Hoje, a Igreja mantém-se em profundo silêncio. O Esposo foi
retirado. Neste dia, a Igreja não celebra a Eucaristia. O Altar, despojado após
a Missa da Ceia do Senhor, é sinal desse jejum eucarístico.
Pelas 15h, os cristãos se reúnem para uma solene celebração:
a Celebração da Paixão do Senhor. Ela consta de três partes: (1) uma Liturgia
da Palavra, (2) a Adoração da Cruz e (3) a Comunhão eucarística.
A Liturgia da Palavra ilumina o mistério da cruz do Senhor.
Olhada somente com os olhos da razão, a cruz não tem sentido; ela é a maior
prova de que Deus não existe e, se existisse, seria inútil, cruel, indiferente
à dor humana! A cruz, à luz do nosso entendimento, é sinal de que não vale a
pena ser bom, não adianta lutar por um mundo melhor, porque o mal triunfa! Mas,
quando escutamos a Palavra do Senhor, o mistério da cruz aparece como luz, como
sabedoria admirável de Deus! É isto que as leituras nos revelam: a Primeira, é
o quarto cântico do Servo Sofredor; tão impressionante que o chamam de Paixão
segundo Isaías. Aí, o Servo humilhado e destruído para salvar a humanidade,
triunfará e será salvação da multidão. O Salmo 30 é uma impressionante oração
que revela os sentimentos de Jesus na sua dor. É neste Salmo que se encontra a
última palavra de Jesus: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu Espírito”. A Segunda
Leitura é da Epístola aos Hebreus. Ela apresenta Jesus como nosso Sumo
Sacerdote que, pelo seu sacrifício, entrou no Santuário verdadeiro: o céu.
Entrou, não com sangue de animais irracionais, mas com o seu próprio sangue,
sinal de um amor que se doa totalmente e, por isso, nos purifica. Finalmente, a
impressionante narrativa da Paixão segundo São João. A Liturgia da Palavra é
concluída com a solene Oração Universal, na qual a Igreja, unida ao seu Senhor,
intercede por toda a humanidade.
A Adoração da Cruz exprime a profunda reverência e admiração
da Igreja pelo mistério da Paixão e Morte do Senhor. Não se trata de adorar o
lenho materialmente, mas o que ele significa.
Finalmente, a Comunhão eucarística. Apesar de não haver
Missa, comungar no Corpo do Senhor morto e ressuscitado, revela bem o quanto
Cristo vive para sempre.
COMENTÁRIOS DOS TEXTOS BÍBLICOS
Leituras: Is 52,13-53,12; Hb 4,14-16; 5,7-9; Jo 18,1-19,42
A liturgia da Sexta-feira Santa nos coloca
diante do grande Mistério Cristão da Cruz e do Crucificado.
No Evangelho, contemplamos o Senhor sendo
preso, no Horto das Oliveiras, por aquele batalhão liderado por Judas; vimos
como é conduzido diante do sumo sacerdote Caifás e como, depois de ser
interrogado, recebe uma bofetada injusta de um dos servos. Depois, na presença
de Pilatos, o povo gritava: "Crucifica-o, crucifica-o!" (Jo 19: 6). E
imediatamente Jesus é flagelado e coroado de espinhos. Podemos nos perguntar:
Por que tudo isso? O Evangelho continua: Jesus carrega o lenho na presença das
pessoas que Ele amava; é despojado das suas vestes e, aparentemente, também da
sua dignidade; e no momento da Crucificação, o Senhor dirige angustiado estas
palavras a Deus Pai, apresentadas por São Mateus: "Meu Deus, meu Deus, por
que me abandonaste?" (Mt 27, 46). Perguntamo-nos novamente: por que a
Cruz?
Embora só possamos compreendê-lo parcialmente,
a Crucificação nos revela que onde parece haver apenas fraqueza, Deus manifesta
o seu poder sem limites; onde vemos fracasso, derrota, incompreensão e ódio,
precisamente aí Jesus revela o grande poder de Deus: o poder de transformar a
Cruz em expressão de Amor Esta lógica da fé é vista na passagem da primeira
para a segunda leitura. Enquanto Isaías nos mostra que este rosto "não
tinha aparência que agradasse. Era o mais desprezado e abandonado de
todos" (Isaías 53: 2-3), a Epístola aos Hebreus proclama que há
"trono da graça, a fim de alcançar misericórdia" (Hebreus 4,16).
Esta foi a experiência de um dos condenados
que estavam ao lado de Cristo no Gólgota. O "bom ladrão" experimenta
no seu maior fracasso e fraqueza como a cruz de Jesus se torna o lugar poderoso
em que sabe que é perdoado e amado: “Hoje estarás comigo no Paraíso (Lc 23,
43). Na Cruz, ouvimos ser pronunciada a palavra 'Paraíso'.
A Cruz transforma-se de instrumento de
tortura, violência e desprezo em meio de salvação, um símbolo de esperança,
pois tornou-se manifestação do amor gratuito e misericordioso de Deus, que se
faz presente para nós – de modo eminentemente eficaz – nos sacramentos. Não
deixemos de procurar a misericórdia divina na Confissão; não poupemos esforços
para participar frequentemente na Eucaristia. Nos sacramentos também veremos,
como explica São Josemaria, como Cristo "se entrega à morte com a plena
liberdade do Amor". Olhar para o Crucificado é contemplar a nossa
esperança
O Papa Francisco disse aos jovens: " não
se deixem roubar a esperança!" Por isso, convido vocês a experimentar o
poder transformador do Amor de Deus, que na Cruz abraça a fraqueza e enche-a de
esperança. Tornar nosso o símbolo da cruz significa ser, onde estivermos, um
sinal concreto do amor de Deus. Em suas famílias, em suas amizades e em sua
futura profissão, vocês podem ser um sinal concreto de esperança.
A Igreja hoje dirige sua atenção para o Lignum
Crucis, a árvore da cruz. Na liturgia, rezamos: “Adoramos a vossa cruz, Senhor;
louvamos e glorificamos a vossa santa ressurreição! Do madeiro da cruz veio a
alegria no mundo inteiro”. A adoração da Santa Cruz é um gesto de fé e uma
proclamação da vitória de Jesus. É também um gesto de esperança, que vem da
experiência do poder transformador do amor de Deus.
Acabamos pedindo à Nossa Senhora que nos ajude
também a estar perto da cruz, pois aí se revela a origem da esperança que, como
cristãos, desejamos oferecer aos nossos contemporâneos.
PARA REFLETIR
A liturgia da
sexta-feira santa ao referir-se ao culto à Cruz se expressa dizendo que se
trata de uma “solene adoração da santa Cruz”, deixando inclusive a possibilidade
de dobrar o joelho diante dela. Penso que essas palavras calaram no coração de
mais de um cristão deixando-o pensativo, com maior razão se refletimos naquilo
que realizamos: aproximamo-nos da imagem do Cristo crucificado e o beijamos;
adoramos a Cristo, a sua Cruz. Na verdade, Cristo e a sua Cruz são
identificados nesta liturgia solene de hoje.
Duas perguntas: porque
adoramos a Cruz? Porque a beijamos? No Brasil, devido a influência de teorias
provindas de ambientes evangélicos não é raro encontrar também entre católicos
certa desconfiança e aversão pelo culto às imagens. Gostaria de conversar com
você sobre esse tema sem uma finalidade defensiva, apologética, mas
simplesmente observando o que a liturgia da Igreja nos diz no dia de hoje.
Tendo em conta que qualquer consequência apologética será colateral, quero
dialogar especialmente com aqueles católicos que aceitam com toda paz a sua fé
celebrada na liturgia de hoje.
Nós adoramos a Santa
Cruz porque ela foi o madeiro no qual o próprio Deus feito homem retirou a
maldição do pecado que pesava sobre nós. A cruz era sinal de maldição, suplicio
dos culpados e grandes marginais da sociedade. Cristo quis transformar esse
sinal de maldição em sinal de benção. Mas, contudo, para entender melhor por
que adoramos a Santa Cruz é preciso que compreendamos uma realidade: as coisas
contêm um significado. Por exemplo: beijar uma pessoa tem distintos
significados quando realizado em diversas circunstâncias. Uma criança que dá um
beijo na sua mãe quer significar todo o carinho e agradecimento que sente por
ela; duas pessoas que se dão os dois beijinhos sociais quando se conhecem não
querem significar mais que o prazer que sentem em conhecer-se e celebrar dessa
maneira ritual essa nova relação de amizade que começa; dois namorados que se
beijam querem expressar o amor que sentem mutuamente. Há beijos que significam
pura sensualidade, outros são exposições das escórias e dos desvios humanos.
Enfim, um beijo pode significar muito! No caso do beijo à Santa Cruz, trata-se
de um beijo que se pode interpretar em relação a outro beijo, aquele que o
sacerdote dá ao altar todos os dias ao começar e ao terminar a Santa Missa: um
beijo cheio de amor, de respeito, de admiração. O Altar representa a Cristo
como a Cruz também o representa.
Como as coisas têm um
significado, também é preciso que entendamos esse significado em relação à
nossa capacidade de captá-lo e de dar significação aos nossos gestos. Uma
pessoa que abre o facebook e vê as fotos dos seus amigos e familiares não começa
a pensar se essa foto ocupa 300 KB ou 2 MB, nem nos seus pixels, tampouco na
materialidade ou imaterialidade dessa foto em concreto. Ao contrário, ao ver
uma determinada foto, a nossa mente se dirige naturalmente à pessoa que a foto
representa. Hoje em dia, ainda que as fotos em papel sejam mais incomuns,
talvez o leitor se lembre daquele beijo que deu numa foto de alguém que lhe era
querido. Nem passa pela minha mente que você queria dar um beijo à foto em si,
tenho certeza que você queria dá-lo à pessoa querida representada por ela.
Dessas considerações,
podemos concluir que há pelo menos duas maneiras de olhar uma imagem: vê-la
simplesmente enquanto imagem, na sua mera materialidade, ou vê-la enquanto
significativa de realidades que ela expressa. A mente humana não fica na
primeira maneira de ver uma imagem a não ser que esteja fazendo um estudo sobre
a qualidade do papel, a tonalidade das cores etc. A mente humana vê a realidade
material e, abstraindo totalmente da matéria que tem diante de si, vai diretamente
à realidade que ela representa. Trata-se de uma “viagem” que a mente faz desde
a imagem à realidade. Sendo assim, quando nós contemplamos umas flores diante
do Santíssimo, umas velas acendidas a algum santo, umas toalhas mais vistosas
no altar do Senhor, nós não podemos parar na simples materialidade dessas
coisas.
Deus conhece melhor que
nós mesmos como funcionamos. Ele sabe que nós conhecemos e amamos as realidades
que não vemos a partir das que vemos. Condescendente com essa nossa maneira de
conhecer e de amar é que o Senhor Deus, desde o Antigo Testamento, aborrecendo
a idolatria – que consiste em dar às criaturas o lugar que corresponde ao
Criador –, foi permitindo pouco a pouco representações materiais de realidades
espirituais. Nesse sentido, lembremo-nos dos dois querubins de ouro colocados
nas extremidades da Arca da Aliança (Ex 25,18-22), da serpente de bronze (Nm
21,1-10), das várias imagens que Deus permitiu que Salomão pusesse no Templo
para adorná-lo (I Re 6,23-35.7,29), daquele sinal misterioso de Ezequiel (Ez
9,1-7) etc.
No entanto, Deus,
apaixonado pelo ser humano, não se contentou em permitir representações
materiais das realidades espirituais, mas ele mesmo quis ser visto fisicamente
pelo homem, “e o Verbo se fez carne” (Jo 1,14). Quem poderia ir contra a
materialidade da religião quando o próprio Deus se fez matéria? Quem ainda
poderia ir contra as imagens se Cristo é a imagem perfeita do Pai (cf. Cl
1,13-16)? Quem se atreveria a professar um cristianismo puramente espiritual
quando Deus quis um sadio materialismo da fé? A pessoa humana é imagem de Deus,
compreende através de imagens e as venera, não por causa da sua materialidade,
mas porque são expressões das realidades espirituais. Há casos em que essa
veneração se identifica com a adoração. Por exemplo, no caso da “solene
adoração da Santa Cruz”.
Não adoramos, no
entanto, a materialidade da Cruz, mas tudo o que ela significa: Cristo
crucificado nela, nosso único Senhor e Salvador. Esse contato com a Santa Cruz
nesta sexta-feira santa deveria fazer com que pensássemos que estamos entrando
em contato com o Mistério do Gólgota, estamos beijando o Senhor no ato central
da nossa Redenção. Estamos aderindo-nos à Cruz, ao sofrimento, às ignomínias,
às afrontas, aos desprezos que Cristo sofre na Cruz. Beijar a Cruz e adorá-la
significa entrar em contato com uma realidade muito exigente: pensemos no
Cristo sofredor e glorioso e nos submetamos ao seu reinado. Paradoxalmente,
esse é um reinado que se manifesta de uma maneira que nos deixa um pouco
confusos: um rei lastimado, derrotado, sem coroa a não a ser a de espinhos, sem
vestes esplendorosas a não ser o manto de púrpura e de escárnio que depois lhe
tiram, sem súditos a não ser Nossa Senhora e outras poucas pessoas que não se
envergonharam e permaneceram fiéis. Longe de nós envergonharmo-nos na Cruz do
Senhor. Nós sabemos – junto com São Paulo – que Cristo crucificado é sabedoria
e força de Deus para nós (cf. 1 Cor 1,24).
Eu convido você a
participar da Paixão do Senhor com Nossa Senhora. A dor de Nossa Senhora é a
dor de uma mãe pelo seu Filho sofredor. É ao mesmo tempo uma dor oferecida a
Deus Pai. Maria Santíssima está serena aos pés da cruz porque ela vê o amor com
que o seu Jesus abraça a cruz, ela sabe que é a vontade do Pai.
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