Uma
pessoa, um voto. Este tem sido o princípio das democracias liberais. Não é o
caso de discutir aqui se é um bom ou um mau princípio, mas apenas de lembrar a
sua configuração histórica na teoria política. Com base neste princípio é que
surgiram as principais leis eleitorais contemporâneas, e também por causa deste
princípio surgiu uma outra tendência contemporânea: mais poderoso, numa
sociedade, é aquele que, além do seu único voto pessoal, pode influenciar,
determinar ou mesmo exigir do outro que vote desta ou daquela maneira. Esta
pessoa torna-se um líder político.
Este
princípio de “uma pessoa, um voto” não vale para as relações internas da Igreja
Católica. Aqui, temos como fundamento de autoridade o amor de Deus, que nos
revelou Sua face em Jesus Cristo e nos deixou uma fé a receber e um caminho a
viver – uma moral. Tampouco entrarei aqui na questão espinhosa a respeito da
especificidade da moral cristã frente às chamadas “éticas seculares” ou “laicais”.
Há apenas duas coisas a dizer sobre isto agora: nós, católicos, sempre
acreditamos que a razão prática retamente exercida jamais poderia chegar a
verdades éticas diversas daquelas diretamente reveladas por Deus, porque Deus
é, ao mesmo tempo, o autor da razão e o autor da fé. Então não temos o que
temer de qualquer “ética secular” ou “laical”, porque acreditamos no poder da
razão humana. A segunda coisa a dizer é que há, sem dúvida, uma especificidade
da moral cristã sobre qualquer ética secular ou laica: trata-se da Graça de
Deus que habita no cristão, e torna-lhe possível, e até mesmo alegremente
desejável, reconhecer as verdadeiras normas éticas e obedecê-las. De qualquer
modo, a própria moral evangélica reconhece que há um âmbito de discussão legítima,
de opinião válida, quanto à gestão das coisas terrenas, no qual nenhuma
autoridade, nem mesmo religiosa, pode impor suas opiniões aos fiéis, senão
orientá-lo a pensar retamente.
Na
estrutura da democracia, no interior de um estado de Direito, ter um voto
significa poder expor seus próprios pontos de vista quanto à gestão das coisas
temporais, e não somente votar de acordo com esse ponto de vista, mas poder
influenciar os outros a fazê-lo, também. Mas uma característica contemporânea
do jogo político tem modificado muito este quadro: a ideia de que as pessoas
votam mal, de forma geral, e que isto decorre de que as pessoas não são
suficientemente educadas porque de algum modo o “sistema” as oprime, as
religiões as deturpam, o dinheiro as compram, os patrões as aterrorizam, os
esposos as dominam, etc. Por outro lado, alguns políticos começam a justificar
sua própria corrupção, sua própria roubalheira, como resultado de um sistema
político injusto, em que os seus supostos “nobres ideais populares” o levam a ter
que roubar muito dos cofres públicos para não ser derrotado pelos “reacionários
desonestos” que são financiados pelo “capital” e pelos “grandes interesses
internacionais”. Assim, começa a espraiar-se, pela sociedade, a ideia de que
uma reforma política é necessária. Não estou falando em tese, aqui. Esta é,
concretamente, a situação do Brasil, hoje.
A partir
da noção de que uma reforma política é necessária, há dois caminhos:
1) Aquele
de tentar simplificar e baratear as campanhas, trazer os candidatos para mais
perto do povo, reforçar o poder das famílias e dos grupos sociais como
religiões, escolas e universidades, permitir espaço para a verdadeira oposição
de ideias, para que a vontade popular possa mais clara e maduramente
expressar-se, e a responsabilidade dos políticos perante seus eleitores seja
intensificada. Dá-se espaço para que setores sociais e econômicos possam
influir legitimamente, inclusive de modo financeiro, sempre de maneira
transparente e aberta, para que não haja abusos. Aqui, aposta-se na
estabilidade das instituições sociais e políticas, e na necessidade de que os
sistemas que estão funcionando bem sejam reforçados e aqueles que funcionam
mal, corrigidos.
2) Há uma
outra visão, porém; aquela de que as pessoas comuns simplesmente vão votar mal,
qualquer que seja o sistema, a menos que se promova uma ruptura e se imponha à
população aqueles valores que determinadas vanguardas já, de antemão,
escolheram para o país, no pressuposto de que essas vanguardas sabem melhor do
que nós o que é melhor para nós. Numa proposta de reforma política guiada por
tal mentalidade, veremos a concentração de poderes nas mãos dos grandes
partidos políticos – mormente naqueles que se apresentam com “bandeiras
vanguardistas”, limitações radicais para o acesso a recurso financeiro por
parte da oposição à ideias preconcebidas do “grupo de vanguarda” e a imposição,
à população, de que vote num determinado candidato apenas porque tem
determinado sexo ou “gênero”, para que se alcance uma “paridade” que não representa
um espelho do que a sociedade pensa ou é, mas das tendências sexuais que a
vanguarda pensante entende necessário impor para o “bem” do país. Vale mais,
neste quadro, pertencer a um “gênero” ou “minoria militante” do que representar
bem o pensamento dos respectivos eleitores. Inevitavelmente, uma vanguarda
iluminada deste tipo proporá, em algum momento, uma “assembleia constituinte”,
a pretexto de reforma política, para reformar todo o país à sua própria imagem
e semelhança, naquilo que eles acham que são só verdadeiros “interesses
populares”, como ocorreu, por exemplo, na Bolívia, na Venezuela e em outros
países assim. Uma vez deflagrado um processo constituinte, a pretexto, por
exemplo, de uma reforma política, nós sabemos que não há como limitar o Poder
Constituinte a restringir-se a este assunto. O Poder Constituinte é,
politicamente, soberano. Quem pensa assim quer forçar impacientemente o povo a
experimentar à força sua própria utopia (quer dizer, a utopia da vanguarda, não
a do povo), impaciente com o que imagina que é a incapacidade do próprio povo
de escolher livremente o que é melhor para si, em razão daquilo que vê como
“opressões internacionais, machistas, reacionárias, religiosas”, das quais
apenas essa mesma vanguarda encontra-se livre, libertada, seja cientificamente
pelo socialismo, seja teologicamente pela releitura revolucionária da tradição
cristã.
Há uma
reforma política em curso, de iniciativa popular, liderada por uma certa
“Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas”, que conta com
diversos apoios, inclusive da OAB, de ONGs sindicais e sexuais e de entidades
religiosas, inclusive católicas e evangélicas. Em algum momento, alguém pode
pedir a sua assinatura para essa proposta. Ela se caracteriza pelos seguintes
pontos:
1. De
acordo com o art. 5º e parágrafos, você vai sofrer duas eleições para os cargos
do legislativo. Na primeira, vai votar só numa legenda. Essa legenda, então,
vai escolher os candidatos numa lista a partir do número de cargos a que tem
direito, e você vai votar nessa lista, numa segunda vez. Ou seja, o raciocínio
aqui é: “se temos um problema para financiar uma eleição, vamos fazer o
seguinte: vamos fazer duas!”; também parte do raciocínio é: “se as eleições
estão levando o povo a escolher mal, vamos fazer com que o povo delegue aos
partidos o poder de escolher os representantes do povo através de listinhas
internas”. Não precisa pensar muito para descobrir a mentalidade por trás
dessas duas propostas – não parece ser o aumento do poder do eleitor, nem o
barateamento das eleições.
2. As
empresas, mesmo as microempresas, as pequenas e médias empresas realmente
produtivas, que não recebem nada do Estado senão os boletos de cobrança de
tributos e a visita de auditores fiscais para multá-las por não atenderem a
cada vez mais complexa legislação tributária, serão proibidas de participar
financeiramente de campanhas políticas, mesmo que não recebam nada do Estado
nem pretendem receber. Isto sob o pretexto de que empresários e patrões são
sempre maus e opressores, já que megaempresários corrompem políticos para obter
recursos estatais ilícitos. Mas os sindicalistas e líderes religiosos, que
controlarem multidões de pessoas físicas, poderão se valer de seus afiliados e
fiéis para multiplicar pequenas doações privadas e multiplicar suas chances de
se eleger. Isto aumenta muito, e progressivamente, se os candidatos forem de
“gênero” sexual ou de “minorias oprimidas”, pois terão cada vez mais recursos
para suas campanhas. São os art. 17A e 17B desse projeto.
3. Quanto
maior for a bancada do partido no momento da eleição, mais dinheiro público ele
receberá dos cofres públicos (ou seja, do dinheiro arrancado dos cidadãos por
via de impostos, taxas e preços públicos), o que favorecerá a permanência
progressiva e a perpetuação do grupo que se aboletar no poder num dado momento,
com o dinheiro de todos, dificultando a renovação política e o eventual
crescimento de uma oposição verdadeira. É o art. 18 deste projeto.
Agora é
julgar, cada um com sua própria consciência, se este projeto vai na linha do
aumento real de poder para o eleitor, ou se vai na linha do aumento de poder
para a classe política, os partidos majoritários e a “militância de vanguarda”.
E, como cada pessoa tem apenas um voto, decida livremente se vai assinar esse
projeto. Mas não sem lê-lo com cuidado.
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ZENIT
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