NA JUSTIÇA E NO AMOR
DE CONVIVÊNCIA NA VERDADE,
NA JUSTIÇA E NO AMOR
Ideologias defeituosas e errôneas
211.
Depois de tantos progressos científicos e técnicos, e mesmo em virtude deles,
subsiste ainda o problema de se renovarem relações de convivência em equilíbrio
mais humano, tanto no interior de cada país, como no plano internacional.
212. Com
este fim, elaboraram-se e difundiram-se diversas ideologias na época moderna.
Algumas já se dissiparam, como névoa ao contato do sol; outras sofreram e
sofrem revisões substanciais; outras ainda, enfraqueceram bastante, e vão
perdendo cada vez mais o seu poder de fascinação no espírito dos homens. A
razão de tal declínio está em que estas ideologias consideram apenas alguns
aspectos do homem, e, freqüentemente, os menos profundos, pois não tomam em
conta as imperfeições humanas inevitáveis, como a doença e o sofrimento, que
não podem ser eliminados nem sequer pelos sistemas econômicos e sociais mais
avançados. Além disso, há a profunda e inextinguível exigência religiosa, que
se nota sempre e em toda a parte, mesmo quando é conculcada pela violência ou
habilmente sufocada.
213.O
erro mais radical na época moderna é considerar-se a exigência religiosa do
espírito humano como expressão do sentimento ou da fantasia, ou então como
produto de uma circunstância histórica, que se há de eliminar como elemento
anacrônico e obstáculo ao progresso humano. Ora, é precisamente nesta exigência
que os seres humanos se revelam tais como são verdadeiramente: criados por Deus
e para Deus, como exclama Santo Agostinho: "Foi para ti, Senhor, que nos
fizeste; e o nosso coração está insatisfeito, até que descanse em ti".[37]
214.
Portanto, qualquer que seja o progresso técnico e econômico, não haverá no
mundo justiça nem paz, enquanto os homens não tornarem a sentir a dignidade de
criaturas e de filhos de Deus, primeira e última razão de ser de toda a
criação. O homem, separado de Deus, torna-se desumano consigo mesmo e com os
seus semelhantes, porque as relações bem ordenadas entre homens pressupõem
relações bem ordenadas da consciência pessoal com Deus, fonte de verdade, de
justiça e de amor.
215. É
certo que a perseguição desencadeada há decênios em muitos países, mesmo de
civilização cristã antiga, contra tantos irmãos e filhos nossos, os quais,
exatamente por essa razão, nos são queridos de modo especial, põe cada vez mais
em evidência a nobre superioridade dos perseguidos e a refinada barbárie dos
perseguidores; o que, se não produz ainda frutos visíveis de arrependimento,
leva já muita gente a refletir.
216.
Sempre fica de pé a verdade de que o aspecto mais sinistramente típico da época
moderna consiste na tentativa absurda de se querer construir uma ordem temporal
sólida e fecunda prescindindo de Deus, fundamento único sobre o qual ela poderá
subsistir; e querer proclamar a grandeza do homem, secando a fonte donde ela
brota e se alimenta, e isto através da repressão, e, se fosse possível, da
extinção das aspirações íntimas do homem, no sentido de Deus. Todavia, a
experiência cotidiana, no meio dos desenganos mais amargos e não raras vezes
através do testemunho do sangue, continua a mostrar a verdade do que arma o
livro inspirado: "Se Iahweh não contrói a casa, em vão labutam os seus
construtores" (Sl 126,1).
Perene atualidade da doutrina social na Igreja
217.A
Igreja apresenta e proclama uma concepção sempre atual da convivência humana.
218. Como
se conclui do que dissemos até agora, o princípio fundamental desta concepção
consiste em, cada um dos seres humanos, ser e dever ser o fundamento, o fim e o
sujeito de todas as instituições em que se expressa e realiza a vida social:
cada um dos seres humanos considerado na realidade daquilo que é e que deve
ser, segundo a sua natureza intrinsecamente social, e no plano divino da sua
elevação à ordem sobrenatural.
219.
Deste princípio básico, que defende a dignidade sagrada da pessoa, o magistério
da Igreja, com a colaboração de sacerdotes e leigos competentes, formulou,
especialmente neste último século, uma doutrina social. Esta indica com clareza
o caminho seguro que leva ao restabelecimento das relações de convivência
social segundo critérios universais correspondentes à natureza, aos diversos
âmbitos de ordem temporal, e às características da sociedade contemporânea, e
precisamente por isto, aceitáveis por todos.
220. Mas
hoje, é mais do que nunca indispensável que esta doutrina seja conhecida,
assimilada e aplicada à realidade nas formas e na medida que as situações
diversas permitem ou reclamam. Tarefa árdua, mas nobilíssima, para cuja
realização convidamos instantemente não só os nossos irmãos e filhos espalhados
pelo mundo inteiro, mas todos os homens de boa vontade.
Instrução
221. De
novo afirmamos, e acima de tudo, que a doutrina social cristã é parte
integrante da concepção cristã da vida.
222.
Embora saibamos, com prazer, que esta doutrina já de há muito é proposta em
vários institutos, insistimos na intensificação de tal ensino, por meio de
cursos ordinários e em forma sistemática, em todos os seminários e em todas as
escolas católicas de qualquer grau que sejam. Inclua-se também nos programas de
instrução religiosa das paróquias e das associações do apostolado dos leigos;
propague-se através dos meios modernos de difusão: imprensa diária e periódica,
obras de vulgarizaçâo e de caráter científico, rádio e televisão.
223. Para
a sua difusão muito podem contribuir os nossos filhos do laicato, com o desejo
de aprenderem a doutrina, com o zelo em a fazerem compreender aos outros e com
a prática da mesma, impregnando dela as próprias atividades de ordem temporal.
224. Não
esqueçam que a verdade e a eficácia da doutrina social católica se manifestam,
sobretudo, na orientação segura que oferecem à solução dos problemas concretos.
Desta maneira, conseguir-se-á chamar para ela a atenção dos que a desconhecem,
ou mesmo a combatem por a desconhecerem; e talvez se consiga até que no
espírito de alguns se faça luz.
Educação
225. Uma
doutrina social não se enuncia apenas; aplica-se na prática, em termos
concretos. Isto vale sobretudo quando se trata da doutrina social cristã, cuja
luz é a verdade, cujo fim é a justiça, cuja força dinâmica é o amor.
226.
Relembramos, pois, a necessidade de os nossos filhos não receberem apenas
instrução social, mas também educação social.
22'7. A
educação cristã deve ser integral; quer dizer, deve compreender a totalidade
dos deveres. Há de, pois, fazer nascer e fortificar nas almas a consciência de
terem de exercer cristãmente as atividades de natureza econômica e social.
228. A
passagem da teoria à prática é difícil por natureza e o é principalmente quando
se trata de reduzir a termos concretos uma doutrina social como a cristã. A
dificuldade vem do egoísmo profundamente enraizado no ser humano, do
materialismo que impregna a sociedade moderna, da dificuldade em reconhecer,
com clareza e exatidão, as exigências objetivas da justiça, em cada um dos
casos particulares. Por isso, não basta fazer despertar e formar a consciência
da obrigação de proceder cristãmente no campo econômico e social. A educação
deve pretender também ensinar o método que torne possível o cumprimento desta
obrigação.
Função das associações do apostolado dos leigos
229. Para
atuar cristãmente no campo econômico e social, a educação com dificuldade
haverá de mostrar-se eficaz, se os que a recebem não tomam nela parte ativa e
se não for dada também através da ação.
230. Justamente
se costuma dizer que não é possível chegar a usar bem da liberdade senão por
meio do bom uso da liberdade. De modo análogo, proceder cristãmente no campo
econômico e social não se consegue senão por meio da ação cristã concreta nesse
domínio.
231. Por
isso, na educação social, corresponde uma função importante às associações e
organizações ao apostolado dos leigos, especialmente às que se propõem, como
objetivo próprio, impregnar de cristianismo um ou outro setor da ordem
temporal.
232.
Efetivamente, não poucos membros destas Associações podem utilizar as suas
experiências cotidianas para se educarem a si próprios cada vez melhor e
contribuírem para a educação social dos jovens.
233. Vem
a propósito recordar a todos, grandes e pequenos, que o sentido cristão da vida
impõe espírito de sobriedade e sacrifício.
234.
Infelizmente, prevalecem hoje bastante a mentalidade e a tendência hedonistas,
que pretendem reduzir a vida à busca do prazer e à satisfação completa de todas
as paixões, com grave prejuízo para o espírito e até para o corpo. No plano
natural é sabedoria e fonte de bens a moderação e o domínio dos apetites
inferiores. E no plano sobrenatural, o evangelho, a Igreja e toda a sua
tradição ascética exigem o espírito de mortificação e penitência, que assegura
o domínio sobre a carne e oferece um meio efïcaz de expiar a pena devida pelo
pecado, do qual ninguém é livre senão Jesus e a sua mãe imaculada.
Sugestões práticas
235. Para
levar a realizações concretas os princípios e as diretrizes sociais, passa-se
ordinariamente por três fases: estudo da situação; apreciação da mesma à luz
desses princípios e diretrizes; exame e determinação do que se pode e deve
fazer para aplicar os princípios e as diretrizes à prática, segundo o modo e no
grau que a situação permite ou reclama. São os três momentos que habitualmente
se exprimem com as palavras seguintes: "ver, julgar e agir".
236.
Convém, hoje mais que nunca, convidar com freqüência os jovens a refletir sobre
estes três momentos e a realizá-los praticamente, na medida do possível. Deste
modo, os conhecimentos adquiridos e assimilados não ficarão, neles, em estado
de idéias abstratas, mas torná-los-ão capazes de traduzir na prática os
princípios e as diretrizes sociais.
237. Nas
aplicações destes, podem surgir divergências mesmo entre católicos retos e
sinceros. Quando isto suceder, não faltem a consideração, o respeito mútuo e a
boa vontade em descobrir os pontos onde existe acordo, a fim de se conseguir
uma ação oportuna e eficaz. Não nos percamos em discussões intermináveis; e,
sob o pretexto de conseguirmos o ótimo, não deixemos de realizar o bom que é
possível, e portanto, obrigatório.
238. Os
católicos, que exercem atividades econômicas e sociais, têm freqüentes relações
com outros homens que não possuem a mesma concepção da vida. Em tais relações,
procedam com atenção os nossos alhos, de modo a serem coerentes consigo mesmos
e não descerem a compromissos em matéria de religião e de moral. Mas, ao mesmo
tempo, mostrem espírito de compreensão, desinteresse e disposição a colaborar
lealmente na prossecução de objetivos bons por natureza, ou que, pelo menos, se
podem encaminhar para o bem. Contudo, se a hierarquia eclesiástica se pronuncia
em tal matéria, é claro que os católicos são obrigados a ater-se às diretrizes
recebidas; pois compete à Igreja o direito e o dever, não só de tutelar os
princípios de ordem ética e religiosa, mas também de intervir com autoridade na
esfera da ordem temporal, quando se trata de julgar da aplicação destes
princípios a casos concretos.
Ação multíplice e responsabilidade
239. Da
instrução e educação, deve passar-se à ação. É dever que pertence sobretudo aos
nossos filhos do laicato, porque, em virtude do seu estado de vida, se ocupam
habitualmente em atividades e instituições de ordem e finalidade temporais.
240. Aos
nossos filhos, para exercerem tão nobre função, é, não só necessário que sejam
profissionalmente competentes e desempenhem as suas atividades temporais, em
conformidade com as leis que lhes dizem respeito para conseguirem eficazmente o
fim próprio das mesmas; mas também indispensável que, no exercício dessas
atividades, se movam dentro dos princípios e diretrizes da doutrina social
cristã, numa atitude de confiança sincera e de obediência dial à autoridade
eclesiástica. Tenham presente que, no exercício das atividades temporais, se
não seguem os princípios e as diretrizes da doutrina social cristã, não só
faltam a um dever e lesam com freqüência os direitos dos seus irmãos, mas podem
até chegar a desacreditar a doutrina, como se ela fosse, apesar de nobre em si
mesma, desprovida de força e de orientação eficaz.
Um perigo grave
241. Como
já notamos, os homens de hoje aprofundaram e ampliaram muito o conhecimento das
leis da natureza, criaram instrumentos para lhe dominarem as forças, produziram
e continuam a produzir obras gigantescas e espetaculares. Mas, no seu empenho
de dominar e transformar o mundo exterior, correm o perigo de se esquecerem e
se enfraquecerem a si mesmos: Observou com profunda amargura o nosso
predecessor Pio XI, na encíclica Quadragesimo Anno: "E assim o trabalho
corporal que a divina providência destinara ao aperfeiçoamento material e moral
do homem, mesmo depois do pecado original, vai transformar-se em instrumento de
perversão. Por outras palavras, a matéria inerte sai enobrecida da fábrica; os
homens é que se corrompem e envilecem com ela".[38]
242.
Afirma, do mesmo modo, o sumo pontífice Pio XII, que a nossa época se distingue
pelo contraste flagrante entre o imenso progresso científico e técnico, e um
espantoso regresso no campo dos valores humanos, pois, "a sua monstruosa
obra-prima consiste em transformar o homem num gigante do mundo físico à custa
do seu espírito reduzido a pigmeu no mundo sobrenatural e eterno".[39]
243. Uma
vez mais se verifica hoje, em proporções tão vastas, o que dos pagãos afirmava
o Salmista, ao dizer que os homens esquecem muitas vezes na ação a própria
natureza, e admiram as obras que fazem, até ao ponto de verem nelas um ídolo:
"Os seus ídolos são prata e ouro, obra das mãos dos homens" (Sl
113,4).
Reconhecimento e respeito pela hierarquia dos valores
244. Na
nossa paternal solicitude de pastor de todas as almas, convidamos
insistentemente os nossos filhos a vigiarem sobre si mesmos, para manterem viva
e operante a consciência da hierarquia dos valores no exercício das atividades
temporais e na prossecução dos fins imediatos de cada uma.
245. É
certo que a Igreja ensinou sempre, e continua a ensinar, que os progressos
científicos e técnicos e o conseqüente bem-estar material são bens reais, que
marcam um passo importante no caminhar da civilização humana. Mas esses progressos
devem avaliar-se dentro da esfera da sua verdadeira natureza: são só
instrumentos ou meios a utilizar para a consecução mais eficaz de um fim
superior, que é facilitar e promover o aperfeiçoamento espiritual dos seres
humanos, tanto na ordem natural como na sobrenatural.
246. A
palavra do Divino Mestre continua a fazer-se ouvir como um aviso perene:
"Que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua
vida? Ou que poderá o homem dar em troca de sua vida?" (Mt 16, 26).
Santificação das festas
247. Esta
advertência não parece alheia à obrigação do repouso que se deve gozar nos dias
de festa. Para defender a dignidade do homem, como criatura dotada de alma
feita à imagem e semelhança de Deus, a Igreja urgiu sempre a observância do
terceiro preceito do decálogo: "Lembra-te de santificar o dia de
festa" (Ex 20, 8). Deus tem o direito de exigir do homem que
dedique ao culto um dia da semana, no qual o espírito, livre das ocupações
materiais, possa elevar e abrir o pensamento e o coração às coisas celestiais,
examinando no íntimo da consciência as suas relações inevitáveis e
indispensáveis com o Criador.
248. Mas
é também direito, e até necessidade do homem, interromper a aplicação do corpo
ao trabalho duro de cada dia, para aliviar os membros cansados, distrair
honestamente os sentidos e estreitar a união da família, que exige contato
freqüente e convívio tranqüilo entre todos.
249.
Religião, moral e higiene concordam na necessidade do repouso periódico que a
Igreja, desde há séculos, traduz na santificação do domingo, com a assistência
ao santo sacrifício da missa, memorial e aplicação da obra redentora de Cristo
às almas.
250. Com
viva dor temos de reconhecer e deplorar a negligência, para não dizer o
desprezo, desta lei santa; com perniciosas conseqüências para a saúde da alma e
do corpo dos nossos queridos trabalhadores.
251. Em
nome de Deus e para bem material e espiritual dos homens, chamamos a todos,
autoridades, patrões e trabalhadores, à observância do preceito de Deus e da
Igreja, recordando a cada um a grave responsabilidade que tem perante Deus e a
sociedade.
Empenho renovado
252. De
tudo o que acima brevemente expusemos, seria erro deduzir que os nossos filhos,
sobretudo do laicato, hajam de considerar prudente diminuir a sua obrigação
cristã para com o mundo; pelo contrário, devem renová-la e robustecê-la.
253.
Nosso Senhor, na sublime oração pela unidade da sua Igreja, não pede ao Pai que
afaste os seus do mundo, mas que os preserve do mal: "Não peço que os
tires do mundo, mas que os guardes do mal" (Jo 17, 15). Não devemos
ver artificialmente uma oposição onde ela não existe: neste caso, entre a
perfeição pessoal e a atividade de cada um no mundo, como se uma pessoa não
pudesse aperfeiçoar-se senão deixando de exercer atividades temporais, ou se o
exercício delas comprometesse fatalmente a nossa dignidade de seres humanos e
de crentes.
254. Pelo
contrário, corresponde perfeitamente ao plano da Providência que se aperfeiçoe
cada um pelo trabalho cotidiano; e este, para a quase totalidade dos homens, é
trabalho de natureza e finalidade temporal. A Igreja vê-se hoje empenhada com
uma missão gigantesca: a de imprimir caráter humano e cristão à civilização
moderna; caráter que esta pede, e quase reclama, para deveras progredir e se
conservar. Como insinuamos, a Igreja vai exercendo esta missão sobretudo por
meio dos seus filhos leigos, os quais, tendo sempre tal fim em vista, devem
sentir-se obrigados a exercer as próprias atividades profissionais como quem
satisfaz a um dever, como quem presta um serviço, em união íntima com Deus, em
Cristo e para sua glória. Já o indicava o apóstolo São Paulo: "Portanto
quer comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a
glória de Deus" (l Cor 10, 31). "E tudo o que fizerdes de
palavra ou ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus, por ele dando graças a Deus,
o Pai" (Cl 3, 17).
Maior eficácia nas atividades temporais
255. Uma
vez conseguido que as atividades e as instituições temporais permaneçam abertas
aos valores espirituais e aos fins sobrenaturais, conseguiu-se também, ao mesmo
tempo, reforçar-lhes a eficácia relativamente aos seus fins específicos e
imediatos. É sempre verdade a palavra do Divino Mestre: "Buscai em
primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão
acrescentadas" (Mt 6,33). Quando se é "luz no Senhor" (Ef
5,8), e se caminha como "filhos da luz" (cf. Ef 5,8),
apreendem-se melhor as exigências fundamentais da justiça, mesmo nas zonas mais
complexas e difíceis da ordem temporal, em que, não raro, os egoísmos
individuais, e os de grupo ou de raça, insinuam e espalham espessas névoas. E
quando somos animados pela caridade de Cristo, nós conhecemos os laços que nos
unem aos outros, e sentimos como próprias as necessidades, os sofrimentos e as
alegrias alheias. Por conseguinte, a ação de cada um, qualquer que seja o
objeto da mesma e o meio em que se exerce, não pode deixar de ser mais
desinteressada, mais vigorosa e mais humana; pois a caridade: "é paciente,
é benigna... não busca os seus próprios interesses... não folga com a
injustiça, alegra-se com a verdade... tudo espera, tudo suporta" (l Cor
13,4-7).
Membros vivos do Corpo Místico de Cristo
256. Mas
não podemos concluir a nossa encíclica sem recordar outra verdade, que é, ao
mesmo tempo, uma realidade sublime: somos membros vivos do corpo místico de
Cristo, que é a sua Igreja: "Com efeito, o corpo é um e, não obstante tem
muitos membros, mas todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, formam
um só corpo: assim também acontece com Cristo" (l Cor 12,12).
257.
Convidamos, com paternal insistência, todos os nossos filhos, do clero e do
laicato, a que tomem profunda consciência de tão grande dignidade e grandeza,
pois estão enxertados em Cristo, como os sarmentos na videira: "Eu sou a
videira e vós os ramos" (Jo 15,5) e, por esse motivo, são chamados
a viver a sua mesma vida. Todo o trabalho e todas as atividades, mesmo as de
caráter temporal, que se exercem em união com Jesus, divino Redentor, se tornam
um prolongamento do trabalho de Jesus e dele recebem virtude redentora:
"Aquele que permanece em mim e eu nele, produz muito fruto" (Jo
15,5). É um trabalho, através do qual não só realizamos a nossa própria
perfeição sobrenatural, mas contribuímos também para estender e difundir aos
outros os frutos da Redenção, levedando assim, com o fermento evangélico, a
civilização em que vivemos e trabalhamos.
258. A
nossa época encontra-se invadida e penetrada de erros fundamentais, dilacerada
e atormentada por desordens profundas; mas é também uma época em que, ao
espírito combativo da Igreja, se abrem imensas possibilidades de fazer o bem.
Conclusão
259.
Amados irmãos e filhos nossos: o olhar que lançamos convosco sobre os diversos
problemas da vida social contemporânea, desde as primeiras luzes do ensinamento
do papa Leão XIII, levou-nos a formular um conjunto de observações que formam
um programa. Convidamo-vos a que as pondereis, as mediteis bem e vos animeis a
cooperar, todos e cada um de vós, na realização do reino de Cristo sobre a terra:
"Reino de verdade e de vida; reino de santidade e de graça; reino de
justiça, de amor e de paz";[40]
reino que promete o gozo dos bens celestiais, para que fomos criados e que
ansiosamente desejamos.
260.
Trata-se da doutrina da Igreja católica e apostólica, mãe e mestra de todas as
gentes, cuja luz ilumina e abrasa; cuja voz, ao ensinar cheia de sabedoria
celestial, pertence a todos os tempos; cuja virtude oferece sempre remédios
eficazes, suscetíveis de trazerem solução para as crescentes necessidades dos
homens, para as angústias e aflições desta vida. A esta voz, une-se, em
perfeita harmonia, a voz antiquíssima do Salmista, que sem descanso conforta e
alenta as nossas almas: "Vou ouvir o que Iahweh Deus diz, porque ele fala
de paz ao seu povo e seus fiéis, para que não voltem à insensatez. Sua salvação
está próxima dos que o temem, e a Glória habitará em nossa terra. Amor e
Verdade se encontram, Justiça e Paz se abraçam; da terra germinará a Verdade, e
a Justiça se inclinará do céu. o próprio Iahweh dará a felicidade, e a nossa
terra dará seu fruto. A Justiça caminhará à sua frente e com seus passos
traçará um caminho (Sl 84, 9ss).
261. São
estes, veneráveis irmãos, os votos que nos formulamos, ao terminar esta carta,
a que, de há tempos, dedicamos a nossa solicitude pela Igreja universal.
Fazemo-lo, parà que o divino Redentor dos homens, "feito por Deus
sabedoria para nós, e justiça e santificação e redenção" (l Cor 1,
30), reine e triunfe, através dos séculos, em todos os homens e sobre todas as
coisas; e também para que, restabelecida a ordem na sociedade, todas as gentes
gozem finalmente de paz, de prosperidade e de alegria.
262. Como
presságio de feliz realização destes votos e como penhor da nossa paternal
benevolência, concedemos de coração, no Senhor, a bênção apostólica, a vós,
veneráveis irmãos, e a todos os fiéis confiados ao vosso ministério, de modo
especial aos que generosamente corresponderem às nossas exortações.
Dado em
Roma, junto de São Pedro, aos 15 de maio do ano de 1961, terceiro do nosso
Pontificado.
JOÃO PP. XXIII
Notas
[1] Acta Leonis XIII, 11(1891), pp, 97-144.
[2] Cf. ibid. p.107.
[3] S. Tomás, De Regimine Principum, I,15.
[4]
Cf. AAS, 23(1931), p.185.
[5]
Cf. ibid. p.189.
[6]
Cf. ibid. pp.177-228.
[7]
Cf. ibid. p.199.
[8]
Cf. ibid, p. 200.
[9]
Cf. ibid, p. 201.
[10]
Cf. ibid. p. 210-211.
[11]
Cf. ibid. p. 211.
[12]
Cf. AAS, 33(1941), p.196.
[13]
Cf. ibid. p.197.
[14]
Cf. ibid. p.196.
[15]
Cf. ibid. p.198s.
[16]
Cf. ibid. p.199.
[17]
Cf. ibid. p. 201.
[18]
Cf. ibid. p. 202.
[19]
Cf. ibid. p. 203.
[20]
Cf. AAS, 23(1931), p. 203.
[21]
Cf. ibid. p. 203.
[22]
Cf. AAS, 23(1931), p. 222s.
[23]
Cf. AAS, 33(1941), p. 200.
[24]
Cf. AAS, 23 (1931), p.195.
[25]
Cf. ibid. p.198.
[26] Radiomensagem de 1° de setembro de 1944; cf.
AAS, 36(1944), p. 254.
[27] Alocução de 8 de outubro de 1956; cf. AAS,
48(1956), pp. 999-800.
[28] Radiomensagem de 1° de setembro de 1944; cf.
AAS, 36(1944), p. 253.
[29] Radiomensagem de 24 de dezembro de 1942, cf.
AAS, 35(1943), p.17.
[30] Cf. ibid. p. 20.
[31] Carta Encíclica Quadragesimo Anno: AAS,
23(1931), p. 214.
[32] Acta Leonis XIII,11(1891), p.114; EE 3.
[33] Cf. AAS, 23(1931), p. 202; EE 5/657.
[34] Alocução de 3 de maio de 1960. AAS, 52(1960),
p. 465.
[35] Cf. ibid.
[36] Carta Encíclica Summi Pontificatus: AAS,
31(1939), pp 428-429.
[37] Confissões 1, 1.
[38] AAS. 23(1931), p. 221s.
[39] Radiomensagem de Natal de 1953: AAS, 46(1953),
p.10.
[40] Prefácio da Missa de Cristo Rei.
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Santa Sé
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