O autor
do ícone de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, exposto à visitação dos fiéis na
igreja de Santo Afonso de Ligório, em Roma, permanece desconhecido até nossos
dias. Segundo a tradição da Igreja, no entanto, o artista que pintou a imagem
da Virgem do Perpétuo Socorro inspirou-se em um ícone atribuído a São Lucas.
Além de médico, homem culto e letrado, o Evangelista foi provavelmente um dos
primeiros iconógrafos da história da Igreja. Segundo antiga tradição, São Lucas
teria pintado ícones de Jesus Cristo, da Virgem Maria, de São Pedro e São
Paulo. Há pinturas atribuídas a ele que existem até hoje, como é o caso dos
ícones da "Theotokos de Vladimir" e de "Nossa Senhora de
Czenstochowa".
A
veneração dos ícones sagrados esteve presente na Igreja desde os primórdios do
cristianismo. As imagens de Jesus Cristo, de Nossa Senhora, dos outros santos e
dos anjos fazem parte da tradição bimilenar da Igreja Católica. No II Concílio
de Niceia, em 787, o Magistério da Igreja "justificou, contra os
iconoclastas, o culto dos ícones: dos de Cristo, e também dos da Mãe de Deus,
dos anjos e de todos os santos. Encarnando, o Filho de Deus inaugurou uma
nova 'economia' das imagens" [1].
No início
do século XVI, surgiram entre os protestantes "novos iconoclastas" e,
a exemplo do que aconteceu no passado, em nome da fidelidade às Sagradas
Escrituras, nossas imagens sagradas foram quebradas e nossas igrejas terminaram
invadidas, depredadas e queimadas. Este fato fez com que o culto às imagens
sagradas fosse perdendo a sua força em muitas comunidades, ao passo que, com a
tradução da Bíblia do latim para as mais diversas línguas, o culto às
Escrituras ganhou cada vez mais força. Essa tendência se tornou ainda mais
forte quando, por conta de um falso ecumenismo, passou-se a suprimir as imagens
das igrejas e das casas.
À
primeira vista, essa mudança na espiritualidade pode até parecer uma evolução.
Dito
fenômeno causou, entretanto, um grande problema. Como grande maioria das
pessoas não conhecia a Revelação como um todo — Sagradas Escrituras e Tradição
da Igreja —, nem a interpretação do Magistério da Igreja acerca do mistério de
Deus revelado, isso fez com que crescessem equívocos e interpretações
contraditórias. O resultado foi uma verdadeira perversão do sentido autêntico
das Sagradas Escrituras, por parte de alguns, e a disseminação de heresias, por
parte de outros.
Quanto
aos ícones, até a Idade Média, os fiéis, que na sua maioria eram pouco
letrados, aprendiam o significado profundo dos símbolos visuais. Dessa forma, pessoas
rudes, sem instrução, podiam "ler" nas imagens sagradas o patrimônio
de fé da Igreja Católica. No Renascimento — que na realidade foi um verdadeiro
retorno ao paganismo —, o culto original aos ícones sagrados
reduziu-se drasticamente, passando a fazer parte da espiritualidade de um
número cada vez menor de pessoas.
No limiar
do terceiro milênio, o Concílio Vaticano II tratou, na Constituição Dogmática Lumen
Gentium, sobre o espírito da pregação e do culto. Nesse documento, o mais
importante do Concílio, somos orientados quanto ao culto à Virgem Maria e às
sagradas imagens, confirmando o ensinamento que nos foi dado em Niceia:
"Muito
de caso pensado ensina o sagrado Concílio esta doutrina católica, e ao mesmo
tempo recomenda a todos os filhos da Igreja que fomentem generosamente o culto
da Santíssima Virgem, sobretudo o culto litúrgico, que tenham em grande estima
as práticas e exercícios de piedade para com Ela, aprovados no decorrer dos
séculos pelo magistério, e que mantenham fielmente tudo aquilo que no passado
foi decretado acerca do culto das imagens de Cristo, da Virgem e dos
santos" [2].
Na
contramão desses fatos, o ícone de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro parece ser
para nós como que um sinal dos céus para que voltemos às nossas origens.
No final
do século XV, um negociante roubou a imagem de Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro do altar onde estava, na ilha de Creta, onde era venerada pelo povo
cristão. O mercador viajou com o ícone, de navio, para Roma e escapou
milagrosamente de uma tormenta em alto-mar. Já na Cidade Eterna, ele adoeceu
gravemente e, por isso, procurou a ajuda de um amigo. No seu leito de morte, o
comerciante, arrependido, contou ao amigo que roubou o quadro e pediu a ele que
o devolvesse a uma igreja. Este prometeu devolver a obra de arte sacra, mas
depois mudou de ideia e morreu, sem ter cumprido a promessa feita ao amigo
comerciante.
Para que
se cumprissem os desígnios divinos, a Santíssima Virgem Maria apareceu a uma
menina de seis anos, familiar de quem portava o ícone, e "mandou-lhe dizer
à mãe e à avó que o quadro devia ser colocado na Igreja de São Mateus Apóstolo,
situada entre as basílicas de Santa Maria Maior e São João Latrão, sob o título
de Perpétuo Socorro" [3]. Em obediência, o ícone foi devolvido e exposto
na igreja de São Mateus em 27 de março de 1499. A partir do século XVI, a
devoção começou a se divulgar em toda Roma e, anos mais tarde, pelo mundo
inteiro. Nessa igreja, a imagem foi venerada durante os 300 anos seguintes. Em
1798, a igreja de São Mateus foi destruída e a imagem foi retirada a tempo, mas
ficou quase que esquecida. Até que, em 26 de abril de 1866, o ícone foi
entronizado na Igreja de Santo Afonso, onde permanece até hoje.
Como
dissemos, São Lucas pintou belos ícones de Nossa Senhora, como a Virgem do
Perpétuo Socorro. No entanto, ele também "pintou" algumas das mais
belas "imagens" da Santíssima Virgem nas páginas do santo Evangelho.
Entre elas, destacam-se: a anunciação do arcanjo São Gabriel à Virgem de Nazaré
(cf. Lc 1, 26-38), a visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel (cf. Lc
1, 39-56), o nascimento de Jesus Cristo em Belém (cf. Lc 2, 1-21) e a
apresentação de Jesus no Templo de Jerusalém (cf. Lc 2, 22-40).
No ícone
de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, temos alguns simbolismos que se fazem
presentes no Evangelho segundo São Lucas.
Na
imagem, vemos a mão direita de Maria apontando para seu Filho e no Evangelho
temos várias passagens que apontam para Jesus como o Messias esperado pelo Povo
de Israel: "O ente santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus"
(Lc 1, 35b); "Minha alma glorifica ao Senhor, meu espírito exulta
de alegria em Deus, meu Salvador" (Lc 1, 46b-47); "Eis aqui a
serva do Senhor" (Lc 1, 38a); "E tu, menino, serás chamado
profeta do Altíssimo, porque precederás o Senhor e lhe prepararás o
caminho" (Lc 1, 76). Naquele tempo, raramente alguém tinha um livro
das Sagradas Escrituras. Possuir uma passagem da Escritura era também muito
raro. Por isso, como já dissemos, os primeiros discípulos de Cristo olhavam
para os ícones, nas casas das poucas pessoas que os possuíam, e neles
"liam" os textos sagrados.
Entre os
simbolismos presentes na imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, talvez o
teologicamente mais rico e espiritualmente mais significativo seja o retrato do
Calvário. Ao contemplar a Virgem do Perpétuo Socorro, vemos à sua esquerda o
arcanjo São Miguel, que apresenta a lança, a vara com a esponja e o cálice das
amarguras que o Cristo sorveu até o fim. À direita, está o arcanjo São Gabriel,
com a cruz e os cravos, que foram os instrumentos da paixão e morte de Jesus. O
Menino Jesus, o Perpétuo Socorro em pessoa, assustado ao olhar para os
instrumentos de Sua paixão, com as duas mãos, segura firmemente a mão direita
de sua Mãe, como que nos ensinando a confiar-nos inteiramente a ela,
especialmente nos momentos de medo, dor e sofrimento.
Para
completar a nossa "leitura" do ícone, na perspectiva do mistério
pascal de Cristo, podemos olhar para Maria como a Virgem das Dores. A sua mão
esquerda, que sustenta o Filho, simboliza a sua presença aos pés da cruz (cf.
Jo 19, 25). O seu olhar materno, ao mesmo tempo que demonstra o acolhimento
e o cuidado para com cada um de nós, que fomos entregues a ela como filhos, é
um convite para que a levemos para o que é nosso, ou seja, para a nossa vida
interior, como fez o discípulo amado (cf. Jo 19, 27).
Um
detalhe do ícone, que pode passar despercebido, é a sandália desamarrada, que
pode simbolizar um pecador, preso a Jesus apenas por um fio, fio este que é a
devoção a Santíssima Virgem. Este "fio" tão frágil pode ser uma
lembrança, ou uma devoção sem muita piedade, que num momento de desespero, de
sofrimento, pode nos manter unidos ao Senhor. Vemos uma imagem disto naquela
que é provavelmente a mais conhecida e bela parábola de Jesus, presente somente
no Evangelho escrito por Lucas: a parábola do filho pródigo. Depois de deixar a
casa do pai e de gastar toda a sua fortuna numa vida desenfreada, o filho
esbanjador estava na situação humilhante de cuidar de porcos. Para os judeus
que ouviram de Jesus esta parábola, cuidar de porcos era ainda mais humilhante,
porque eles os consideravam animais impuros. Para completar a humilhação, o
rapaz, faminto, queria comer a comida dos porcos, mas nem isso lhe era dado
para comer (cf. Lc 15, 11-16). Foi então que ele entrou em si, refletiu,
recordou-se que na casa de seu pai até mesmo os empregados tinham pão em
abundância e tomou a decisão de voltar (cf. Lc 15, 17-18). Da mesma
forma, um pecador pode voltar para Jesus e se salvar pela simples devoção que
tem à Virgem Maria, ou até mesmo por uma vaga lembrança do amor que nutre por
ela.
Nas
passagens do Evangelho que falam dos dois ladrões, crucificados à direita e à
esquerda de Jesus, há aparentemente uma contradição, que pode nos ajudar a
aprofundar nossa reflexão. Em Mateus e Marcos, ambos escarneciam de Jesus:
"E os ladrões, crucificados com ele, também o ultrajavam" (Mt
27, 44; cf. Mc 15, 32). Mas, em Lucas, apenas um dos malfeitores
blasfemava (cf. Lc 23, 39). O outro, que segundo a tradição se chamava
Dimas, não somente repreendeu o outro ladrão, mas também reconheceu que para
eles aquela condenação era justa, mas não para Jesus, pois não tinha feito mal
algum (cf. 23, 40-41). A razão desta aparente contradição é que, segundo uma
visão da mística Beata Anna Catharina Emmerich, a princípio, ambos escarneciam
do Cristo, até que algo inesperado aconteceu:
"Dimas,
o bom ladrão, obteve pela oração de Jesus uma iluminação interior, no momento
em que a Santíssima Virgem se aproximou. Reconheceu em Jesus e em Maria as
pessoas que o tinham curado [da lepra] quando era criança e exclamou em voz
forte e distinta: 'O quê? É possível que insulteis Àquele que reza por vós? Ele
se cala, sofre com paciência, reza por vós e vós o cobris de escárnio? Ele é um
profeta, é nosso rei, é o Filho de Deus'" [4].
Naquele
momento derradeiro de sua vida terrena, São Dimas recebeu a graça de recordar
de Jesus e de sua Mãe. A partir dessa lembrança de sua infância, começou o
extraordinário processo de conversão do bom ladrão, que culminou no seu ousado
pedido: "Jesus, lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu
Reino!" (Lc 23, 42). A salvação de São Dimas estava por um
"fio", que era a vaga recordação de uma cura, operada pelas mãos do
Menino Jesus e de Maria. Dessa forma, quase no último momento de sua vida, o
bom ladrão "roubou" o Céu, a salvação eterna.
São Lucas
escreveu o Evangelho de Jesus Cristo não somente com palavras, mas também com
imagens, que nos ajudam a encontrar na devoção a Virgem Maria um caminho seguro
para chegar a Ele. Que neste dia, no qual celebramos Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro, façamos o salutar propósito de "ler", na sua imagem, as
Sagradas Escrituras, e nelas encontrar o próprio Cristo, a Palavra de Deus que
se fez carne.
Ainda que
nossa situação seja semelhante à do filho pródigo, ou como a do bom ladrão, e
nossa vida esteja unida a Cristo apenas por um "fio", entreguemo-nos
com confiança à Virgem das Dores, que nos foi dada, pelo próprio Filho, por Mãe
(cf. Jo 19, 27). Assim, da mesma forma que a Mãe de Deus contribuiu para
a cura e a salvação de São Dimas, ela nos alcançará os bens necessários para a
nossa vida terrena e principalmente para chegarmos à glória celeste.
Referências
1. Catecismo da Igreja Católica,
2131.
2. Concílio Vaticano II, Constituição Dogmática Lumen Gentium, 67.
3. A12, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
4. Flor do Carmelo, Meditação - Quinto Mistério Doloroso -Jesus Morre na Cruz. Texto extraído do livro: Vida, Paixão e
Glorificação do Cordeiro de Deus, da Beata Anna Catharina Emmerich. Como
toda revelação particular, não somos obrigados a crer com fé católica nesse
escrito, mas podemos aceitá-lo para melhor compreensão das Escrituras e para
edificação de nossa fé.
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Equipe Christo Nihil Praeponere
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