terça-feira, 5 de maio de 2015

Como explicar que Deus criou o mal?


Pergunta: Lemos, frequentemente, na Escritura, que Deus criou o mal e o enviou aos homens. Por exemplo: Não há outro Deus senão eu. Eu sou o Senhor e não há outro, que forma a luz e cria as trevas, faz a paz e cria os males (Is. 45, 6-7). E em outro lugar: Acontece algum mal na cidade que o Senhor não tenha feito? (Am. 3,6 – LXX).

Resposta: A Sagrada Escritura algumas vezes costuma empregar o termo “males” de maneira inadequada para designar “aflições”. Não que as aflições se identifiquem como os “males” pela sua própria natureza, mas aos olhos dos que são atingidos por elas, assim lhe parece, embora isso aconteça para seu próprio benefício. Deus, ao se dirigir aos homens para instruí-los sobre suas direções, deve, necessariamente, falar-lhe através de palavras e sentimentos humanos.

Na verdade, a amputação e a cauterização que o médico caridosamente aplica aos que sofrem de uma chaga gangrenada, apesar de salutares, são consideradas um mal pelos pacientes. A espora não é bem suportada pelo cavalo, nem a correção pelo culpado. Todos os castigos, na hora, parecem amargos àqueles a cuja correção pelo culpado. Todos os castigos se destinam, como ensina o Apóstolo: Toda educação, com efeito, no momento não parece motivo de alegria, mas de tristeza. Depois, no entanto, produz naqueles que assim foram exercitados um fruto de paz e de justiça (Hb. 12, 11). Pois o Senhor educa a quem ama, aplica o açoite naquele que reconhece como filho. Qual é o filho a quem o pai não castiga?

Por ai se pode ver que a expressão “males” é às vezes usada como equivalente de aflições, como na seguinte passagem: E Deus se arrependeu de fazer-lhes o mal que, segundo dissera, ia fazer, e não o fez (Jo. 3, 10 – LXX). E ainda nesta outra: Senhor, és misericordioso e cheio de piedade, paciente e grandemente bondoso, pronto para arrepender-te dos males (Jl. 2, 13 – LXX). Isto é, das tribulações e dos aborrecimentos que, por causa dos nossos pecados, merecidamente és impedido de nos infligir.

Conhecendo o benefício que muitos tiram dessas provações, outro profeta, não por inveja, mas como contribuição à salvação dessas pessoas, assim, lhes vaticina. Envia-lhe, Senhor, o mal aos soberbos da terra (Is. 26, 15 – LXX). E o próprio Senhor também diz: Eis que lhes vou fazer desgraças (Jr. 11, 11), isto é, dores e devastações, para que, salutarmente castigados agora, depois de me terem desprezado no tempo da prosperidade, se vejam por fim forçados a correr para mim.

Por isso, não podemos julgar que se trate em tais casos de males “essenciais”, porquanto deles muitas pessoas se beneficiam e, por esse meio, conquistam as alegrias eternas.

Voltando, pois, à questão proposta, pensamos que todos os supostos males, provenientes dos inimigos ou de quem quer que seja, não deve ser considerados como males reais, mas, sim, como coisas diferentes. Logo, para julgá-los, o que importa não é o sentimento de quem os pratica na exaltação da ira, mas o que deles pensa aquele que os suporta. Assim, o que seria um mal para o pecador, para o justo é causa de repouso e de libertação de todos os males. A morte é um descanso para o homem cujos caminhos são escondidos (Job. 3, 23 – LXX).

Portanto, o justo não sofre com a morte dano algum porque ela nada lhe traz de novo. O que ele estava condenado a sofrer pela fatalidade da própria natureza lhe é infligido pela maldade do inimigo. Isso, porém, lhe vem acrescido com o prêmio da vida eterna. Com isso, o justo não só paga uma dívida inexorável, a da morte humana, mas também, ao mesmo tempo, colhe do seu sofrimento um fruto abundantíssimo e o prêmio de uma infinita recompensa.

São João Cassiano
Em sua obra Conferências

Disponível em: Aurora Ortodoxia

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