Pergunta:
Lemos, frequentemente, na Escritura, que
Deus criou o mal e o enviou aos homens. Por exemplo: Não há outro Deus senão
eu. Eu sou o Senhor e não há outro, que forma a luz e cria as trevas, faz a paz
e cria os males (Is. 45, 6-7). E em outro lugar: Acontece algum mal na cidade
que o Senhor não tenha feito? (Am. 3,6 – LXX).
Resposta:
A Sagrada Escritura algumas vezes costuma empregar o termo “males” de maneira
inadequada para designar “aflições”. Não que as aflições se identifiquem como
os “males” pela sua própria natureza, mas aos olhos dos que são atingidos por
elas, assim lhe parece, embora isso aconteça para seu próprio benefício. Deus,
ao se dirigir aos homens para instruí-los sobre suas direções, deve,
necessariamente, falar-lhe através de palavras e sentimentos humanos.
Na verdade, a amputação e a cauterização que o
médico caridosamente aplica aos que sofrem de uma chaga gangrenada, apesar de
salutares, são consideradas um mal pelos pacientes. A espora não é bem suportada
pelo cavalo, nem a correção pelo culpado. Todos os castigos, na hora, parecem
amargos àqueles a cuja correção pelo culpado. Todos os castigos se destinam,
como ensina o Apóstolo: Toda educação, com efeito, no momento não parece motivo
de alegria, mas de tristeza. Depois, no entanto, produz naqueles que assim
foram exercitados um fruto de paz e de justiça (Hb. 12, 11). Pois o Senhor
educa a quem ama, aplica o açoite naquele que reconhece como filho. Qual é o
filho a quem o pai não castiga?
Por ai se pode ver que a expressão “males” é às
vezes usada como equivalente de aflições, como na seguinte passagem: E Deus se
arrependeu de fazer-lhes o mal que, segundo dissera, ia fazer, e não o fez (Jo.
3, 10 – LXX). E ainda nesta outra: Senhor, és misericordioso e cheio de
piedade, paciente e grandemente bondoso, pronto para arrepender-te dos males
(Jl. 2, 13 – LXX). Isto é, das tribulações e dos aborrecimentos que, por causa
dos nossos pecados, merecidamente és impedido de nos infligir.
Conhecendo o benefício que muitos tiram dessas
provações, outro profeta, não por inveja, mas como contribuição à salvação
dessas pessoas, assim, lhes vaticina. Envia-lhe, Senhor, o mal aos soberbos da
terra (Is. 26, 15 – LXX). E o próprio Senhor também diz: Eis que lhes vou fazer
desgraças (Jr. 11, 11), isto é, dores e devastações, para que, salutarmente
castigados agora, depois de me terem desprezado no tempo da prosperidade, se
vejam por fim forçados a correr para mim.
Por isso, não podemos julgar que se trate em tais
casos de males “essenciais”, porquanto deles muitas pessoas se beneficiam e,
por esse meio, conquistam as alegrias eternas.
Voltando, pois, à questão proposta, pensamos que
todos os supostos males, provenientes dos inimigos ou de quem quer que seja,
não deve ser considerados como males reais, mas, sim, como coisas diferentes.
Logo, para julgá-los, o que importa não é o sentimento de quem os pratica na
exaltação da ira, mas o que deles pensa aquele que os suporta. Assim, o que
seria um mal para o pecador, para o justo é causa de repouso e de libertação de
todos os males. A morte é um descanso para o homem cujos caminhos são
escondidos (Job. 3, 23 – LXX).
Portanto, o justo não sofre com a morte dano algum
porque ela nada lhe traz de novo. O que ele estava condenado a sofrer pela
fatalidade da própria natureza lhe é infligido pela maldade do inimigo. Isso,
porém, lhe vem acrescido com o prêmio da vida eterna. Com isso, o justo não só
paga uma dívida inexorável, a da morte humana, mas também, ao mesmo tempo,
colhe do seu sofrimento um fruto abundantíssimo e o prêmio de uma infinita
recompensa.
São João Cassiano
Em sua obra Conferências
Disponível em: Aurora Ortodoxia
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