No Ano da Misericórdia, instituído pelo Papa
Francisco para 2016, somos convidados a rever nossos comportamentos.
“Misericordes sicut Pater” (Misericordiosos como o Pai): eis o lema que nos
deve impulsionar no dia a dia do corrente calendário. Sem dúvida, entre todos
os preceitos que o Senhor nos deu, seja andando pelas estradas da Galileia,
seja pelas veredas da Judeia, o mais forte, belo e exigente é: “Amai os vossos
inimigos e rezai pelos que vos perseguem” (Mt 5,43). Aqui se encontra o ápice
da misericórdia. Trata-se do diferencial do cristianismo sobre a religião
judaica que ensinava a lei de Talião: “olho por olho, dente por dente; amai os
vossos amigos e odiai os vossos inimigos”. O mandato de Cristo constitui também
o diferencial entre as demais religiões que têm preceitos bons, mas não chegam
a contemplar tal perfeição na prática do amor ao próximo. O Senhor Jesus nos
ensina algo novo, melhor e mais perfeito, pois amar os amigos nada apresenta de
vantajoso, uma vez que até os pagãos e os maiores pecadores assim agem. Jesus
quer mais. “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48).
A procura da perfeição é inata no coração do homem.
Prova-o o interesse incontido de progresso nas ciências, nos meios de
comunicação, nas regras jurídicas, nas artes, na culinária e tudo mais que
compõe nossa vida. Sabemos que atingir a perfeição pode nos parecer, em muitos
casos, aspiração distante, mas se abandonarmos este princípio natural que o
Criador colocou em nossa existência, nunca sairemos do lugar, estaremos como
que engessados e morreremos em nosso comodismo ou em nossos erros. Seria
terrível! O apelo de Cristo à perfeição é propulsor em direção ao mais perfeito
dos amores: “Amai os vossos inimigos, rezai pelos que vos perseguem”. Seu
mandamento central é, afinal, “amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo
13, 34). Já havia ele respondido a Pedro: é preciso perdoar setenta vezes sete,
ou seja, sempre e nunca deixar de perdoar (cf Mt 18, 21). Havendo
arrependimento sincero, nunca se deve deixar de conceder o perdão. No alto de
seus tormentos na cruz, ele terá forças para olhar os céus e rezar: “Pai,
perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Talvez tenha sido
inédita esta cena até o momento que Cristo aparece no palco da história da
humanidade: a capacidade de superação de todos os tormentos para permanecer no
amor e na misericórdia. O que o Mestre de Nazaré pede é que sejamos
misericordiosos como o Pai que “faz o sol nascer para os bons e os maus e faz
cair a chuva sobre os justos e os injustos” (Mt 5, 45).
Misericórdia, diz Papa Francisco, é o nome de Deus.
Ela nos faz humildes para reconhecer nossos erros e nobres para pedir
desculpas. Faz-nos grandiosos para perdoar os que sinceramente se convertem de
seus erros. Faz-nos corajosos para corrigir atitudes contrárias ao amor ao
próximo, à comunidade e ao Povo de Deus, sem conservar rancor, nem conceber
sentimentos de vingança contra o pecador. A misericórdia é capaz de dizer ao
ladrão arrependido: “hoje mesmo estarás comigo no paraíso”.
Contudo, a misericórdia perde sua força, se torna
inconclusa diante das agressões, ofensas e orgulho do ladrão que não quer ver
seus erros e de nada se arrepende. De fato, para este último, Cristo na cruz da
salvação nada pôde dizer.
Além deste triste quadro do Calvário vemos aparecer
na história outros episódios que ameaçam a virtude de misericórdia. O pior
deles é o desafio dos chantagistas. Essa classe é tão perigosa quanto os
fariseus e os vendilhões do templo. Pensemos no famoso caso de Canossa, na
Itália, onde, no século XI, o Imperador Henrique praticou criminosa hipocrisia
para subtrair a misericórdia do Papa Gregório VII e depois perseguiu
terrivelmente a Igreja e o Sucessor de Pedro até à morte.
Para que a misericórdia tenha efeito, é necessário
que sejamos abertos a ela, compreendamos o amor de Deus, entremos na sua
perfeita lógica. Por isso, somos chamados à semelhança de Deus: ‘Misericordes
sicut Pater’.
A negação da misericórdia é a lógica do irmão mais
velho da parábola do Filho Pródigo (cf. Lc 15,11-32), que não quis conceber a
extensão do amor do pai e não pôde, como não quis, participar da festa do
perdão ao irmão mais novo sinceramente arrependido que voltou para casa
submisso e humilde de coração.
Ao chegar a encarnação do Verbo, tudo o que estava
escrito no Antigo Testamento toma nova luz. Os salmos de impropérios do povo do
passado, nos lábios de Cristo, tomam novo sentido, considerando inimigos não
propriamente pessoas, mas situações dominadas pelo mal, ou as tentações do
demônio.
A proposta de Francisco será bem acolhida se formos
capazes de, dia por dia, optamos pela lógica de Deus, que deu seu próprio Filho
para morrer por nós e que espera de nós transparência e sinceridade na prática
de seu amor.
Dom Gil
Antônio Moreira
Arcebispo de
Juiz de Fora (MG)
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