No início do século VIII, encontramos uma
imagem de Nossa Senhora de Nazaré, cuja origem é cercada de lendas, em
Portugal, no monte de São Bartolomeu. Neste lugar a imagem ficou escondida por
cerca de quatro séculos, quando na manhã de 14 de setembro de 1182, Dom Fuas
Roupinho, Alcaide-mor do Castelo de Porto de Moz e amigo do rei Dom Afonso
Henrique, caçando um cervo que fugia em disparada, deparou-se a um abismo. Em
meio ao grande perigo que estava, clamou a intercessão da Virgem de Nazaré:
“Valei-me Nossa Senhora de Nazaré!”. Após a exclamação, o cavalo volteou sobre
os cascos traseiros evitando a queda mortal. Após o milagre obtido pela intercessão
da santíssima Virgem, Dom Fuas mandou construir uma capela naquele mesmo lugar
em honra daquela por cuja intercessão sua vida tinha sido poupada. A Capela
tornou-se centro de peregrinação inclusive de reis e navegadores.
Mudemos agora de tempo e lugar, estamos por
volta de 1700 e o protagonista não é mais um nobre fidalgo português, mas um
caboclo amazônico chamado Plácido José dos Santos. Este, em meio a suas
caminhadas pela mata, que eram certamente costumeiras, já que segundo a
tradição Plácido era caçador, achou entre as pedras do igarapé Murutucu uma
pequena imagem, que tratou de levar para casa. No dia seguinte para a sua
surpresa a Imagem não estava onde ele havia deixado, ele então correu ao local
onde a havia achado e lá estava ela, após inúmeras tentativas fracassadas de
mantê-la em sua casa decidiu construir uma pequena Capela naquele local. Temos
aí a primeira Igreja de Nazaré.
Após o achado da imagem, a devoção popular
imediatamente começou, pois lá era caminho de muitos viajantes, já que o lugar
era próximo da “Estrada do Utinga”, fato que ajudou a propagar a devoção que
ali se iniciava. Pouco mais de vinte anos depois, o Bispo da época Dom
Bartolomeu de Pilar esteve na capela atraído pela grande devoção que ali se
consolidava, na ocasião, Plácido sugeriu ao bispo a construção de uma nova
igreja, cuja sugestão foi prontamente aceita, sendo erguida entre 1730 e 1744.
No ano de 1793, o governador Sousa Coutinho
teve a ideia de organizar uma grande feira com produtos agrícolas e extrativistas
para serem comercializados no período em que se costumava celebrar a festa (mês
de agosto). Porém, em junho de 1793 este fica doente, condenado a não
comparecer a festa, fez a promessa que se caso melhorasse, iria buscar a
imagem, levá-la para a capela de seu palácio e depois voltaria com ela para a
sítio de Nazaré. Graça alcançada, promessa cumprida. Temos então em 8 de
setembro de 1793 o primeiro Círio de Nazaré.
A atual Igreja, que se seguiu a outras
construídas no mesmo local daquela que o Caboclo Plácido edificou, foi
construída no século XX. Em seu interior, enriquecido por belos mosaicos e
vitrais, temos contada a história da Virgem Maria e da sua invocação sob o nome
de Nazaré.
O termo “Círio” tem origem na palavra latina
“cereus” (de cera), que significa vela grande de cera, objeto comumente usado
para se pagar promessas. Em três de julho de 1793, o governador determina que
no final de setembro de cada ano se organizasse festejos em honra a Nossa
Senhora de Nazaré no largo de sua ermida, devendo a imagem na véspera ser
levada à capela do palácio dos governadores, atual Palácio Lauro Sodré, a fim
de ser transferida no dia seguinte novamente para sua ermida. Surge aí a
primeira procissão do Círio de Nossa Senhora.
Após a imagem da Virgem Santíssima, é
certamente a corda um nos maiores objetos de devoção dos fiéis. Sua origem
remonta o ano de 1885, quando na hora da procissão, a baía do Guajará tinha
transbordado, para que a berlinda (que era puxada por bois) pudesse avançar,
tiveram a ideia de lhe passar uma grande corda em volta, pedindo aos fiéis que
a puxassem, dessa forma a berlinda pôde vencer o atoleiro e assim constituiu-se
a tradição de atrelar uma corda a berlinda. A Berlinda é o carro mais
importante, e sua função é proteger a imagem e proporcionar sua melhor
visualização. Além da Berlinda, temos a presença de outros carros que foram
surgindo em tempos distintos, e retratam vários episódios ligados a devoção a
Virgem de Nazaré, como o milagre de Dom Fuas. Há ainda os carros que retratam
aspectos da fé católica, como o da Santíssima Trindade e os Anjos, além da
barca dos milagres, que recolhe os objetos em cera levados pelos devotos no
cumprimento de suas promessas.
Plácido José de Souza foi conduzido pelo
Espírito Santo, que o conduziu pelas mãos para nos presentear com a devoção a
Nossa Senhora de Nazaré. Desejamos continuamente recuperar a mesma devoção com
que Plácido aprendeu a fazer o jogo de amor, passando do Igarapé das matas da
estrada do Utinga à sua tosca residência e vice-versa, até que fosse
reconhecido que “o coração humilde daquele homem era o mais apropriado abrigo
para a Rainha dos Céus” (Dom João Evangelista Pereira, Bispo do Pará). Os
recursos para o maravilhoso templo, nossa Basílica Santuário de Nossa Senhora
de Nazaré, vieram com o amadurecimento dos tempos, mas nossa Mãe e Rainha
continua passeando, passando pelas vias da fé, abertas nos sulcos escancarados
do coração de nosso povo.
A devoção mariana acompanhou passo a passo a
peregrinação da fé vivida pela Igreja. De fato, aquela que chamamos Estrela da
Evangelização, é a referência maior na escuta amorosa de Deus e no assentimento
a seu plano de salvação. Com Maria, a Igreja continua a subir pelas montanhas
de Judá ou caminhar pelos muitos caminhos do mundo para amar e servir aos mais
pobres. A Belém do nascimento de Jesus se repete não só na Belém do Pará, mas
onde quer que a Igreja esteja presente, com pessoas semelhantes a Maria e José.
Diante do mistério do sofrimento, ali está Maria, firme diante de Simeão ou de
pé ao lado da Cruz de seu Filho. Em Caná ou no Cenáculo, discípula e modelo da
oração, ali está Maria, conduzindo-nos sempre de novo à casa de Nazaré, símbolo
da intimidade profunda na qual o tu a tu com Deus há de repetir, pois as
respostas a Deus são exigências do mistério com o qual fomos criados, sedentos
dele e de sua Palavra.
São muitos os “Plácidos” de lá para cá. Quero
contemplá-los nos olhares gritantes que encontro nos ambientes mais complexos
da sociedade. Plácido para mim são os detentos que vejo nos presídios da Grande
Belém. Plácidos são as pessoas cujos passos trôpegos nas aventuras da vida
querem acertar, mas carregam, como enfermidades desafiadoras, seus limites
tantas vezes inexplicáveis, que têm o nome de vícios! Plácidos são os justos ou
pecadores na multicolorida sociedade paraense. Plácidas são as crianças e os
jovens, iniciados no verdadeiro mistério que é ser devoto da Virgem de Nazaré,
já que ninguém resiste ao Círio! Plácido é aquela pessoa que participa do
Círio, ainda confusa, atraída misteriosamente pelo turbilhão do povo que crê,
mas lá dentro tem mil perguntas sem respostas. E ela não consegue ficar em
casa, porque não dá para ser paraense sem Círio! São igarapés que parecem mais
um fio d’água teimoso que conduz ao Mar que é Deus!
Plácidos de hoje são os cerca de vinte e cinco
mil voluntários, que ajudam a carregar a Santa e seu cortejo, para que nenhum
pedacinho de rua ou de coração fique sem Círio! Plácidas são as varandas e
sacadas, arquibancadas e praças, com o burburinho das grandes festas, e a nossa
é a maior! Como o povo hebreu no deserto, muitas vezes somos barulhentos, quem
sabe desorganizados, mas nossa oração é feita de passos e cansaço, sangue nas
mãos e nos pés, cordas misteriosas que nos valem o contato com o Sagrado.
O Cardeal Martini, na mais lida e comentada de
suas cartas pastorais (“Il lembo del mantello” – Carta Pastoral 1991-1992),
referindo-se ao manto de Jesus, indica três realidades que chamam atenção: a
multidão que acorre em massa, o mistério de cada pessoa e a experiência de
Deus, a que somos todos chamados.
Há uma multidão anônima que se espreme em
torno de Jesus. Muitos o tocam, mas não acontece nada; ninguém se distingue com
um desejo próprio. No meio da massa, uma mulher vem à tona. Ela tem um projeto
bem definido e uma grande fé. Jesus lhe dirá depois “Filha, a tua fé te
salvou”. Tem tamanha confiança em Jesus que pensa que apenas o contato com a
barra de seu manto bastará para curá-la. Entra em contato autêntico com Jesus,
de tal forma que ele mesmo percebe e proclama publicamente. Do meio da massa
uma pessoa se manifesta!
Noutras ocasiões Jesus fala, ordena, toca nas
pessoas. Aqui é suficiente a barra de um manto, quem sabe, cheio da poeira das
estradas, para estabelecer um contato pessoal da mulher com Jesus! Se o plano
de salvação do Pai abraça tudo o que existe e a missão do Filho e do Espírito
abrange toda a criação, todos os meios para comunicar a boa nova podem ser
adotados por Deus para tocar o coração humano. Muitos foram tocados até pela
sombra de Pedro nos Atos dos Apóstolos (Cf. At 5, 12-16). No correr da história
da Igreja, a liberalidade do amor de Deus se serviu de inúmeras pessoas para
sinalizar que o Senhor Jesus permanece conosco até o fim dos tempos.
Também nossas procissões, nossos gestos, o
canto, as promessas e a corda do Círio podem ser como a veste a ser tocada para
estabelecer o contato com as realidades sagradas, ainda mais quando somos
conduzidos pelas mãos maternas da Virgem de Nazaré, que aceitou ser escrava do Senhor
para que o Verbo de Deus se fizesse carne. E todas as gerações a proclamam
bem-aventurada, como fazemos aqui. Todas as coisas boas que fazemos nos dias do
Círio, com nossa vibração e nossas emoções, podem ser espaços que o Verbo de
Deus não desdenha. São orlas de seu manto, através das quais pode oferecer a
graça da salvação.
Mas a barra da roupa de Jesus é apenas um
pedaço de seu manto. O manto nos leva a quem o veste e é mais importante do que
a roupa! É necessário que do meio da multidão cada pessoa saiba que tem nome e
história, que é amada e levada a sério por Deus e diga seu sim a Ele, a modo de
Maria em Nazaré. O Círio é mutirão de evangelização e experiência de conversão
para quem dele participa. Quem apenas “assiste”, joga fora a grande oportunidade,
um presente de Deus. Círio se vive como acontecimento de fé, muito maior do que
o alcance cultural do evento.
A corda que se estende por nossas ruas,
atrelada à berlinda que conduz a imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré é
um dos sinais do desejo profundo existente em nossos corações de um contato com
o que é sagrado. E Deus sabe o quanto este sinal tem sido importante para
tantos de nós. Entretanto, mais importante do que um pedaço de corda, levado
para casa como lembrança, será atrelar a própria vida ao Senhor e à sua Igreja.
É a experiência magnífica descrita pelo profeta Oséias: “Sim, fui eu quem
ensinou Efraim a andar, segurando-o pela mão. Só que eles não percebiam que era
eu quem deles cuidava. Eu os lacei com laços de amizade, eu os amarrei com
cordas de amor; fazia com eles como quem toma uma criança ao colo e a traz até
junto ao rosto. Para dar-lhes de comer eu me abaixava até eles” (Os 11, 3-4).
Em nome da humanidade, a imagem de Nossa
Senhora de Nazaré traz nos braços o troféu da vitória, Jesus Menino! Ternura
nos braços e no olhar, para fazer-nos de novo como crianças acolhidas no
regaço. Mãe e Filho! Em Jesus Cristo está nossa vida e nossa esperança de
Ressurreição. Sem Ele nada podemos fazer. A Mãe que o Pai preparou para seu Filho
amado continuará proclamando no Círio e em todos os dias de nossa vida: “Fazei
tudo o que Ele vos disser” (Jo 2, 5). É o jeito de Maria nos dizer “Feliz
Círio”, como dizemos durante o Círio de Nazaré!
A decisão de caminhar em direção ao santuário
já é uma confissão de fé, o caminhar é um verdadeiro canto de esperança e a
chegada é um encontro de amor. O olhar do peregrino para a imagem da Virgem de
Nazaré simboliza a ternura e a proximidade de Deus e da Mãe de Deus. O amor se
detém, contempla o silêncio, desfruta dele em silêncio. Também se comove,
derramando todo o peso de sua dor e de seus sonhos. A súplica sincera, que flui
confiadamente, é a melhor expressão de um coração que renunciou à
autossuficiência, reconhecendo que, sozinho, nada é possível. Um breve instante
de pedido sintetiza uma viva experiência espiritual. Peregrinos do Círio somos
todos nós, chamados a viver a experiência de um mistério que nos supera, uma
realidade que envolve a vida de Igreja e supera nossa família, nosso bairro e
nosso trabalho.
A piedade popular penetra delicadamente a
existência pessoal de cada fiel e ainda que se viva em uma multidão, envolve
toda a nossa vida. Nos diferentes momentos da luta cotidiana, muitos de nós
recorremos a algum sinal do amor de Deus: um crucifixo, uma medalha, um
rosário, uma vela que se acende para acompanhar um filho em sua enfermidade, um
Pai Nosso recitado entre lágrimas, uma Ave-Maria, uma promessa, uma corda que
nos faz próximos uns dos outros para nos aproximar de Deus, um olhar carinhoso
para a imagem querida de Maria, um sorriso dirigido ao Céu em meio a uma
simples alegria.
Nossa piedade popular mariana é uma maneira
legítima de viver a fé, um modo de se sentir parte da Igreja e uma forma de ser
missionários, onde se recolhem as mais profundas vibrações de nosso coração, de
nossa cultura e mais ainda de nossa fé. No ambiente de secularização em que
vivem nossos povos, o Círio continua sendo uma poderosa confissão do Deus vivo
que age na história e um canal de transmissão da fé. O “caminhar juntos” para o
santuário e a participação em outras manifestações da piedade popular, levando
também os filhos ou convidando a outras pessoas, é em si mesmo um gesto
evangelizador pelo qual o povo cristão evangeliza a si mesmo e cumpre a vocação
missionária da Igreja. (Cf. Documento de Aparecida 259-264).
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Arquidiocese de Belém
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