A obra de
Lucas (Evangelho e Atos dos Apóstolos) oferece elementos inspiradores para o
tema proposto pela Campanha da Fraternidade neste ano de 2015. A proposta de
Jesus de Nazaré assumida pelas comunidades cristãs primitivas precisa ser
permanentemente resgatada pela Igreja, tendo em vista a sua missão
evangelizadora em cada contexto histórico-cultural.
O que mais falta
aos homens da Igreja é o Espírito de Cristo, a humildade, o despojamento de si
mesmo, a acolhida desinteressada, a capacidade de ver o melhor do outro. Nós
temos medo, queremos manter o que caducou, porque disso temos o hábito,
queremos ter razão contra os outros. Dissimulamos, sob o vocabulário de
humildade estereotipada, o espírito de orgulho e de poder. Brincamos de pôr a
vida à parte. Da Igreja fizemos uma organização como as outras. Empregamos
todas as nossas forças para organizá-la e agora as empregamos para fazê-la
funcionar. E ela caminha mais ou menos, menos do que mais, mas caminha. O
problema é que ela caminha como uma máquina, e não como a vida.
Essa afirmação
do patriarca ecumênico de Constantinopla, Atenágoras, feita há mais de quatro
décadas, possui caráter exortativo também para a Igreja na atualidade. Por
aquela mesma época, o Concílio Vaticano II, por meio da Constituição Pastoral Gaudium
et Spes, formulou princípios orientadores para a missão da Igreja num
mundo em acelerada transformação. De lá para cá, foram inúmeras as iniciativas,
em todos os âmbitos, para organizar uma Igreja mais humana e solidária,
respondendo aos clamores da sociedade, especialmente das pessoas abandonadas.
Peregrina neste
mundo, a Igreja precisa avançar sempre mais, rompendo com a tentação de
acomodar-se. E para avançar com liberdade evangélica, há necessidade de
abandono de tudo o que a impede de ser verdadeiramente discípula missionária do
Senhor. O documento da CNBB n. 100 – Comunidade de comunidades: uma nova
paróquia –chama-nos à conversão pastoral e nos orienta a sair “de uma
Igreja distante, burocrática e sancionadora” para uma Igreja mais evangélica,
comunitária, participativa, realista e mística (n. 37). O papa Francisco,
atento às demandas que emergem das comunidades pelo mundo afora, abraçou essa
causa com determinação. Seus ensinamentos, corroborados por seu testemunho,
inspiram-se na prática da Igreja das origens, seguidora de Jesus Cristo,
servidora do seu evangelho e, por isso mesmo, promotora da vida digna sem
exclusão. A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium apresenta o caminho
a ser seguido pela Igreja em sua obra evangelizadora no mundo atual. É a
proposta do evangelho que precisa ser retomada com coragem. “A proposta é o Reino
de Deus (cf. Lc 4,43); trata-se de amar a Deus que reina no mundo. À
medida que ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de
fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos” (EG 180).
Nesse sentido,
propõe-se aqui uma reflexão sobre o tema da Campanha da Fraternidade numa
perspectiva bíblico-teológica, buscando compreender a dimensão social da fé
cristã assumida pelas primeiras comunidades cristãs. Para isso, toma-se a obra
de Lucas como referência, pontuando alguns aspectos.
1.
A tradição do Êxodo e da profecia
Segundo Lucas, o
Primeiro Testamento culmina com a vinda de João Batista. Com Jesus, inicia-se o
tempo do anúncio do Reino de Deus: “A Lei e os Profetas chegaram até João. Daí
em diante, o Reino de Deus é anunciado, e todos se esforçam para entrar nele a
qualquer custo” (Lc 16,16).
A pregação de
João Batista se dá no deserto. Preparando o caminho do Senhor, oferece ao povo
um batismo de arrependimento. Também Jesus chegou da Galileia para ser batizado
(Mc 1,2-11). O pano de fundo dessa apresentação é a tradição do Êxodo,
acontecimento fundador do povo de Israel e paradigma para as comunidades em
permanente caminhada rumo à terra sem males. Fome e sede marcam essa caminhada:
fome e sede de pão, de justiça, de fraternidade e de paz; fome de Deus. O
deserto é o lugar teológico aonde Deus leva seu povo para seduzi-lo e falar-lhe
ao coração (Os 2,16). Êxodo, deserto, entrada na terra constituem o itinerário
da pessoa e da comunidade.
Jesus optou por
esse caminho exodal. Não fugiu do mundo. Pelo contrário, “crescendo no meio de
uma realidade conflitante de exploração econômica, de convulsões sociais, de
desintegração crescente das instituições, de explosões messiânicas, Jesus,
unido ao Pai, torna-se aluno dos fatos, descobre dentro deles a chegada da hora
de Deus” (MESTERS, [1985?]). Desde o início de seu ministério público, rompe
com o poder que escraviza, em sua tríplice dimensão – econômica, política e
religiosa (Lc 4,1-13) –, e assume a causa da libertação dos pobres, presos,
cegos e oprimidos (Lc 4,18-19).
É o início de
uma grande caminhada, na qual Jesus, fiel à tradição profética, se posiciona
com convicção e coragem a favor do próximo necessitado. A parábola do
samaritano solidário (Lc 10,25-37) ilustra bem a opção feita pelo próprio
Jesus, modelo para todos os que o seguem. Diante da preocupação do doutor da
lei a respeito da “vida eterna”, ele indica o caminho que promove a vida sem
exclusão já neste mundo. O centro da parábola é “um homem”, uma pessoa sem
nome, na qual se identificam todas as pessoas em situações de necessidade. Um
homem vítima de assalto, semimorto, abandonado… Jesus revela, nessa parábola,
aguda percepção da realidade social. Denuncia o sistema de exclusão e subverte
os valores estabelecidos pelos senhores do Templo, aqui representados pelo
sacerdote e pelo levita. Ambos “viram” o homem abandonado e ambos “passaram
adiante”. Contrariamente age o samaritano, pertencente a um povo odiado pela
elite religiosa judaica, idealizadora do sistema do puro e do impuro.
A parábola
reflete a prática cotidiana de Jesus de Nazaré. A sua vida foi pautada por
atitudes de amor e solidariedade. Movimenta-se segundo o Espírito que se
desdobra em sensibilidade, carinho, acolhida, perdão, cuidado e indignação. Em
todos os lugares, suas palavras e ações são portadoras de liberdade e vida para
os possessos das ideologias dominantes, para os doentes e enfermos; constituem
proposta de inclusão dos marginalizados: pobres, mulheres, pecadores,
estrangeiros…
Jesus não é um
ser etéreo, que se movimenta a igual distância de todos os grupos e conflitos e
exigências da época. Participa e toma posição, e o faz a partir de um “lugar
social” bem preciso, tendo em conta os interesses contrapostos, discernindo as
necessidades autênticas e, sobretudo, definindo-se diante da questão vital: a
instauração de sociedade outra, diferente… (ECHEGARAY, 1984).
Com essa opção
definida, Jesus vai às sinagogas (de Cafarnaum: 4,31; a outras sinagogas da
Galileia: 4,44; 6,6; no caminho para Jerusalém: 13,10); entra nas cidades e
aldeias: 5,12; 8,1; 10,38; 13,22 (de Cafarnaum: 4,31; 7,1; dirige-se a Naim:
7,11; decide resolutamente ir a Jerusalém: 9,51; entra em Jericó: 19,1; em
Betfagé e Betânia: 19,29; em Jerusalém: 19,41); nas casas (de Pedro: 4,38; de
Levi: 5,29; de fariseus: 7,36; 11,37; 14,1; de Jairo: 8,41; de Marta e Maria;
de Zaqueu: 19,1); caminha pelas ruas: 5,27; pelos campos: 6,1; pelas planícies:
6,17; 9,37; à margem do lago de Genesaré: 5,1; sobe a uma barca: 8,22;
atravessa para a outra margem: 8,26; realiza uma viagem pedagógica da Galileia
para Jerusalém: 9,51.57; 10,38; 11,1; sempre a caminho: 13,22; 17,11; envia os
discípulos, adiante de si, por todas as cidades e lugares: 10,1; entra no
Templo: 19,45.47; 20,1. Retira-se frequentemente para rezar no deserto: 4,1; na
montanha: 6,12; 9,28; no monte das Oliveiras: 22,39; em certo lugar: 11,1; reza
a sós com os discípulos: 9,18; ensina os discípulos a rezar: 11,2…
2.
Movido pela misericórdia
O levita e o
sacerdote, na fidelidade às leis de pureza impostas pelo sistema religioso
oficial, fazem-se estranhos à pessoa abandonada à beira do caminho. O
samaritano, porém, movido por compaixão, faz-se próximo dela e lhe dedica seu
tempo, suas habilidades e seus bens.
Jesus propõe um
caminho para além do legalismo excludente. A religião vivida por Jesus
expressa-se efetiva e afetivamente pelo amor incondicional ao próximo, seja ele
desta ou daquela tradição cultural. A misericórdia derruba preconceitos,
encurta as distâncias, aproxima os diferentes, vê a necessidade do outro, vence
o ódio, promove a reconciliação, cura e liberta. A misericórdia é o princípio
pelo qual a Igreja deve pautar sua missão como promotora de fraternidade e vida
no mundo.
Movido pela
misericórdia, Jesus vai ao encontro também dos ricos e os acolhe,
oferecendo-lhes a oportunidade de um novo caminho. Muitos não conseguem
abandonar suas seguranças econômicas, especialmente quando justificados por uma
teologia que interpreta a riqueza como bênção divina (Lc 18,18-23). Mas há
outros, como se constata na história, que se deixam transformar pelo evangelho
a ponto de mudar radicalmente a sua vida.
Com a visita que
Jesus fez em sua casa, Zaqueu toma consciência de sua real situação (Lc
19,1-10). Enriquecera aproveitando-se de sua função de chefe de cobradores de
impostos, à custa do empobrecimento do povo. Somente após o compromisso
assumido por Zaqueu de restituir o que roubou é que Jesus lhe garante: “Hoje a
salvação chegou a esta casa” (19,9). A redenção do dinheiro se dá quando é
administrado como um meio para a promoção da justiça social. Jesus tem clareza
e convicção sobre a finalidade dos bens materiais. Por isso denuncia
veementemente a avareza (16,14-15), a insensibilidade dos ricos (16,19-31), a
insensatez do acúmulo (12,16-21), o apego aos bens (18,9-23); ensina aos
discípulos a respeito do verdadeiro uso da riqueza (16,9-13), o sentido do
desapego (18,24-30), bem como a função de animar o projeto da partilha social
(9,10-17).
O pedido de
Jesus “dai-lhes vós mesmos de comer” envolve tanto a cooperação para resolver
as causas estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral dos
pobres, como também os gestos mais simples e diários de solidariedade para com
as misérias muito concretas que encontramos. Embora um pouco desgastada e, por
vezes, até mal interpretada, a palavra “solidariedade” significa muito mais do
que alguns atos esporádicos de generosidade; supõe a criação de uma nova
mentalidade que pense em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos
sobre a apropriação dos bens por parte de alguns (EG 188).
3.
A missão da Igreja
A missão que
Jesus confere aos Doze (Lc 9,1-6) é de continuidade de sua própria missão.
Consiste fundamentalmente no anúncio do Reino de Deus corroborado por sinais de
libertação e curas: “Deu-lhes poder e autoridade sobre todos os demônios, e
para curar enfermidades” (9,1). O campo da missão são as casas e as cidades. Da
mesma forma, o envio dos Setenta (ou setenta e dois) discípulos (10,1-12),
indicação de universalidade. Enquanto os Doze representavam o novo Israel, os
Setenta representam a nova humanidade. Para os judeus, setenta era o número de
nações no mundo. Portanto, o conhecimento da boa-nova de Jesus é um direito de
todos os povos.
Os portadores do
evangelho devem pôr-se a caminho, “de dois a dois”, com espírito de equipe e
sentido comunitário, numa condição de total desapego, a fim de que nada impeça
a liberdade dentro da qual Jesus se movimentou, sob a força do Espírito. Em sua
maneira de se apresentar, de vestir-se e se relacionar, todos poderão
testemunhar sua solidariedade com os pobres e a autenticidade da mensagem que
transmitem.
Como se pode
traduzir hoje esse espírito de Jesus na sociedade de bem-estar? Não
simplesmente recorrendo a um traje que nos identifique como membros de uma
instituição religiosa ou responsáveis por um cargo na Igreja. Precisamos, cada
um de nós, rever com humildade que nível de vida, que comportamentos, que
palavra, que atitude nos identificam melhor com os últimos (PAGOLA, 2012, p.
174).
Como “cordeiros
entre lobos”, com simplicidade e mansidão, sem dever nada a ninguém a não ser o
amor mútuo (cf. Rm 13,8), os evangelizadores enfrentarão toda espécie de
conflitos sem perder a paz. Aliás, a paz é o primeiro sinal do Reino de Deus:
“Em toda casa que entrardes, dizei primeiro: ‘Paz a esta casa!’” (10,5). A paz
que o evangelho propõe nasce da convicção de que todos somos irmãos, amados por
Deus Pai de modo gratuito, e, como decorrência, também devemos nos amar
gratuitamente (15,11-32).
4.
As comunidades de Lucas
Lucas
escreve pelo final do século I em Antioquia da Síria, a terceira cidade do
Império Romano, grande centro comercial, formada por povos de diversas
culturas. As tradições judaica, grega e romana se entrelaçavam. As comunidades
cristãs aí organizadas sofriam a influência de mentalidades diversas. O
evangelho vem ajudá-las a discernir o verdadeiro caminho da vida que o
ensinamento e a prática de Jesus revelaram. Uma das tarefas prioritárias
assumidas pelo mestre de Nazaré foi a formação dos seus discípulos, que, apesar
de o reconhecerem como o Messias, tiveram muitas dificuldades de segui-lo. A
mentalidade fechada, nacionalista e fanática, bem como a visão de um
messianismo triunfalista, fez que Jesus iniciasse um novo caminho, representado
pela viagem da Galileia a Jerusalém, onde vai ser crucificado.
Os discípulos
aprenderão nessa caminhada que o seguimento de Jesus se dá não pelos critérios
do poder, e sim pelos do serviço, como podemos constatar em Atos dos Apóstolos,
o segundo volume da obra de Lucas. Mulheres e homens, impulsionados pelo dom do
Espírito Santo, realizam a obra evangelizadora no mundo em tríplice dimensão:
·
A dimensão do tempo:
os discípulos anunciam o reino messiânico por meio de “sinais e prodígios” (cf.
At 2,22.43; 4,16.30; 5,12; 6,8; 8,6.13; 14,3; 15,12…), reveladores deste tempo
favorável de Deus, agindo em favor da vida e salvação de seus filhos e filhas.
Jesus é o kairós por excelência. No Evangelho
de Lucas, isso está expresso no advérbio de tempo “hoje” (cf. 3,11.22; 4,21;
5,26; 13,22-23; 19,5.9; 23,43). Ele permanece vivo e atuante nas palavras e
ações dos seus discípulos e discípulas que se acolhem, se reúnem e se amam
fraternalmente. Cada momento, “dia após dia” (At 2,41.47; 4,42…), é tempo
decisivo para a difusão da boa-nova de Jesus Cristo salvador. O tempo faz-se
pleno!
·
A dimensão do espaço:
“Sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria e até os
confins da terra” (1,8). Esse é o esquema geográfico utilizado por Atos dos
Apóstolos para mostrar a caminhada da Palavra, desde a ressurreição de Jesus.
Os evangelizadores vão “de lugar em lugar anunciando a boa-nova” (8,4…). A
mesma atitude itinerante de Jesus na Palestina é vivida agora pelos seus
discípulos. Há um contínuo movimento dos agentes de evangelização, num
compromisso missionário, assumido num regime de urgência, preenchendo todos os
espaços possíveis com a boa notícia do tempo da salvação de Deus, realizado em
Jesus Cristo. Os verbos “prosseguir” (13,51; 16,10.40; 17,10; 18,23…),
“levantar-se” (9,6.40; 14,20; 26,16…), “partir” (10,23; 16,10; 18,21…),
“embarcar” (13,13; 16,10…) são indicativos desse dinamismo.
·
A dimensão do testemunho:
“Recebereis uma força, a do Espírito Santo que descerá sobre vós, e sereis
minhas testemunhas…”. A palavra grega martyría,
frequente em Atos dos Apóstolos, refere-se ao testemunho de Jesus Cristo morto
e ressuscitado dado pelos seus seguidores; é argumento de autenticidade da boa
notícia acompanhada de sinais e prodígios, conforme cita Pedro em seus
discursos querigmáticos: em Jerusalém, após a descida do Espírito Santo (2,32)
e após a primeira cura de um deficiente físico (3,15), e na casa de um pagão,
Cornélio (10,39-43). Também Paulo, em sua conversão e em suas viagens missionárias:
numa sinagoga em Antioquia da Pisídia (13,46) e em Jerusalém, diante dos judeus
(22,20) e diante do rei Agripa (26,12-23). O próprio Senhor aparece a Paulo e
lhe dá a missão de testemunhá-lo em Jerusalém e em Roma (23,11).
5.
Na força do Espírito Santo
Assim como Jesus
foi gerado e conduzido pelo Espírito Santo, também a sua Igreja. É dom
concedido às pessoas individualmente e às comunidades dos crentes: a Pedro
(4,8), a Estêvão (6,5), a Paulo (9,17), a Barnabé (11,24), a Judas e Silas
(15,32)… Ele se manifesta na comunidade reunida (4,31), nas igrejas da Judeia,
Galileia e Samaria (9,31). Acontecem vários Pentecostes: aos judeus em
Jerusalém (2,1-13), aos pagãos na casa de Cornélio (10,44-48), aos discípulos
de João na cidade de Éfeso (19,1-7)…
O Espírito Santo
acompanha os evangelizadores, animando, ajudando a discernir, ampliando,
fortalecendo, impedindo, advertindo, sugerindo, arrebatando… As comunidades
seguidoras de Jesus podem contar com a mesma dýnamis do Espírito que
animava a Jesus de Nazaré. O dom gratuito da salvação, dado por Deus Pai em
Jesus Cristo, morto e ressuscitado, na força do Espírito Santo, é destinado a
todas as pessoas de todas as raças e culturas. A compreensão desta novidade
leva os seguidores de Jesus a assumir uma vida de total coragem e liberdade
interior. Anunciam a Palavra de Deus com toda intrepidez (em grego, parrêsía:
4,13.31; 9,27-28; 13,46; 14,3; 18,25-26…), enfrentando toda espécie de
conflitos. Começa no centro religioso judaico, que culmina com o martírio de
Estêvão (7,54-60); Tiago, irmão de João, também é assassinado por capricho de
Herodes (12,2). São várias as acusações e prisões a que são submetidos os que
seguem a Jesus (4,1ss; 5,17ss; 12,1ss; 16,16ss; 18,12ss; 21,27ss…). Os
discípulos missionários, de lugar em lugar, enfrentam com bom ânimo (euthymía)
os sofrimentos decorrentes da missão que receberam de Jesus.
O anúncio do
Reino de Deus provoca conflitos, porque se opõe a tudo o que prejudica a
dignidade e a fraternidade; porque implica acolhida, diálogo e superação das
barreiras sexuais (6,1-6), raciais e culturais (8,26-40; 10,34-35; 15,1ss);
porque não suporta atitudes de mentira e corrupção, como a de Ananias e Safira,
em Jerusalém (5,1-11); de manipulação do povo, como a de Simão, em Samaria
(8,9-24); de tentativa de impedir a graça de Deus, como a de Elimas em Pafos,
na ilha de Chipre (13,4-12); de exploração dos dons de uma jovem escrava por
parte de seus patrões, em Filipos (16,16-18); de uso do nome de Jesus para
proveito próprio, como a dos exorcistas judeus, em Éfeso (19,11-20); de
exploração da religiosidade popular, como a dos comerciantes, também em Éfeso
(19,23-40)… Há conflitos também com intelectuais gregos, que zombam de Paulo
diante do anúncio da ressurreição de Jesus, em Atenas (17,32-33) e em diversos
lugares, e com grupos judaicos, devido à sua mentalidade exclusivista e diante
dos novos parâmetros de interpretação da Sagrada Escritura (2,12-36; 7,1-54;
10,1-43…).
O Reino de Deus
sofre violências. É o selo de autenticação da prática transformadora de Jesus,
continuada pelas comunidades cristãs de Jerusalém, de Antioquia, de Chipre, de
Corinto, de Éfeso, de Derbe, Listra, Icônio… Mesmo que se ressalte a comunidade
de Jerusalém como igreja-mãe e modelo para as outras igrejas (2,42-47; 4,32-35
e 5,12-15), cada igreja local é plenamente ekklêsía. Cada igreja vai
tendo um jeito próprio de ser, respondendo aos desafios emergentes, sejam eles
de ordem econômica, religiosa ou política, buscando encontrar caminhos de vida
plena para todas as pessoas. Em outras palavras, cada igreja vai tendo sua
organização e autonomia próprias, unidas pelos princípios fundamentais que
caracterizam uma comunidade cristã, com base na prática de Jesus de Nazaré,
como o princípio da koinonía – pessoas em comunhão fraterna – e o
princípio da diakonía: a serviço umas das outras. Ambos os princípios
abrem para a missão ad gentes, realizada em mutirão por um grande
número de mulheres e homens. A obra de Lucas prima pela inclusão de
gênero no protagonismo evangelizador.
6.
Sempre a caminho
As comunidades
dos seguidores e seguidoras de Jesus, em Atos dos Apóstolos, são identificadas
como “o Caminho” (9,2; 18,24-26; 19,9.23; 22,4; 24,14.22), indicação de uma
maneira original de viver, com base na fé em Jesus Cristo. Na obra de Lucas,
aparecem 75 vezes os termos “caminho/caminhar/andar”. Isso aponta para um
dinamismo evangelizador, em permanente atitude de êxodo: de Jerusalém para o
mundo; do Templo para as casas; do legalismo excludente para o amor
misericordioso e acolhedor; de um único povo da promessa para a promessa de
salvação a todos os povos; da uniformidade/rigidez de doutrina para o diálogo
com as diversas culturas; do poder do dinheiro e da eloquência para o amor
eficaz a partir dos pequenos e pobres; do individualismo para a partilha
comunitária e o serviço mútuo; da timidez, do medo, do comodismo e do desânimo
para a intrepidez, a ousadia, o bom ânimo; do centralismo religioso para a
autonomia das comunidades na obediência ao projeto do Reino…
Enfim, acolhendo
a advertência do patriarca Atenágoras, com a qual se abriu este artigo, a
Igreja, em sua relação com a sociedade, é desafiada a caminhar “menos como
máquina e mais como a vida”. O evangelho requer atitudes e estruturas que
visibilizem e autentiquem o anúncio. Além do mais, o evangelho é a própria
pessoa de Jesus, cujo modelo de vida deve inspirar os seus seguidores em todos
os tempos. Queira Deus que a Igreja possa testemunhar ao mundo, sedento de vida
plena, o que Pedro, junto com João, personalizando as comunidades cristãs,
disse ao paralítico colocado à porta do Templo: “Olha para nós… Não tenho nem
ouro nem prata, mas o que tenho eu te dou: em nome de Jesus Cristo nazareno,
levanta-te e anda!” (At 3,1-8).
Bibliografia
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de Lucas e Atos dos Apóstolos. São Paulo: Paulus, 1999. (Roteiros para
Reflexão, VIII.)
CNBB. Comunidade
de comunidades: a conversão pastoral da paróquia. São Paulo: Paulinas,
2014. (Documentos da CNBB, 100.)
COMBLIN, José. Atos
dos Apóstolos. Petrópolis: Vozes; São Bernardo do Campo: Imprensa
Metodista; São Leopoldo: Sinodal, 1989. (Comentário Bíblico, v. I e II.)
FRANCISCO.
Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do evangelho
no mundo atual. São Paulo: Paulus: Loyola, 2013. (Documentos do Magistério.)
HECHEGARAY,
Hugo. A prática de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1984.
MESTERS, Carlos.
A prática libertadora de Jesus. Belo Horizonte: Cebi, [1985?].
PAGOLA, José A. O
caminho aberto por Jesus: Lucas. Petrópolis: Vozes, 2012.
RICHARD, Pablo. O
movimento de Jesus depois da ressurreição: uma interpretação libertadora
dos Atos dos Apóstolos. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2001.
RIUS-CAMPS,
Josep. O Evangelho de Lucas. São Paulo: Paulus, 1995.
Celso Loraschi
Celso Loraschi, mestre em Teologia Dogmática com
concentração em Estudos Bíblicos, professor de Evangelhos Sinóticos e Atos dos
Apóstolos na Faculdade Católica de Santa Catarina (Facasc). E-mail:
loraschi@facasc.edu.br
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Vida Pastoral
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