Existe uma discussão muito interessante sobre a
relação entre o financiamento de campanha e a corrupção acontecendo no âmbito
de alguns grupos de pensadores jurídicos, muito bem sintetizada num artigo
recentemente publicado no jornal O Globo, de autoria da professora Silvana
Batini. O artigo pode ser encontrado aqui.
Destaco uma frase deste artigo que me deixou muito
feliz, porque descreve com síntese e precisão uma intuição que tive também, e
que por ser profundamente contra-hegemônica no consenso acadêmico e de imprensa
de hoje, me fez sentir menos como um peixe fora d'água ao perceber que não sou
o único a tê-la. Trata-se de denunciar as graves consequências de uma ideia que
parece muito boa, mas que na prática não é. Refiro-me à ideia de que todos os
problemas de corrupção e de influência eleitoral espúria serão resolvidos pela
mera previsão do “financiamento público de campanha”, com a vedação pura e
simples de participação financeira das pessoas jurídicas no processo eleitoral.
A professora Silvana Batini, que leciona na FGV
Direito Rio, e que tem muita experiência prática como Procuradora Regional
Eleitoral naquele Estado, escreve, no final do seu curto, mas muito lúcido
artigo, após demonstrar que a atual maneira de fiscalizar as contas eleitorais
pelos tribunais eleitorais pátrios simplesmente não funciona, que “mudar a
forma de financiamento das campanhas não bastará para sanear o sistema".
O que não se
diz nessa discussão, e deve ser sempre lembrado, é que o sistema atual já está
baseado amplamente no patrocínio público de campanhas. O Orçamento Federal
de 2015 prevê quase um bilhão de reais a serem repassados aos partidos
políticos para este fim, num ano em que o governo teve que cortar mesmo alguns
direitos trabalhistas e previdenciários da população em nome do saneamento das
contas públicas. A previsão é de repasse de R$ 870.000.000,00 (oitocentos e
setenta milhões de reais) a partidos políticos para este fim. Dividindo pelo
número de habitantes, isto significa que os partidos
receberão quase três dólares por habitante brasileiro, apenas de
financiamento público, o que ultrapassa inclusive o custo total de campanha por
habitante em países desenvolvidos e ricos como a Alemanha, por exemplo. Vale
dizer, a máquina partidária é um gigante esfomeado, que reagiu à descoberta de
mais uma rede pública de propinas eleitorais com uma voracidade orçamentária
ímpar, em lugar de procurar a simplificação dos seus próprios projetos de
divulgação política.
Mas esta voracidade crescente não tem impedido os
achaques, desvios, propinas e cartéis que agora escandalizam a nação. O sistema
político tem que mudar, não há dúvida. Mas esta é uma mudança que deve se fazer
com muito cuidado. Urge, é claro, evitar qualquer possibilidade de
"lavagem oficial de propina", chancelada pela Justiça Eleitoral
através da doação eleitoral privada e oficial, que é o que existe hoje,
proibindo-se terminantemente as doações eleitorais de qualquer agente econômico
"privado", seja pessoa física, seja pessoa jurídica, que tenha
negócios, relações, subvenções ou mesmo fiscalização estatal direta. Este é o
meio principal de corrupção retroalimentada pelo sistema eleitoral brasileiro,
não há dúvida. Mas este fato não pode servir, como está servindo, para que nós
ingenuamente embarquemos num projeto de reforma política que, sob o pretexto de
pureza eleitoral, possa vir a servir para a eventual perpetuação de um grupo no
poder. Tal se dá com os projetos que preveem a simples proibição linear de
doação de campanha por pessoas jurídicas, desconsiderando a legitimidade da
participação de micro, pequenos e médios empresários sem negócios
governamentais diretos, no processo eleitoral, influenciando efetivamente no
processo eleitoral, como preciosa fonte de recursos para a saudável alternância
de poder, com mecanismos efetivos de controle, que hoje não existem.
Devemos, a exemplo dos demais países civilizados do
mundo, criar um sistema que permita a esses legítimos operadores econômicos
privados, em especial os micro, pequenos e médios empresários brasileiros,
influir efetivamente no plano político para evitar a retroalimentação, com
verba estatal tão necessária em setores vitais do nosso Estado, de algum grupo
que se abolete no poder público e passe a controlar "hegemonicamente"
tais verbas em seu próprio favor, manipulando o mito da pureza estatal de modo
a impedir, na prática, a existência efetiva de oposição e a alternância de
poder. Não há oposição livre sem que haja um mínimo de recursos financeiros
independentes a possibilitar sua voz. Um projeto que elimine simplesmente a
existência desses recursos, ainda que fosse muito bem intencionado, pecaria
pela ingenuidade e poderia favorecer a redução da discussão democrática e a
eventual perpetuação, no poder, de quem lá se aboletasse. Em nome da
democracia, poderíamos estar eliminando a própria democracia. Isto tem acontecido
na história, em diversos países; ocorreu com o fascismo italiano, com o nazismo
alemão e, numa escala ainda indefinida, com o atual governo venezuelano; todos
são regimes que ascenderam ao poder através de eleições democráticas e, criando
sucessivos entraves para uma verdadeira oposição, transformaram-se em algo bem
diferente da democracia, contando inclusive com uma certa ingenuidade de
organizações sociais e religiosas de então.
A outra perna para o aperfeiçoamento do sistema
político, lembra a professora Batini, é o fortalecimento da fiscalização sobre
os recursos de campanha. Esta é uma medida necessária e urgente; a professora
lembra que, pelo atual sistema, a aprovação de contas pela Justiça Eleitoral
não representa nenhuma verificação efetiva da sua regularidade, mas um
mero controle formal sobre as declarações prestadas pelos próprios políticos e
partidos. Ou seja, um sistema meio cínico, que, em razão da total falta de
capacidade efetiva da Justiça Eleitoral de criticar materialmente as prestações
de contas, fornece, na prática, um verdadeiro salvo-conduto para os maus
políticos declararem que não são responsáveis pela moralidade dos recursos que
declaram formalmente. Tampouco se consegue localizar e documentar, pelos mesmos
motivos, as doações ilícitas, que, obviamente não são contabilizadas nem
declaradas; a sua descoberta e responsabilização é um trabalho dificultado pela
excessiva proteção brasileira ao sigilo bancário, pela falta de mão de obra nos
tribunais e no Ministério Público Eleitoral, pelos entraves recursais do nosso
sistema processual e pela excessiva confiança dos órgãos de controle na mágica
contábil que partidos e candidatos fazem. Esta é uma faceta de reforma política
que é urgente e necessária: transparência total nos recursos eleitorais,
públicos e eventualmente privados, fortalecimento dos órgãos de controle e
rígido apenamento contra quem despreza as regras, sem que se exija, para tanto,
o estabelecimento da plena responsabilidade subjetiva dos envolvidos. Esta é
uma causa que poderia ser abraçada por nossos movimentos sociais, Igrejas e
ONGs para fins de um amplo abaixo-assinado que efetivamente contribuísse com o
avanço da democracia no Brasil, e não soasse como mera instrumentalização
desses setores em prol deste ou daquele grupo político, e em prejuízo da
própria democracia.
Por outro lado, criar uma parede estanque entre a
sociedade civil e o Estado, nesta matéria, pela proibição linear de doações por
atores econômicos privados legítimos, como atualmente se propõe até mesmo por
iniciativa popular, terá consequências democráticas imprevisíveis, ou talvez,
consequências bem pouco democráticas. Talvez sirva para a eventual perpetuação
no poder de quem pensa que a sua própria permanência no governo é um
"avanço popular" e que qualquer oposição é simplesmente um grito de
insatisfação da “classe média burguesa”, uma reação de retrocesso contra a
inexorável marcha da história "proletária" e "campesina", e
deve ser desprezada e paulatinamente desconstruída. Isto não é fazer democracia,
por melhores que sejam os pretextos e intenções. Não se deve usar a democracia
contra ela própria.
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ZENIT
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