quinta-feira, 26 de março de 2015

Homilética: Paixão do Senhor: "A Cruz representa Cristo e o amor que Ele tem por nós".


Hoje, a Igreja mantém-se em profundo silêncio. O Esposo foi retirado. Neste dia, a Igreja não celebra a Eucaristia. O Altar, despojado após a Missa da Ceia do Senhor, é sinal desse jejum eucarístico.

Pelas 15h, os cristãos se reúnem para uma solene celebração: a Celebração da Paixão do Senhor. Ela consta de três partes: (1) uma Liturgia da Palavra, (2) a Adoração da Cruz e (3) a Comunhão eucarística.

A Liturgia da Palavra ilumina o mistério da cruz do Senhor. Olhada somente com os olhos da razão, a cruz não tem sentido; ela é a maior prova de que Deus não existe e, se existisse, seria inútil, cruel, indiferente à dor humana! A cruz, à luz do nosso entendimento, é sinal de que não vale a pena ser bom, não adianta lutar por um mundo melhor, porque o mal triunfa! Mas, quando escutamos a Palavra do Senhor, o mistério da cruz aparece como luz, como sabedoria admirável de Deus! É isto que as leituras nos revelam: a Primeira, é o quarto cântico do Servo Sofredor; tão impressionante que o chamam de Paixão segundo Isaías. Aí, o Servo humilhado e destruído para salvar a humanidade, triunfará e será salvação da multidão. O Salmo 30 é uma impressionante oração que revela os sentimentos de Jesus na sua dor. É neste Salmo que se encontra a última palavra de Jesus: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu Espírito”. A Segunda Leitura é da Epístola aos Hebreus. Ela apresenta Jesus como nosso Sumo Sacerdote que, pelo seu sacrifício, entrou no Santuário verdadeiro: o céu. Entrou, não com sangue de animais irracionais, mas com o seu próprio sangue, sinal de um amor que se doa totalmente e, por isso, nos purifica. Finalmente, a impressionante narrativa da Paixão segundo São João. A Liturgia da Palavra é concluída com a solene Oração Universal, na qual a Igreja, unida ao seu Senhor, intercede por toda a humanidade.

A Adoração da Cruz exprime a profunda reverência e admiração da Igreja pelo mistério da Paixão e Morte do Senhor. Não se trata de adorar o lenho materialmente, mas o que ele significa.

Finalmente, a Comunhão eucarística. Apesar de não haver Missa, comungar no Corpo do Senhor morto e ressuscitado, revela bem o quanto Cristo vive para sempre.

 
COMENTÁRIOS DOS TEXTOS BÍBLICOS

Leituras: Is 52,13-53,12; Hb 4,14-16; 5,7-9; Jo 18,1-19,42


A liturgia da Sexta-feira Santa nos coloca diante do grande Mistério Cristão da Cruz e do Crucificado.

No Evangelho, contemplamos o Senhor sendo preso, no Horto das Oliveiras, por aquele batalhão liderado por Judas; vimos como é conduzido diante do sumo sacerdote Caifás e como, depois de ser interrogado, recebe uma bofetada injusta de um dos servos. Depois, na presença de Pilatos, o povo gritava: "Crucifica-o, crucifica-o!" (Jo 19: 6). E imediatamente Jesus é flagelado e coroado de espinhos. Podemos nos perguntar: Por que tudo isso? O Evangelho continua: Jesus carrega o lenho na presença das pessoas que Ele amava; é despojado das suas vestes e, aparentemente, também da sua dignidade; e no momento da Crucificação, o Senhor dirige angustiado estas palavras a Deus Pai, apresentadas por São Mateus: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" (Mt 27, 46). Perguntamo-nos novamente: por que a Cruz?

Embora só possamos compreendê-lo parcialmente, a Crucificação nos revela que onde parece haver apenas fraqueza, Deus manifesta o seu poder sem limites; onde vemos fracasso, derrota, incompreensão e ódio, precisamente aí Jesus revela o grande poder de Deus: o poder de transformar a Cruz em expressão de Amor Esta lógica da fé é vista na passagem da primeira para a segunda leitura. Enquanto Isaías nos mostra que este rosto "não tinha aparência que agradasse. Era o mais desprezado e abandonado de todos" (Isaías 53: 2-3), a Epístola aos Hebreus proclama que há "trono da graça, a fim de alcançar misericórdia" (Hebreus 4,16).

Esta foi a experiência de um dos condenados que estavam ao lado de Cristo no Gólgota. O "bom ladrão" experimenta no seu maior fracasso e fraqueza como a cruz de Jesus se torna o lugar poderoso em que sabe que é perdoado e amado: “Hoje estarás comigo no Paraíso (Lc 23, 43). Na Cruz, ouvimos ser pronunciada a palavra 'Paraíso'.

A Cruz transforma-se de instrumento de tortura, violência e desprezo em meio de salvação, um símbolo de esperança, pois tornou-se manifestação do amor gratuito e misericordioso de Deus, que se faz presente para nós – de modo eminentemente eficaz – nos sacramentos. Não deixemos de procurar a misericórdia divina na Confissão; não poupemos esforços para participar frequentemente na Eucaristia. Nos sacramentos também veremos, como explica São Josemaria, como Cristo "se entrega à morte com a plena liberdade do Amor". Olhar para o Crucificado é contemplar a nossa esperança

O Papa Francisco disse aos jovens: " não se deixem roubar a esperança!" Por isso, convido vocês a experimentar o poder transformador do Amor de Deus, que na Cruz abraça a fraqueza e enche-a de esperança. Tornar nosso o símbolo da cruz significa ser, onde estivermos, um sinal concreto do amor de Deus. Em suas famílias, em suas amizades e em sua futura profissão, vocês podem ser um sinal concreto de esperança.

A Igreja hoje dirige sua atenção para o Lignum Crucis, a árvore da cruz. Na liturgia, rezamos: “Adoramos a vossa cruz, Senhor; louvamos e glorificamos a vossa santa ressurreição! Do madeiro da cruz veio a alegria no mundo inteiro”. A adoração da Santa Cruz é um gesto de fé e uma proclamação da vitória de Jesus. É também um gesto de esperança, que vem da experiência do poder transformador do amor de Deus.

Acabamos pedindo à Nossa Senhora que nos ajude também a estar perto da cruz, pois aí se revela a origem da esperança que, como cristãos, desejamos oferecer aos nossos contemporâneos.


PARA REFLETIR

A liturgia da sexta-feira santa ao referir-se ao culto à Cruz se expressa dizendo que se trata de uma “solene adoração da santa Cruz”, deixando inclusive a possibilidade de dobrar o joelho diante dela. Penso que essas palavras calaram no coração de mais de um cristão deixando-o pensativo, com maior razão se refletimos naquilo que realizamos: aproximamo-nos da imagem do Cristo crucificado e o beijamos; adoramos a Cristo, a sua Cruz. Na verdade, Cristo e a sua Cruz são identificados nesta liturgia solene de hoje.

Duas perguntas: porque adoramos a Cruz? Porque a beijamos? No Brasil, devido a influência de teorias provindas de ambientes evangélicos não é raro encontrar também entre católicos certa desconfiança e aversão pelo culto às imagens. Gostaria de conversar com você sobre esse tema sem uma finalidade defensiva, apologética, mas simplesmente observando o que a liturgia da Igreja nos diz no dia de hoje. Tendo em conta que qualquer consequência apologética será colateral, quero dialogar especialmente com aqueles católicos que aceitam com toda paz a sua fé celebrada na liturgia de hoje.

Nós adoramos a Santa Cruz porque ela foi o madeiro no qual o próprio Deus feito homem retirou a maldição do pecado que pesava sobre nós. A cruz era sinal de maldição, suplicio dos culpados e grandes marginais da sociedade. Cristo quis transformar esse sinal de maldição em sinal de benção. Mas, contudo, para entender melhor por que adoramos a Santa Cruz é preciso que compreendamos uma realidade: as coisas contêm um significado. Por exemplo: beijar uma pessoa tem distintos significados quando realizado em diversas circunstâncias. Uma criança que dá um beijo na sua mãe quer significar todo o carinho e agradecimento que sente por ela; duas pessoas que se dão os dois beijinhos sociais quando se conhecem não querem significar mais que o prazer que sentem em conhecer-se e celebrar dessa maneira ritual essa nova relação de amizade que começa; dois namorados que se beijam querem expressar o amor que sentem mutuamente. Há beijos que significam pura sensualidade, outros são exposições das escórias e dos desvios humanos. Enfim, um beijo pode significar muito! No caso do beijo à Santa Cruz, trata-se de um beijo que se pode interpretar em relação a outro beijo, aquele que o sacerdote dá ao altar todos os dias ao começar e ao terminar a Santa Missa: um beijo cheio de amor, de respeito, de admiração. O Altar representa a Cristo como a Cruz também o representa.

Como as coisas têm um significado, também é preciso que entendamos esse significado em relação à nossa capacidade de captá-lo e de dar significação aos nossos gestos. Uma pessoa que abre o facebook e vê as fotos dos seus amigos e familiares não começa a pensar se essa foto ocupa 300 KB ou 2 MB, nem nos seus pixels, tampouco na materialidade ou imaterialidade dessa foto em concreto. Ao contrário, ao ver uma determinada foto, a nossa mente se dirige naturalmente à pessoa que a foto representa. Hoje em dia, ainda que as fotos em papel sejam mais incomuns, talvez o leitor se lembre daquele beijo que deu numa foto de alguém que lhe era querido. Nem passa pela minha mente que você queria dar um beijo à foto em si, tenho certeza que você queria dá-lo à pessoa querida representada por ela.

Dessas considerações, podemos concluir que há pelo menos duas maneiras de olhar uma imagem: vê-la simplesmente enquanto imagem, na sua mera materialidade, ou vê-la enquanto significativa de realidades que ela expressa. A mente humana não fica na primeira maneira de ver uma imagem a não ser que esteja fazendo um estudo sobre a qualidade do papel, a tonalidade das cores etc. A mente humana vê a realidade material e, abstraindo totalmente da matéria que tem diante de si, vai diretamente à realidade que ela representa. Trata-se de uma “viagem” que a mente faz desde a imagem à realidade. Sendo assim, quando nós contemplamos umas flores diante do Santíssimo, umas velas acendidas a algum santo, umas toalhas mais vistosas no altar do Senhor, nós não podemos parar na simples materialidade dessas coisas.

Deus conhece melhor que nós mesmos como funcionamos. Ele sabe que nós conhecemos e amamos as realidades que não vemos a partir das que vemos. Condescendente com essa nossa maneira de conhecer e de amar é que o Senhor Deus, desde o Antigo Testamento, aborrecendo a idolatria – que consiste em dar às criaturas o lugar que corresponde ao Criador –, foi permitindo pouco a pouco representações materiais de realidades espirituais. Nesse sentido, lembremo-nos dos dois querubins de ouro colocados nas extremidades da Arca da Aliança (Ex 25,18-22), da serpente de bronze (Nm 21,1-10), das várias imagens que Deus permitiu que Salomão pusesse no Templo para adorná-lo (I Re 6,23-35.7,29), daquele sinal misterioso de Ezequiel (Ez 9,1-7) etc.

No entanto, Deus, apaixonado pelo ser humano, não se contentou em permitir representações materiais das realidades espirituais, mas ele mesmo quis ser visto fisicamente pelo homem, “e o Verbo se fez carne” (Jo 1,14). Quem poderia ir contra a materialidade da religião quando o próprio Deus se fez matéria? Quem ainda poderia ir contra as imagens se Cristo é a imagem perfeita do Pai (cf. Cl 1,13-16)? Quem se atreveria a professar um cristianismo puramente espiritual quando Deus quis um sadio materialismo da fé? A pessoa humana é imagem de Deus, compreende através de imagens e as venera, não por causa da sua materialidade, mas porque são expressões das realidades espirituais. Há casos em que essa veneração se identifica com a adoração. Por exemplo, no caso da “solene adoração da Santa Cruz”.

Não adoramos, no entanto, a materialidade da Cruz, mas tudo o que ela significa: Cristo crucificado nela, nosso único Senhor e Salvador. Esse contato com a Santa Cruz nesta sexta-feira santa deveria fazer com que pensássemos que estamos entrando em contato com o Mistério do Gólgota, estamos beijando o Senhor no ato central da nossa Redenção. Estamos aderindo-nos à Cruz, ao sofrimento, às ignomínias, às afrontas, aos desprezos que Cristo sofre na Cruz. Beijar a Cruz e adorá-la significa entrar em contato com uma realidade muito exigente: pensemos no Cristo sofredor e glorioso e nos submetamos ao seu reinado. Paradoxalmente, esse é um reinado que se manifesta de uma maneira que nos deixa um pouco confusos: um rei lastimado, derrotado, sem coroa a não a ser a de espinhos, sem vestes esplendorosas a não ser o manto de púrpura e de escárnio que depois lhe tiram, sem súditos a não ser Nossa Senhora e outras poucas pessoas que não se envergonharam e permaneceram fiéis. Longe de nós envergonharmo-nos na Cruz do Senhor. Nós sabemos – junto com São Paulo – que Cristo crucificado é sabedoria e força de Deus para nós (cf. 1 Cor 1,24).

Eu convido você a participar da Paixão do Senhor com Nossa Senhora. A dor de Nossa Senhora é a dor de uma mãe pelo seu Filho sofredor. É ao mesmo tempo uma dor oferecida a Deus Pai. Maria Santíssima está serena aos pés da cruz porque ela vê o amor com que o seu Jesus abraça a cruz, ela sabe que é a vontade do Pai.

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